Com ‘canetada’ do STF, pacote anticrime passa a valer sem ‘juiz de garantia’

    Especialistas tinham elogiado item que evitaria julgamento parcial; outro ponto excluído é a obrigatoriedade de audiência de custódia em 24 horas

    Proposto pelo ministro Sérgio Moro, pacote tem pontos congelados pelo STF | Foto: Agência Brasil

    O pacote anti-crime, criado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, passou a vigorar no país nesta quinta-feira (23/1). Em meio a mudanças no Congresso Nacional, vetos presidenciais e “canetadas” do STF (Supremo Tribunal Federal), até mesmo quem atua na área tem dúvidas sobre as diferenças práticas da nova lei.

    Inicialmente, o pacote pretendido por Moro tinha entre suas previsões ampliar a excludente de ilicitude para policiais e agentes do Estado que matassem pessoas em serviço. O Congresso barrou a ideia. Fez do texto uma alteração mais amena, ainda que gerasse preocupação de movimentos sociais, que o classificaram como “menos pior”.

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    No entanto, a lei aprovada sofreu alterações mesmo depois de ser sancionada. Antes de vigorar, o pacote perdeu dois itens que valeriam a partir de hoje: o juiz de garantias – dispositivo separa o magistrado que cuida do processo daquele que dará a sentença, garantindo isenção e evitando julgamentos viciados; e a suspensão da ordem de se soltar uma pessoa acusada de um crime que não for apresentada a um juiz em audiência de custódia em até 24 horas de sua prisão.

    Essa previsão de obrigatoriedade da realização da audiência em todo o país tinha sido avaliada como muito positiva por advogados criminalistas, porque é uma forma de evitar prisões desnecessárias e fiscalizar eventuais violações de direitos humanos do detido. ” O juiz tem a oportunidade de olhar para a pessoa que está sendo conduzida, avaliar a condição, falar com a pessoa, constatar a necessidade de sua prisão e a legalidade dela. Considerando que antes era uma recomendação do CNJ [Conselho Nacional de Justiça], vejo como fundamental virar lei”, avaliou Priscila Pâmela Santos, advogada associada ao IDDD (Instituto de Defesa do Direito à Defesa) e presidente da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil – São Paulo), em reportagem publicada em dezembro pela Ponte.

    “A decisão do Fux, do ponto de vista formal, tem mensagem muito ruim para o país. A gente vê um pacote de leis extremamente importantes, discutido em todas as casas, sancionado, que passa pelo crivo do chefe do Executivo e vem um ministro e, de forma monocrática, isoladamente, sozinho, com uma canetada barra uma série de leis”, afirmou Augusto de Arruda Botelho, advogado criminalista, um dos fundadores do IDDD (Instituto de Defesa do Direito à Defesa), e conselheiro da ONG Human Rights Watch e do Innocence Project Brasil.

    A suspensão dessas novidades se deve a uma decisão monocrática do ministro do STF Luiz Fux, que pausou por tempo indeterminado as previsões sob o argumento de que precisam ser estudadas. Ainda há tentativas de fazer mais alterações. Mesmo após a aprovação da lei com mudanças, o ministro Moro insiste em voltar ao tema, como alertou em postagem no Twitter.

    “Em 2020, vamos resgatar o que ficou de fora”, disse o ministro, elencando novas leis, como confisco de bens de criminosos e endurecimento na progressão de pena. No mesmo post, elogiou Fux pela suspensão do juiz de garantias. “Sempre disse que era, com todo respeito, contra a introdução do juiz de garantias no projeto anticrime. Cumpre, portanto, elogiar a decisão do Ministro Fux suspendendo, no ponto, a Lei 13.964/2019”, publicou Moro.

    Em meio às mudanças e retirada de leis para estudos, tem sido difícil, para quem atua no direito criminal, analisar o que muda, de fato, com o pacote. “O Brasil, numa época recente, vive uma insegurança jurídica. Digo que é difícil ser professor de direito penal, direito e processual penal e constitucional hoje em dia. Não sabemos o que vai acontecer”, analisou Augusto de Arruda Botelho.

    Segundo ele, a “canetada” do ministro Fux pausa dois pontos considerados positivos no pacote. “O princípio do juiz de garantia vem do ponto de vista de imparcialidade e funcionamento da Justiça, por exemplo. É uma decisão completamente surpreendente”, disse, sobre a ação de Fux.

    Sua maior dúvida é sobre como os tribunais analisarão o texto do pacote. Botelho explica que não necessariamente os entendimentos superiores, como do STF e do STJ (Superior Tribunal de Justiça), são postos em prática, o que pode ocorrer também com o pacote.

    “Não sabemos como [as leis] serão interpretadas. Há uma coisa curiosa no país: a lei que não pega. É como a lei de medidas cautelares, revolucionária, aplaudidíssima, que possibilitou uma série de medidas alternativas à prisão para evitar o encarceramento em massa e não pegou, porque não é aplicada”, argumentou Botelho. “[Não dá para prever] O efeito prático no estado de São Paulo, principalmente, que historicamente se considera uma Justiça independente do resto do país. Só o tempo vai dizer como a previsões legais serão recepcionadas”, prosseguiu.

    O advogado Irapuã Santana, doutorando em Direito Processual na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e membro da Educafro, explica que o pacote passa a valer para processos já em andamento. No entanto, questões como a ampliação da pena máxima, de 30 para 40 anos, só valem para crimes cometidos a partir desta data.

    Segundo ele, não há riscos de novas mudanças no pacote, como pretendido por Moro. “Vai ficar para deliberação do Congresso novamente. Precisa de novo projeto de lei para então passar de novo pelo Congresso e, aí, a sanção do presidente. A perspectiva de segurança jurídica fica uma questão de dar murro em ponta de faca. O Congresso já deu sua resposta sobre essas questões, [Moro] não tem aceitado a derrota parcial”, sustenta.

    Santana avalia que a maior vitória da população negra em relação ao pacote se refere à excludente de ilicitude proposta pelo ministro, uma promessa de campanha do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e retirada pelo Congresso.

    “O maior medo da comunidade negra, e com muita justificativa, era passar essa parte do pacote. Até o presidente disse que ia voltar com a questão com as forças especiais [de segurança]. Temos que ficar ligados e fazer pressão. É uma vitória importante. Quanto ao restante, precisamos ver na prática do dia a dia”, disse, também trazendo dúvidas, assim como Botelho.

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