Com 12 jovens negros mortos, chacina do Cabula, em Salvador, completa 5 anos sem desfecho

    Nove PMs assassinaram jovens em bairro pobre da capital baiana, segundo denĂșncia; policiais ainda respondem pelo crime e trabalham normalmente

    Chacina do cabula
    Cruzes pretas que foram depositadas no local da chacina em protesto realizado em 2015 | Foto: Rafael BonifĂĄcio /Ponte Jornalismo

    Hå cinco anos, diante do pelotão de fuzilamento, 12 jovens negros da Vila Moisés perderam para sempre a chance se se recordar de qualquer lembrança ou sonho que um dia tivessem cultivado. Vila Moisés era então, como continua a ser, uma comunidade pobre situada no Cabula, em Salvador, Bahia, que se tornaria um dos bairros mais cobiçados do mercado imobiliårio da capital baiana.

    O mundo parece carecer de nomes para mencionar o que aconteceu com os 12 jovens do Cabula, mortos por nove policiais militares na madrugada do dia 6 de fevereiro de 2015. O comandante geral da PolĂ­cia Militar baiana, coronel Anselmo BrandĂŁo, disse que foi uma “operação” ocorrida “em um territĂłrio diferenciado”. Para o governador Rui Costa (PT), as mortes foram como a jogada “de um artilheiro em frente ao gol”. JĂĄ as famĂ­lias dos mortos e movimentos sociais preferem se referir ao acontecimento de cinco anos atrĂĄs como a chacina do Cabula.

    A denĂșncia do MinistĂ©rio PĂșblico destaca que “militares em serviço, todos portando armas de fogo de grosso calibre, no curso de suposta diligĂȘncia policial, encurralaram e executaram sumariamente os jovens”. As vĂ­timas foram Evson Pereira dos Santos, 27 anos, Ricardo Vilas Boas Silvia, 27, Jeferson Pereira dos Santos, 22, JoĂŁo Luis Pereira Rodrigues, 21, Adriano de Souza GuimarĂŁes, 21, Vitor Amorim de AraĂșjo, 19, Agenor Vitalino dos Santos Neto, 19, Bruno Pires do Nascimento, 19, Tiago Gomes das Virgens, 18, Natanael de Jesus Costa, 17, Rodrigo Martins de Oliveira, 17, Caique Bastos dos Santos, 16.

    AlĂ©m dos que morreram, naquela madrugada, continua a denĂșncia, os PMs balearam aleatoriamente em outros seis moradores da comunidade.

    Os PMs denunciados pelos crimes foram o subtenente JĂșlio CĂ©sar Lopes Pitta, os soldados Robemar Campos de Oliveira, AntĂŽnio Correia Mendes, Sandoval Soares Silva, Marcelo Pereira dos Santos, LĂĄzaro Alexandre Pereira de Andrade, Isac Eber Costa Carvalho de Jesus e Lucio Ferreira de Jesus, e o sargento Dick Rocha de Jesus.

    Leia mais:

    Cabula e a Justiça: pode executar, mas tem que justificar

    Comunidade protesta contra chacina no Cabula. PM intimida

    Segundo a assessoria de imprensa da PM baiana, os agentes chegaram a ser afastados e passaram por atendimento psicológico na época dos fatos, mas, depois que o processo foi arquivado no Tribunal de Justiça da Bahia, os policiais voltaram normalmente às atividades operacionais.

    Em 25 julho de 2015, os policiais foram absolvidos pela juĂ­za Marivalda Almeida Moutinho sob o argumento da “excludente de ilicitude”, recentemente bastante discutida por causa do pacote anticrime do ministro SĂ©rgio Moro.

    Protesto realizado em fevereiro de 2015, logo apĂłs a chacina | Foto: Rafael BonifĂĄcio /Ponte Jornalismo

    Dois anos apĂłs a chacina, o movimento Reaja ou SerĂĄ Morta, Reaja ou SerĂĄ Morto produziu o documentĂĄrio “NotĂ­cias de uma guerra racial subnotificada“. Nele, uma militante negra faz uma fala contundente que critica justamente o andamento do caso. “Sempre Ă© muito difĂ­cil lembrar que foram 12 vidas, 12 jovens que ficaram pelo caminho, que tiveram toda a sua histĂłria destruĂ­da, toda a sua histĂłria negada. Por isso acho importante que a gente lembre o que Ă© ser negro, o que aconteceu com esses jovens e o que todas as instituiçÔes tĂȘm feito com esse caso”.

    O MP entrou com recurso para anular a sentença de absolvição, que foi acolhido em carĂĄter liminar em 4 de setembro de 2018. TrĂȘs meses depois, uma decisĂŁo definitiva abriu caminho para reiniciar o processo. Segundo nota do TJ-BA, atualmente o processo “estĂĄ em tramitação no 1Âș JuĂ­zo da 2ÂȘ Vara do Tribunal do JĂșri, em fase instrutĂłria”, informação nĂŁo contemplada na nota oficial da PM. O caso estĂĄ em segredo de Justiça.

    Nesta quinta-feira (6/2), data em que a chacina completou exatos 5 anos, o movimento Reaja realizou um ato na comunidade: plantou 12 ĂĄrvores em memĂłrias das vĂ­timas. “O Estado opera para que as pessoas negras nĂŁo tenham sucesso, para que as pessoas negras nĂŁo tenham uma vida digna. NĂłs operamos de forma contrĂĄrio, nos operamos para lutar sem cabresto, nĂłs exigimos o fim da PolĂ­cia Militar, nĂłs exigimos a indenização para as vĂ­timas do Cabula, exigimos que o TJ da Bahia nos receba, os familiares e o movimento, o segredo de Justiça nĂŁo pode ser para os familiares”, diz trecho de entrevista Hamilton Borges, um dos lĂ­deres do coletivo, publicada no Instagram do Reaja.

    HĂĄ cerca de duas dĂ©cadas na PolĂ­cia Civil da Bahia, Kleber Rosa observa que a chacina do Cabula Ă© o retrato do modelo de segurança pĂșblica adotado nĂŁo apenas na Bahia como em todo o paĂ­s. “A chacina reflete o modus operandi do Estado brasileiro atravĂ©s das suas forças policiais. NĂŁo Ă© um erro de conduta dos policiais que estavam ali naquele momento. O que aconteceu no Cabula Ă© uma afirmação de um modelo de segurança pĂșblica gestado no Brasil e que visa o controle das populaçÔes excluĂ­das”, explicou.

    O policial explica que esse modelo de extermĂ­nio e de naturalização da morte começa a ser gestado no Brasil no pĂłs-abolição que considerava que, na formação da RepĂșblica, a parcela de negros escravizados deixariam de existir. “A população negra nĂŁo foi pensada para ser parte desse Estado em formação. Pelo contrĂĄrio. Foi pensado um Estado onde essa população nĂŁo tivesse espaço. Em um primeiro momento, se acreditou, a partir de concepçÔes eugĂȘnicas, que as geraçÔes seguintes seriam geraçÔes embranquecidas e que a população negra num processo natural, geracional, deixaria de existir. É o que chamam de darwinismo social”, continuou.

    Kleber Rosa em seminĂĄrio dos Policiais Antifascismo em 2017 | Foto: ThaĂ­s Tostes

    Kleber usa como exemplos histĂłricos da formação de um Estado racista duas leis. “É um processo de criminalização dessas populaçÔes, que passa tambĂ©m pela exclusĂŁo do acesso e ao direito ao espaço pĂșblico. A lei da capoeiragem, previa prender qualquer pessoa praticando capoeira. Essa lei Ă© com flagrante intenção de criminalizar um setor da população que Ă© um setor negro. E a lei da vadiagem punia qualquer pessoa que fosse abordada na rua e nĂŁo pudesse comprovar meios de sobrevivĂȘncia”. 

    O que ele chama de “meio de controle de fluxo” foi sendo reproduzido ao longo de sĂ©culos na sociedade, que continua excluindo, criminalizando e criando mecanismo para punir corpos negros e perifĂ©ricos, desaguando na naturalização da morte.

    A Rondesp, tropa da qual os PMs da chacina do Cabula fazem parte, Ă© um pelotĂŁo de enfrentamento, segundo Kleber, que segue a cartilha do inimigo a ser combatido.

    “É a ideia de que se Ă© bandido tudo bem morrer. A gente tem que superar esse debate de se a vĂ­tima era culpado ou inocente, porque nĂŁo Ă© essa a discussĂŁo. Existe uma institucionalização do extermĂ­nio, que antes era feita por grupos de matadores de forma clandestina, por assim dizer. Isso nĂŁo acontece mais. E Ă© a naturalização da morte que faz com que a gente nĂŁo cobre do Estado”, concluiu.

    O racismo de Estado que nĂŁo tem lado

    O historiador Dudu Ribeiro, da Iniciativa Negra por uma Nova PolĂ­tica sobre Drogas, destaca que, embora considere a chacina do Cabula um episĂłdio emblemĂĄtico, o conjunto de abusos das forças policiais na Vila MoisĂ©s Ă© cotidiano. “Aconteceu na vĂ©spera do Carnaval, teve uma declaração infeliz do governador, que obviamente foi rechaçada pelos movimentos sociais e ainda hoje isso reverbera. Destaco tambĂ©m a absolvição sumĂĄria dos PMs em poucos meses, a tentativa de federalização que nĂŁo aconteceu. Tudo isso fez com que o fato ganhasse repercussĂŁo internacional, muito pela atuação da campanha Reaja”, avaliou.

    Dudu se refere Ă  declaração de Rui Costa (PT) na Ă©poca dos fatos: “É como um artilheiro em frente ao gol que tenta decidir, em alguns segundos, como Ă© que ele vai botar a bola dentro do gol, pra fazer o gol. Depois que a jogada termina, se foi um golaço, todos os torcedores da arquibancada irĂŁo bater palmas e a cena vai ser repetida vĂĄrias vezes na televisĂŁo. Se o gol for perdido, o artilheiro vai ser condenado, porque se tivesse chutado daquele jeito ou jogado daquele outro, a bola teria entrado”, declarou o governante ligado Ă  esquerda baiana.

    “Existe uma miopia polĂ­tica, que eu chamo de cinismo ideolĂłgico da esquerda, que durante muitos anos nĂŁo formulou programas sĂ©rios de segurança pĂșblica e aderiu a programas liberais e populistas de direita. Mantiveram os mesmos controles ou falta de controle das polĂ­cias, nĂŁo deram espaço para movimentos sociais e comunidades pautarem a segurança pĂșblica e isso, inclusive, desĂĄgua hoje num conjunto de violaçÔes que continuam sendo perpetradas contra a população negra”, criticou Dudu.

    O policial civil Kleber Rosa, que milita no combate ao racismo na polĂ­cia, segue linha parecida de argumentação. Para Rosa, a declaração de Rui Costa, que ele chamou de “ato falho”, legitima a ação como polĂ­tica de Estado.

    “Punir ou nĂŁo esses policiais nĂŁo vai resolver. É sĂł uma forma de o Estado se descomprometer com sua prĂłpria polĂ­tica. Punir ou nĂŁo, tem uma importĂąncia simbĂłlica de naturalizar o fato ou de considerar que o fato Ă© reprovĂĄvel. E o Estado oscila em como vai lidar com a situação. Nesse caso, por um ato falho do governador, ele claramente reivindicou como polĂ­tica de Estado. E fica a ideia de que estimulam, mas punem e seguem fazendo”, declarou.

    Kleber destaca que o fato de o governo ser de um partido alinhado Ă  esquerda Ă© motivo de uma reflexĂŁo cuidadosa. “NĂłs, negros, Ă© que temos feito esse debate e os brancos tem tratado a demanda racial como se fosse especĂ­fica dos negros. Quando os setores progressistas da sociedade pensam na transformação do modelo de sociedade, pensam no viĂ©s classista e tratam o recorte racial como algo especĂ­fico da pauta negra, mas nĂŁo Ă©. Quando vemos setores da esquerda branca promovendo esse tipo de polĂ­tica, Ă© preciso dizer que os brancos de esquerda e de direita reproduzem esse racismo de forma escancarada e se beneficiam disso.
    O desafio de nĂłs, negros, Ă© hegemonizar a luta social a partir de uma compreensĂŁo da esquerda negra”, explicou o policial.

    Para ele, não hå perspectiva de transformação profunda na sociedade brasileira sem o protagonismo da luta negra.

    “A esquerda branca hegemonizou os negros sob o viĂ©s classista social, mas isso nĂŁo atende mais. Todos tĂȘm que repensar o que o racismo provocou e continua provocando. Ao longo desses cinco anos, o Cabula continuou e continua acontecendo cotidianamente”, ponderou.

    E, por fim, Kleber chama Rui Costa Ă  responsabilidade. “No regime militar, o hierarquicamente subalterno precisava cumprir a ordem do superior. As polĂ­cias sĂŁo comandadas pelo governador. EntĂŁo acho que ele tem que responder pelos crimes cometidos pelas forças policiais”, provocou Kleber Rosa.

    Jå que Tamo junto até aqui


    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? VocĂȘ sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. NĂŁo por acaso, somos vĂ­timas constantes de ataques, que jĂĄ atĂ© colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tĂĄ junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: vocĂȘ.

    Com o Tamo Junto, vocĂȘ ajuda a manter a Ponte de pĂ© com uma contribuição mensal ou anual. TambĂ©m passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matĂ©rias como a que vocĂȘ acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem estĂĄ do seu.

    Ajude
    1 ComentĂĄrio
    Mais antigo
    Mais recente Mais votado
    Inline Feedbacks
    Ver todos os comentĂĄrios
    trackback

    […] em Salvador, por poPMs das Rondas Especiais (Rondesp), em 6 de fevereiro de 2015, e que segue sem solução. Nove policiais foram denunciados pelo MinistĂ©rio PĂșblico e acabaram absolvidos. Houve recurso em […]

    mais lidas

    Sobre a sua privacidade

    Este site usa cookies para que possamos oferecer a melhor experiĂȘncia de usuĂĄrio possĂ­vel. As informaçÔes dos cookies sĂŁo armazenadas em seu navegador e executam funçÔes como reconhecĂȘ-lo quando vocĂȘ retorna ao nosso site e ajudar nossa equipe a entender quais seçÔes do site vocĂȘ considera mais interessantes e Ășteis.