Pacote de Moro contra crimes dá a policiais ‘licença para matar’

    Especialistas criticam proposta, que torna legítima mortes praticadas por PMs em serviço movidos por ‘medo, surpresa ou violenta emoção’: aumenta pena, aumenta letalidade e não chegará aos criminosos

    Depois de governadores, Moro apresentou proposta para jornalistas | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

    “O governo está mostrando a que veio”. Com esta frase, Sérgio Moro, ministro da Justiça e Segurança Pública do governo Jair Bolsonaro (PSL), apresentou um pacote contra crimes violentos, organizações criminosas e corrupção apresentado a governadores de estados. Entre as propostas, Moro incluiu uma espécie de “licença para matar” aos policiais durante o expediente.

    Em meio a mudanças sugeridas para 12 leis no Código Penal e no Código de Execução Penal, o ministro propõe alterar o texto que trata sobre legítima defesa. Neste ponto, possibilita que juízes reduzam a pena pela metade ou até deixem de aplicar a punição caso o excesso aconteça por “escusável medo, surpresa ou violenta emoção” – não há detalhamento sobre os termos – conforme alteração no artigo 23 do Código Penal.

    No mesmo artigo, trata que o policial que cometerá tal crime responderá por “excesso doloso ou culposo”, contrariando a “licença para matar” prometida na época de campanha pelo presidente Bolsonaro. À época, o então candidato do PSL prometia que as mortes cometidas policiais em serviço nem sequer seriam investigadas em um futuro governo seu.

    O conceito de legítima defesa também é atualizado com a proposta apresentada por Moro, já no artigo 25. A alteração no texto coloca como requisito para encaixar a situação como legítima defesa o assassinato praticado “em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado” ou, ainda, quando “previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém”. Neste caso, há explicitamente o termo “agente policial ou de segurança pública”, diferentemente do artigo 23, em que é citado apenas “agente” que praticar o crime.

    Outra mudança sugerida envolve o delegado de polícia que receber um caso de morte praticada por policial em trabalho. Com a nova lei (alteração proposta para o artigo 309-A do Código de Processo Penal), o delegado (integrante da Polícia Civil) poderá optar por não prender o policial ou agente de segurança que matou uma pessoa caso identifique que ele tenha agido por necessidade e em legítima defesa, conforme os incisos I e III da “exclusão de ilicitude”, presente no atual artigo 23 do Código Penal.

    ‘Só coisa jurídica’

    O pacote apresentado pelo ministro Sérgio Moro é criticado por especialistas convidados pela Ponte a analisar as alterações na lei. Segundo eles, o movimento trata de mudar questões jurídicas, mas sem trazer uma transformação na atual realidade da segurança pública. É o que defende o cientista político Guaracy Mingardi, integrante do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública).

    “Tudo que falaram só mexe na pena, na dureza, em aumentar o número de pessoas na cadeia. Vai encher mais as cadeias com as mesmas pessoas, não vai aumentar a eficiência das polícias. Nada mexe no sistema policial, só coisa jurídica. Continua tudo igual: crimes não são investigados, seguiremos com o índice de esclarecimento pequeno. Pode aumentar penas, a letalidade policial e não chegará nos criminosos”, sustenta Mingardi, criticando o ponto que trata de legítima defesa.

    “Tem coisas complexas como possibilidade de se aumentar os casos de legítima defesa, ser maior a probabilidade de um PM matar alguém por motivo besta, que achou que aconteceria algo”, pontua, criticando amplitude dos termos “escusável medo” e “violenta emoção”, ambos citados como justificativa para uma legítima defesa. “Pode servir de guarda-chuva para tudo. Tá, violenta emoção, e aí? É o que o PM pode declarar na hora: tomei um susto e dei quatro tiros em um cara. Aumenta a possibilidade de matar e não ser punido depois”, continua.

    A visão é compartilhada pelo coronel da reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo Adilson Paes de Souza. “É uma extensão perigosa do que vem ser a legítima defesa e é muito subjetiva. Fere a Constituição na soberania do Tribunal do Júri (responsável por julgar homicídios cometidos por PMs) e a vedação da pena de morte. Fere o princípio da proporcionalidade. As forças policiais brasileiras são apontadas como as que mais matam no mundo, é muito perigoso”, explica o policial aposentado.

    Adilson utiliza uma outra ação do governo Bolsonaro para explicar o perigo da proposta feita por Moro. “Imagina com a flexibilização da posse de arma e a tentativa de aumentar o acesso ao porte, da pessoa andar com uma arma. O PM vê o volume na cintura e matará a pessoa. Se disser que pensou que ela sacaria uma arma, entra no risco. Ao se flexibilizar o uso da arma, depois flexibiliza o porte, aumenta o conflito armado. Vai gerar mais impunidade, mais morte e mais desgraça”, sustenta Adilson, que elogia um único ponto do projeto: videoconferências. “Corrige distorções, preserva a saúde dos PMs e agentes de segurança, reduz a possibilidade de fuga… Foi uma ótima medida”, pontua.

    A maior probabilidade de os policiais responderem em liberdade processos por matar pessoas é também visto como temerário. “Policiais responderão aos inquéritos em liberdade e poderão então ameaçar testemunhas e cometer outros assassinatos. A proposta do ministro Moro legitima execuções e extermínios praticados por policiais. Uma verdadeira lei do abate de jovens pobres”, critica o advogado Ariel de Castro, conselheiro do Condepe (Conselho Estadual de Direitos Humanos de São Paulo) e membro do Grupo Tortura Nunca Mais.

    Recentemente, a Justiça de SP condenou o PM Jefferson Alves a 24 anos e seis meses de prisão por matar o jovem Gabriel Paiva, 16 anos, em 2017, espancado com um pedaço de madeira. À época, ele respondia ao crime em liberdade, mas a Justiça decidiu pela prisão do policial, conhecido como Negão da Madeira, pois ele ameaçou testemunhas do processo durante a fase de apuração do crime.

    “Os policiais poderão matar a vontade, justificando que suas vítimas estavam em ‘atitude suspeita’. Adolescentes e jovens negros serão as principais vítimas, como já ocorre atualmente, mas em proporções ainda maiores. O medo, surpresa e a violenta emoção, segundo a proposta, servirão para atenuar ou excluir a responsabilização penal de policiais assassinos”, completa Ariel.

    Já Cristiano Maronna, integrante da Plataforma Brasileira de Política de Drogas e do Ibccrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), dividiu a proposta de Moro em duas. “Projeto ‘anticrime’ do político de extrema direita Sérgio Moro é uma mistura de inconstitucionalidades (execução provisória da pena, banco genético, etc) com bestialidades como a ampliação da legítima defesa em casos de mortes produzidas por policiais (pena pode ser reduzida à metade em caso de susto). Inacreditável: já temos a polícia que mais mata (e que mais morre) no mundo”, escreveu Maronna nas redes sociais assim que o conjunto de propostas de mudanças foi anunciado.

    Moro defende propostas

    O ministro Sérgio Moro apresentou o projeto a governadores nesta segunda-feira (4/2). Participaram do encontro, os governadores Eduardo Leite (RS), Camilo Santana (CE), João Doria (SP), Helder Barbalho (PA), Ibaneis Rocha (DF), Marcos Rocha (RO), Ratinho Júnior (PR), Renato Casagrande (ES), Ronaldo Caiado (GO), Rui Costa (BA), Antonio Denarium (RO), Mauro Carlessi (TO). Os estados do Acre, Amapá, Pernambuco e Rio de Janeiro foram representados pelos vice-governadores.

    A intenção é que ajustes sejam sugeridos e, depois, o texto encaminhado ao Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado Federal). Nas Casas, os parlamentares debaterão os assuntos e decidirão por aprovar integralmente, com mudanças ou recusar o projeto.

    Em coletiva de imprensa logo após a reunião com os governadores, Moro defendeu seu trabalho e rebateu as críticas de que será uma aval para policiais matarem. “Não existe licença para matar, quem fala isto está equivocado. É um projeto consistente com o império da lei de quem respeita direitos fundamentais”, garante o ministro do governo Bolsonaro, antes de responder novamente sobre a questão.

    “Na situação de conflito armado, é para o policial não esperar levar um tiro para tomar uma espécie de reação. Não se está autorizando que cometa homicídios indiscriminadamente”, aponta o ex-juiz da Lava Jato. “Já falei isso mais de uma vez: o conflito armado entre policial e criminosos não é estratégia de segurança pública recomendável. O conflito pode acontecer em determinadas situações e, nas situações que ocorrerem, tem que ter uma previsão legal, um abrigo jurídico a um policial que eventualmente se ver oprimido, a tomar atitude e não ser vítima de um crime”, argumenta.

    Diretora do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), Samira Bueno discorda da tese apontada por Moro. “Esta previsão legal existe pelo menos desde os anos 80, é o excludente de ilicitude, que já prevê o amparo legal para o policial”, explica. Justamente o excludente de ilicitude era apontado por Jair Bolsonaro como item a ser usado em todos os casos de mortes causadas por policiais em serviço, ainda na época de campanha eleitoral.

    No evento, o ministro discordou quando citado que o pacote era apenas de recrudescimento penal. Ainda revelou ter se encontrado com os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, para tratar do tempo para aprovação do texto. “Há uma receptividade do Congresso Nacional em relação a projetos que incrementem a qualidade da segurança pública no Brasil. As vítimas constituem a população brasileira, vários deles foram eleitos com essa bandeira. A população tem direito de ter maior segurança na sua vida, de não ser assaltado na esquina. Há uma margem para mudança”, diz Moro.

    Por outro lado, há também espaço para críticas, como a feita pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro. “Diversas medidas violam frontalmente os princípios constitucionais da presunção de inocência, da individualização da pena e do devido processo legal, como por exemplo a prisão antes do trânsito em julgado da condenação, o acordo penal e a ampliação da subjetividade judicial na aplicação das penas e de seus regimes de cumprimento”, assegura o órgão, em nota. “Um projeto que se propõe a aumentar a eficiência do sistema de Justiça não pode enfraquecer o legítimo e regular exercício do direito de defesa, nem esvaziar garantias fundamentais. É dever das instituições a preservação de tais pilares do Estado Democrático de Direito”, continua o texto.

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