Com Witzel, polícia é responsável por 1 a cada 3 mortes no RJ

    Dados mostram que a polícia matou 305 pessoas em janeiro e fevereiro de 2019, maior marca no período desde 1998; para pesquisadora, autoridades forçam PMs a andarem com ‘atestado de óbito’ e ‘advogado contratado’

    Fuzis são armamentos considerados comuns na PMERJ | Foto: Divulgação/PMERJ

    O Rio de Janeiro apresenta crescimento da letalidade policial desde que Wilson Witzel (PSC) tomou posse como governador do estado, em 1º de janeiro de 2019. Dados oficias do ISP (Instituto de Segurança Pública), vinculado ao Governo do Estado, apontam que 305 pessoas foram assassinadas por policiais nos dois primeiros meses do ano, maior número desde o início do levantamento, feito mensalmente desde 1998.

    Os registros do primeiro bimestre de 2019 mostram que a quantidade de mortos pelas polícias aumentou 67% em dois anos (de 183 para 305), enquanto os casos de homicídios dolosos caíram 30% (de 1.001 para 705). Na medida em que em 2017 a quantidade de mortes decorrentes de intervenção policial (MDIP) representava 15% do total de homicídios no RJ (1.184, à época), neste ano o percentual pulou para 30,2% (1.010 mortes, entre MDIP e homicídios dolosos).

    Esta é a primeira vez na história que os registros superam a marca de 300 vítimas no período, tendo no primeiro bimestre de 2018 a antiga maior marca, com 259 mortos. O crescimento no período de um ano, entre o governo Pezão (MDB), passando pela intervenção federal (entre 16 de fevereiro e 31 de dezembro) e quando Witzel assumiu o estado, é de 17%.

    Em janeiro e fevereiro de 1998, as polícias mataram 41 pessoas, número 643% menor quando comparado com os casos oficializados neste ano. O primeiro dado colhido pelo Instituto segue como o menor patamar histórico de letalidade das polícias fluminenses nos dois meses iniciais do ano.

    Para Jacqueline Muniz, cientista política e criadora do ISP, os números mostram uma lógica cíclica no Rio e repetida por Witzel. “Governantes sem políticas públicas, sem programas de ações consistentes, fazem essas bravatas exatamente porque não podem ser avaliados por não terem o que entregar. Qual sua ação, plano de segurança? Como não têm, usam discurso catártico de lei e ordem. É um cenário publicitário macabro nos últimos 30 anos e que não produziu resultados substantivos no crime”, explica.

    Confira a entrevista completa da especialista:

    Ponte – Há um crescimento na letalidade neste novo governo. O quanto as ações de Wilson Witzel impactam nos dados?

    Jacqueline Muniz – Governantes sem políticas públicas, sem programas de ações consistentes, fazem essas bravatas exatamente porque não podem ser avaliados por não ter o que entregar. Toda vez que Witzel diz “vou dar tiro na cabecinha”, “vamos reprimir mais”, ele está vendendo um produto que não pode entregar. Qual sua ação, seu plano de segurança? Como não tem, usa discurso catártico de lei e ordem. Toda vez que não tem plano e não governa as polícias, você fica brincando de animador de auditório de festa infantil. O problema disso é que, em um primeiro momento, ele parece que comanda, mas é só aparência. Em breve, ele tende a ser algemado pelo próprio discurso que ele produziu porque a repressão por ela mesma gera escassez no recurso repressivo e na capacidade de se policiar.

    Ponte – Como solucionar esta questão?

    Jacqueline Muniz – É preciso que as polícias do RJ voltem a fazer polícia e, ao fazer isso, se faz repressão qualificada. Hoje o que se tem é o preço alto que se paga para muita gente ficar milionária às custas da vida do policial, da vida do cidadão. Isso é cíclico no Rio. Essa performance é cortina de fumaça. É um cálculo burro, que tem prazo e desmoraliza a polícia e o torna refém, pois não terá como sustentar essa curva por muito tempo. Vai inventar que criminosos estão cada vez mais violentos, perigosos, tal como fez a intervenção.

    Ponte – Este aumento tem a ver com o combate ao crime organizado?

    Jacqueline Muniz – A letalidade no Rio de Janeiro não aumentou porque o crime ficou pior, ficou mais feio, ela não segue alta por isso. O que está em jogo é seguir iludindo os policiais com aparência de heroísmo porque o que está em jogo é uma economia milionária, da indústria do crime, dos brinquedos de guerra. É um marketing macabro. Quando não se tem mecanismos profissionais de controle do uso da força, nem no RJ nem em lugar nenhum do Brasil, quando o governante, o governador que é o comandante geral das polícias e não os chefes da PM ou Polícia Civil, manda esse recado, está dando autorização covarde porque ele não vai pagar a fatura dos policiais. Ele vai pagar o trauma da família do policial que morreu? O trauma da população que perdeu alguém por bala perdida? Não vai. Esse cheque em branco para as organizações, isso [letalidade] aumenta sempre que tem esses estímulos.

    Ponte – Quais as consequências?

    Jacqueline Muniz – Precisa observar as dinâmicas criminais. No Rio de Janeiro, temos em entorno de 40% do território, estima-se, esteja em mãos das milícias, que é a ‘polícia do dos bens’, é um governo autônomo dentro do governo. Então as disputas por monopólios criminosos levam à mortes, matanças e, depois que se gera essas lideranças, a tendência é reduzir as mortes por um lado. Por outro, é preciso cercar todos os tipos de mortes violentas, se cai as registradas por homicídios, há outras mortes violentas registradas também. Se os homicídios dolosos caíram nestas estatísticas recentes, por outro aumentaram as mortes produzidas pelo estado. Ou seja: reiterando o que tenho digo, o estado é o principal administrador das mortes no Rio de Janeiro, e não apenas no Rio. É o Estado que ensina que vale a pena matar, não só a polícia matar esse delinquente ou criminoso ou cidadão com bala perdida, como ensina a população a resolver na porrada e resolver no tiro. E, por outro lado, estimula que grupos armados reajam cada vez mais de maneira violenta porque não tem rendição. Quando não há rendição, não há porque depor, entregar armas. É a imagem do “eu morro, mas levo alguém comigo”, “vou morrer, mas levo uns três policiais comigo”. Essa tem sido a lógica. Esse mundo não há guerra pelo fato de não existirem exércitos, nem a polícia tem para controlar território e população – e nem o Exército foi capaz de produzi-lo na intervenção por questões óbvias -, nem do outro lado os grupos criminosos têm o domínio sob território e população.

    Ponte – Como funcionam estes controles regionais?

    Jacqueline Muniz – Os domínios armados que produzem tem a ver com zonas de negociação como atores de dentro do estado, com conivência e conveniência – é uma economia que rende milhões. Há setores de governo agindo como agências reguladoras do crime e agências reguladoras da morte, isso deixa os policiais em situação de indigência e indulgência e os cidadãos vivendo como temos visto no RJ nos últimos anos: uma cidade com dois aplicativos para saber se você sai de casa antes ou depois do tiroteio. Uma cidade em que os armamentos convencionais de polícia atingem de 300 a 700 metros de alcance. É um cenário publicitário macabro nos últimos 30 anos não produziu resultados substantivos no crime. As drogas desapareceram? O crime ficou mais pobre? Não, o que tivemos foi um avanço das milícias sobre os criminosos, um novo Tratado de Tordesilhas. As pessoas não queriam uma unificação das polícias como discurso? Pois bem, ela veio através do crime. Como sempre disse, na democracia não se pode ter monopólios, nem no uso da violência, nem no uso da força. Isso atenta contra o exercício democrático do poder. É isso que a gente assiste.

    Ponte – Há um marco inicial para aumento na quantidade de mortos pelas polícias?

    Jacqueline Muniz – [A letalidade] Começa de maneira deliberada no governo Moreira Franco (governador de 1987 a 1991), ele assume e diz que resolverá o problema da violência em 100 dias, ele passa um cheque em branco para uma polícia que já tem procuração [para matar] em aberto, estimula a autonomização predatória. Essas bravatas, falas autoritárias, são falas publicitárias do que resultado repressivo qualificado que ultrapassa o imediato da ação feita. Para deixa claro: o problema não é agir de forma repressiva, é preciso agir com qualidade e com foco, do contrário, esse resultado se volta contra a própria corporação, Estado e policial – aumentando as taxas de vitimização e expõe o policial a situações de risco maiores. Isso porque onde a polícia vai ela é recusada, ela se torna estrangeira em seu próprio território por essa dinâmica violenta, que está longe de ser o exercício qualificado repressivo da ação policial. Esse discurso da guerra contra o crime, algo publicitário que visava incrementar a indústria ilegal da insegurança, uma indústria milionária, inaugura-se com o Moreira Franco. Ele que passa o cheque em branco, essa autorização em aberto para organizações e estimula na ponta as autonomizações predatórias. O que torna o próprio policial refém do uso abusivo e excessivo da força. Além de carteira de trabalho, tem que ter um atestado de óbito prévio e pagar um advogado porque, mais cedo ou mais tarde, tudo isso tende a se voltar contra ele mesmo. Se perde o respeito, se perde a confiança… Quanto mais pesa na força, mais uso desproporcional, mais se perde o poder de polícia na esquina. Aumenta nível de resistência armada à ação policial. É diagnóstico de pesquisa de quem estuda polícia há 20 anos.

    Ponte – Quais impactos este modus operandi na segurança trouxe?

    Jacqueline Muniz – Temos mais de 30 anos dela e sua única ambição é ativar e estimular esse mercado da insegurança, onde se vende a proteção. A partir desse momento existe o processo de milicialização, de disputas territoriais… Quem entrega fuzil para polícia é o mesmo consultor que entrega para os bandos criminosos e, de modo assim, para ganhar dos dois lados. O que está em jogo é a venda de brinquedos caros que ferem, que matam cidadãos, policiais e criminosos. A partir do governo Marcelo de Alencar, você vai ter um uso indiscriminado do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais), que vira uma unidade de emprego rotineiro, quando é de uso excepcional em casos de elevado risco e elevada incerteza. Em 40% dos países filiados à ONU tem essas unidades para, em situações como essas, ter uma mão de obra policial especializada capaz de atuar e garantir baixa zero, tanto para polícia quanto população, seja ela delinquente ou não. Aumenta risco, aumenta violência e, como o valor maior é a vida, eu crio essa tropa para garantir o resultado superior de polícia. Não faz sentido bala perdida, que é um sintoma de incapacidade e desgoverno.

    Ponte – Pós-Moreira, como se deu a dinâmica com os governadores seguintes?

    Jacqueline Muniz – Com o Alencar, houve esse emprego maior e a polícia abandonou o policiamento cotidiano por operações, foi abandonando o controle e soberania de território em favor de operações pontuais, o que chamo de síndrome de cabrito: o sobe e desce morro. Não se tem como sustentar com operações, que consomem muitos recursos policiais e o policiamento na rua fica escasso. Cada operação é mais guarita para que crimes de oportunidade ocorram, porque não há onde fabricar polícia. Se uso 300 PMs na operação, imobilizei 900 para ter curva de 24 horas na operação e você os tira de algum lugar, das ruas – que ficam entregues. Hoje é como se nossas polícias fizessem menos polícia e mais corpos táticos militares. Não são Bope, que foi sabotado por dentro em sua missão, em sua razão de ser. Virou um band-aid usado para todo tipo de problema. Isso também esvaziou sua expertise, compromete a capacidade de qualificação do próprio Bope.

    Ponte – Como isso afeta no dia a dia?

    Jacqueline Muniz – O Bope é uma tropa que se paga com uma única atuação ao ano de baixa zero, situação dificílima de resgatar refém, como do ônibus 174, porque exatamente naquela situação não pode ser um generalista, tem que ser especialista. É isso que faz a gente confiar na polícia e não querer resolver com o nosso próprio músculo, não querer contratar o miliciano, o traficante para agir em nosso nome. Continuamos chamando a polícia em nosso nome porque ela é capaz de reverter as desvantagens, de atuar em elevada incerteza. Isso é polícia, não existe forte emoção como quer o [Sérgio] Moro [ministro da Justiça e Segurança Pública]. Quando ele diz isso, ele está reduzindo a polícia ao mundo do século 18, ao amadorismo, ao mundo pré-profissional. A polícia tem doutrina, não é um cidadão comum. Esse estímulo, dependendo do governo e orientação política, tem um controle maior sobre a letalidade. Cada policial morto demora 5, 6 anos para ter o agente que você perdeu, que é insubstituível. Não basta a vida de um cidadão, trabalhador.

    Ponte – Você atuou na criação dos dados que baseiam estas análises. Como foi o início do trabalho?

    Jacqueline Muniz – Criamos o ISP em 1999, não existia sistema de dados antes disso. Retroagimos um ano para ter base de dados. Era tudo manual, contado em pauzinho, planilhas manuais. Podemos dizer que a primeira pesquisa de vitimização policial, na década de 1990, com o Inácio Cano fez o primeiro levantamento para saber a magnitude na realidade do RJ e projetar em termos nacionais. A partir daí começou-se a monitorar as mortes de policiais e as cometidas por policiais. Era um dado invisível antes disso, não se sabia. E é um produto de pesquisa inédita, com metodologia que virou política pública. Nem a polícia tinha ideia de quanto se matava e o quanto se morria. Tivemos que xerocar 4 anos de ocorrências, o R.O. [registro de ocorrência] físico. Não tinha banco de dados, nenhum controle. Então podemos fazer o primeiro mapeamento de todos os agentes que atuam no policiamento no cotidiano ou pontual. Foi um escândalo. Antes disso, não se tem como dizer porque não se contava, não era relevante. Era um tabu falar da vitimização e letalidade, nem a polícia sabia o impacto disso na segurança e saúde ocupacional de seus funcionários – seja por morte ou licença de saúde. A partir daí o estado passou a ser cobrado e mostramos a gravidade com números, assim fica mais fácil apresentar para a população. A partir daí é possível acompanhar a situação no RJ. Não é que não tinha. É que não se contava, era invisível e silencioso.

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