Para Henrique Macedo, autor de “Meios sem fim: a política da Polícia Militar do Estado de São Paulo“, corporação não tem interesse em controlar a violência porque não tem compromisso com a proteção das pessoas
Os diversos casos de violência policial que receberam atenção nas últimas semanas, inclusive dos grandes veículos de comunicação, com o ápice na cena chocante de um entregador sendo jogado de uma ponte por um PM, geraram uma onda de cobrança inédita ao governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e seu secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite.
Apesar de terem assumido em 2023 com discursos duros de não afastamento de policiais após ocorrências violentas e duas operações extremamente leitais na Baixada Santista, que somaram 84 mortes, além do vai-e-vem sobre o programa de câmeras corporais, a dupla Tarcísio-Derrite recuou de novo ― mas apenas em parte.
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Primeiro, o governador lamentou o assassinato de um estudante de medicina pela polícia, enquato Derrite considerou “vitimismo barato” a contestação sobre a morte de uma criança de apenas 4 anos, baleada enquanto brincava na porta da casa de uma prima durante uma ação policial no Morro São Bento, em Santos, no litoral paulista.
Nas cordas esta semana, tanto Tarcísio quanto Derrite defenderam que abusos não serão tolerados e que “maçãs podres” não podem manchar a imagem de toda a corporação. O comandante-geral da PM, coronel Cássio Araújo de Freitas, classificou a conduta do soldado que jogou um entregador da ponte como “erro emocional” e que faria normativas para evitar “danos colaterais” como esse.
Para Henrique Macedo, pesquisador vinculado ao Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos da Universidade Federal de São Carlos (GEVAC/UFSCar), que é filho de policial, a Polícia Militar de São Paulo mais uma vez tenta se autopreservar mas sem expressar compromisso com os direitos fundamentais do cidadão. “Não há nenhum coronel da PM, não há major, capitão, tenente, sargento ou cabo que não saiba que existe violência, que existem irregularidades de procedimento por parte de seus subordinados. Só não pode ter um efeito negativo”, declarou em entrevista à Ponte.
Macedo lançou em novembro o livro Meios sem fim: a política da Polícia Militar do Estado de São Paulo (Ed. Autografia), fruto da sua tese de doutorado que investiga o pensamento da corporação sobre o trabalho de policiamento de rua — o chamado policiamento ostensivo —, a partir de pesquisas documentais e entrevistas com policiais.
Segundo o especialista, a corporação cresceu e se tornou protagonista das políticas de segurança pública, “atuando mais para proteção patrimonial que [para proteção] das pessoas, sendo menos democrática e mais seletiva”. Antes, em sua dissertação de mestrado, Macedo já havia mergulhado no universo das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), a força especial da PM paulista.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:
Ponte ― Há muito tempo a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo não era ocupada por policial, como Guilherme Derrite. Ele representa o que é a polícia hoje?
Henrique Macedo ― Tem alguns elementos históricos que vão retornando e é um movimento também político, de maneira geral. Principalmente com a ascensão da extrema-direita. Eu acho que não, ele não reflete a polícia como um todo. Acho que o ato do Derrite, como um capitão da PM, de afastar uma cúpula de coronéis mostra o quanto ele não foi recepcionado como esperava. E aí teve que substituir o grande comando porque não teria o respeito, porque realmente não passou pela parte hierárquica, não cumpriu os ritos [o posto de capitão na hierarquia da PM está abaixo do posto de coronel]. Ele é considerado um “de fora”. Inclusive Derrite sai criticando a polícia. Teve um ato de que ele participou na Avenida Paulista com o general [Augusto] Heleno [ex-ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência durante o governo Bolsonaro] em que ele fala que ele saiu [da polícia e foi para a carreira política] porque estava sendo perseguido, porque matava pessoas. Então Derrite é uma figura polêmica, que se constrói pela polêmica. Acho que essa é a principal diferença entre ele e o Fleury [Luiz Antônio Fleury Filho, ex-secretário da Segurança entre 1987 e 1990, que além de promotor, foi policial militar antes de chegar ao governado de São Paulo], por exemplo.
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Ponte ― Por quê?
Henrique Macedo ― O Fleury sai [da PM], vai para o direito, depois vira promotor. Mas o Fleury, lá no final da ditadura, já pega um mecanismo do autoritarismo e aproveita o governo Quércia, que foi um dos períodos em que a polícia mais matou, mil e poucas mortes por ano, sobe e ascende com esse discurso linha dura. Era aquele discurso do começo da redemocratização, de que o crime e a violência tinham aumentado de maneira geral. E aí me parece que, pelos estudos que o GEVAC conduz e pela minha pesquisa também, isso vai aumentando já no período democrático, a partir dos governos do PSDB, que vão dando credibilidade para a polícia. Aí você tem o governo Serra [2007 a 2011], que coloca o [procurador Antônio] Ferreira Pinto. E o Ferreira Pinto, que era policial, depois virou promotor, foi secretário da Administração Penitenciária [2006 a 2009] antes de voltar como secretário da Segurança Pública [de 2009 a 2012]. Ele faz uma reviravolta e literalmente reestabelece algumas balizas daquela década de 90, daquela ideia de polícia.
Ponte ― Que reviravolta?
Henrique Macedo ― Ele coloca o Telhada no governo [Coronel Telhada, comandante da Rota entre 2009 e 2011 e atualmente deputado federal pelo PP]. O Telhada começa a abrir de novo um caminho desse perfil policial, mais autoritário, que vê na morte, inclusive na execução, uma solução para a segurança pública e uma forma também de se fazer política. E me parece que ele fez escola porque até o filho dele hoje já é deputado estadual [Capitão Telhada, eleito pelo PP em 2022]. O Derrite vai nessa construção. Então, o próprio governo do estado de São Paulo deu as balizas para essa ideia de combate ao crime, de super violência contra o crime, de execução de pessoas como se fosse uma resposta e uma solução. Ao mesmo tempo, deu a brecha que eles queriam que é a questão das moralidades.
Ponte ― Em que sentido?
Henrique Macedo ― Outro fenômeno que me parece mais plausível para Derrite do que para outros, é a associação com o bolsonarismo, que também trago no livro. Para eles é maravilhoso porque conseguem falar abertamente o que pensam, o que querem, e ter o resultado [político] que têm. Hoje o secretário da Segurança Pública conseguiu transformar a Polícia Militar quase à sua imagem e semelhança: de pouco controle, que quase não afasta [policiais que se envolvem em mortes], diz que criança morreu e está tudo bem, foi só um efeito colateral. Aí, perde o controle. Mas essa figura só pôde assumir porque lá atrás teve um começo, também o golpe sobre a Dilma [Rousseff, que sofreu impeachment em 2016] e a ascensão do bolsonarismo, que ele [Derrite] soube captar muito bem. E essas figuras foram também muito impulsionadas pela midialização da polícia, os programas da Rede TV, tipo Operação Policial, Datena, e tantas outros, que depois vão para as redes sociais. Elas são usadas para vender esses discursos, principalmente de matar ladrão, de perseguição. Tudo que eles vendem é um grande pacote, parece de filme de ação dos anos 90, mas agora numa versão real muito problemática — mas que dá rendimento político. Além disso, não existe uma priorização dos crimes contra a vida, mas dos crimes contra o patrimônio.
Ponte ― Como isso se dá?
Henrique Macedo ― Não se pensa no mercado criminal como um mercado — se pensa na figura do bandido e do ladrão. E aí é muito perigoso, porque [a política de segurança] fica tão focada nisso que os preconceitos vão levando a vários outros lugares eaí você tem uma destituição geral dos direitos, se governa com o crime, não contra o crime. Essa ideia de se governar com o crime significa não só receber dinheiro ou corrupção, significa basicamente depender dele para fazer as suas jogadas políticas. Então, Cláudio Castro [governador do Rio de Janeiro] e todos os governadores às vezes precisam dessa ideia de criminalidade para dizer que existe uma crise, e com a crise estabelecer seu poder.
Ponte ― Tanto o Derrite quanto o Telhada foram policiais da Rota. Agora vamos ter um vice-prefeito na cidade de São Paulo que também fez parte do batalhão. Eles vendem muito o “padrão Rota” de policiamento e o próprio secretário mudou a pintura de viaturas para ficarem parecidas com as da Rota. O que é esse padrão?
Henrique Macedo ― O primeiro componente é todo mundo querer ser especial em determinada maneira. Então, não basta fazer a polícia do “arroz e feijão”, o patrulhamento ostensivo, que a Polícia Militar chama de 01, que é basicamente entrar numa viatura, ter um parceiro e atender chamada do 190. Parece que, para muitos policiais, isso não satisfaz. Tem aí também o processo de vinculação, pelo menos simbólico, de militarização, de que todo mundo quer fazer parte de uma força especial — e a Rota se constituiu ao longo desses anos como uma marca. Eles se constituíram como um branding, no sentido marqueteiro mesmo. Hoje em dia tem caneca, os policiais podem andar com aqueles anéis de caveira escrito Rota, Força Tática ou Baep [Batalhões de Ações Especiais, que foram criados a partir do governo de Geraldo Alckmin e aumentaram exponencialmente na gestão João Doria]. A Rota foi a primeira, se consolidou ao longo das décadas, inclusive por fenômenos como falei da midialização da polícia. E aí de novo a importância do Telhada nessa nova geração e como ele vira esse um grande P5, como eles chamam: um setor de comunicação que ele vai trazendo para dentro da unidade, da Rota, a imprensa de uma maneira “mais amiga”. Não são grandes veículos, não era a Globo, de que eles não gostam também porque eles abraçam o bolsonarismo. Não é a Record, mas são programas policiais, pessoas em específico, que eles deixam entrar na unidade, acompanhar as ocorrências de dentro das viaturas etc. Há nuances também porque eles vão levar e vão mostrar aquilo que eles querem, que eles sempre fizeram, que eles estão acostumados. E aí começaram a criar essa ideia dentro da própria PM e também fora dela, de que a Rota, assim como o Bope no Rio de Janeiro, é “verdadeira polícia”.
Ponte ― Uma ideia de que esse tipo de ação é efetiva?
Henrique Macedo ― Eles vendem muito o discurso que cabe dentro da ideia fantasiosa de guerra às drogas, como uma resposta viável, efetiva, como policiais que não se dobram e agem com violência dentro de um narco-estado. Só que tudo que a Rota fez de 2009 a 2012, no período do Telhada e que pegou um pouco do Derrite, não mudou a dinâmica do PCC. O PCC hoje está presente em vários continentes, não só nos estados brasileiros e em outros países. Você não tem resultado, portanto: você tem morte, mas essa morte também pouco importa no fim das contas. Não importa porque tanto faz se o PCC reduziu ou aumentou, se a insegurança e os índices de sensação de violência aumentaram ou não, porque hoje eles têm seus cargos políticos. No fundo, eles esperam que nunca acabe o crime porque assim eles vendem a sua ação de Batman, de Capitão Nascimento, de Telhada — de super-heróis em confronto com o crime. Aí, todo mundo [dentro da polícia] quer fazer parte, quer dar tiro de fuzil, ter uma morte no currículo etc. É uma síndrome de herói, que o militarismo entrega.
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Ponte ― Você traz no seu livro visões diferentes dos policiais sobre o que é fazer o trabalho de policiamento e afirma que eles em geral não gostam de atuar em situações que você chama de “questões sociais”, resoluções de conflito, perturbação de sossego ou violência doméstica. O que querem é correr atrás de bandido.
Henrique Macedo ― Todas as pesquisas mostram que quanto mais pender para o lado do militar e menos para o lado do serviço policial, você tem, no fim das contas, um resultado pior [do ponto de vista da segurança pública]. Tem muito mais violência e não tem administração de conflito. A polícia devia buscar consensos antes de qualquer tipo de violência. Ter o policial como um mediador. Porque potencialmente só a presença de quem pode fazer uso da força já deveria baixar a temperatura dos conflitos. Mas o Brasil se consolidou na questão de atirar primeiro e perguntar depois e isso colocou o conflito em outro nível: primeiro tem que ser a violência. E aí vem também uma resposta violenta. A própria polícia gera medo na população e não resolve o conflito. Isso também inviabiliza, na minha leitura, as discussões sobre as câmeras corporais. A violência e esse padrão Rota de tiro, porrada e bomba inviabilizam até a discussão da corrupção policial, que é deixada de lado. E aí também tem uma disputa sobre quem fala de segurança pública porque polícia não quer ter uma contrapartida da sociedade. Principalmente no estado de São Paulo, a Polícia Militar gosta de verticalização. Ela quer fazer tudo ela mesma. Então mantém hoje um centro, que é o Centro de Altos Estudos, dentro do Barro Branco [academia de oficiais], em que eles mesmos fazem suas pesquisas. Eles são muito focados em si mesmo e nessa verdade do que é o policiamento ostensivo. Mesmo entendendo que parte do trabalho policial, que é o “arroz com feijão”, que é o patrulhamento, o atendimento bem feito para as pessoas que foram vítimas, não só para a questão de perseguir alguém, mas o atendimento, o acolhimento para outros serviços, que são o que os estudos mostram que dá legitimidade para a polícia, eles não gostam de fazer. Para eles, o verdadeiro trabalho policial é essa pirotecnia que eles gostam. Alguns coronéis obviamente não pensam assim e alguns outros oficiais também, mesmo entre os praças, mas eles são muito poucos dentro da corporação para fazer algum tipo de movimento que realmente faça efeito. Aí essa parte de inteligência, que deveria ser um bom trabalho, fica invisível, é dispensável na visão deles, porque não é “o verdadeiro trabalho policial”.
Ponte ― Seu livro aborda até o final do governo João Doria-Rodrigo Garcia, em 2022, que começou com um discurso incentivando a violência policial e depois foi mudando. Toda a vez que a violência policial escala a ponto de gerar uma cobrança maior ao governo, as autoridades assumem um discurso de “fato isolado”, que não representa a instituição Polícia Militar. Como você vê esse posicionamento?
Henrique Macedo ― Eu acho que o Doria mudou o discurso não só por causa da reverberação, porque ele fomentou esse padrão Rota de ação violenta, com o aumento do Baeps, como eu trago no livro. Ele viu que começou a ser alvo de comentários e idealizações violentas, inclusive por parte de policiais. Eu acho que isso chocou ele. E, de outro lado, ele também estava querendo pender para uma lógica política que era de moderação, o que é muito diferente hoje do Tarcísio. Na verdade, Tarcísio e Doria nunca foram moderados. Essa ainda é a lógica, infelizmente. Trinta anos pós-Constituição e nada mudou, ou mudou muito pouco. Apesar de a polícia como um todo universalizar que os policiais em sua maioria não são violentos, é importante dizer que sim — a polícia é violenta e produz resultados violentos. E não são só as mortes que contam, são as violações de direitos humanos. Da abordagem diferencial, parando pessoas negras, que já é violenta. Essa hipervigilância já é violenta por si só. Vão destruindo o sujeito, o eu, dessas pessoas pretas, periféricas, pobres, de uma maneira geral, que vão sendo abordadas recorrentemente, não por padrões de segurança pública ou de direito, mas por puro preconceito.
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Em segundo lugar, esse é um discurso muito recorrente, o da “laranja podre”. É mais fácil responsabilizar ou o policial ou o “fato isolado” para preservar a instituição. A instituição aparece como algo quase idealizado e santificado, como se não fosse possível que a ação de alguém na rua refletisse um comportamento ou um processo equivocado que a própria instituição tem. Eles usam essa lógica de que “não é toda a polícia”, mas é só para autopreservação. E deixam a violência acontecer contanto que não dê reverberação negativa. Não há nenhum coronel da PM, não há major, capitão, tenente, sargento ou cabo que não saiba que existe violência, que existem irregularidades de procedimento por parte de seus subordinados. Só não pode ter um efeito negativo. E aí vem a diferença, por exemplo, do Doria para o Tarcísio. O Doria fazia aquele discurso “veja, isso não faz parte da polícia, vamos afastar os policiais” etc. O Tarcísio e o Derrite fazem o contrário porque se promoveram politicamente e entraram com o discurso de “nós não vamos afastar os policiais”. Só afastaram os policiais do caso do estudante de medicina porque ele não era de família pobre, então não tinha como defender. Tinha imagens claras também na execução. Por mais que tivesse ali uma ocorrência complicada em algum sentido, os policiais não souberam conduzi-la pacificamente. Eles estão acostumados a atirar como a primeira forma de ação. Esse é o padrão da polícia. Quando eles chegam na rua, todos os policiais, então os tenentes, e até os outros que mais convivem com praças, dizem “esquece que você aprendeu na escola que aqui você vai
aprender a polícia de verdade”.
Ponte ― Já fiz entrevistas e acompanhei julgamentos em que os policiais dizem que o que eles enfrentam nas ruas é diferente do que está nos manuais, apesar de os procedimentos serem bem detalhados sobre o que fazer para reduzir o risco tanto da pessoa a ser abordada quanto do próprio policial. Se existe toda uma normativa para dar segurança, por que eles não seguem?
Henrique Macedo ― De um lado, a maioria desses procedimentos não tem muita legitimidade na parte de baixo da hierarquia da polícia. Eles não fazem parte dessa construção [que é feita por oficiais, ou seja, nos postos altos da hierarquia] e acaba entrando na lógica de cima para baixo. Eles leem esses procedimentos como um grande amarrador. Dizem que “estão querendo amarrar a minha conduta”, é a mesma desculpa para a questão das câmeras corporais que veio de estudos de oficiais da própria PM. [Para os praças] se um policial vai parar de fazer certas coisas porque está com medo de ser punido, é muito ruim. Ele não está sendo um bom trabalhador policial. Quando, na verdade, a ideia das câmeras era o contrário, para mostrar que eles seguem as regras. Outro problema é que a gente não tem acesso a esses procedimentos para poder questionar enquanto sociedade. Então, você tem muita produção de normas e baixa fiscalização. Você vai ter muito mais gente punida hoje na PM por qualquer outra coisa como, por exemplo, não prestar continência devidamente, não engraxar bem o sapato, chegar atrasado, do que por descumprir procedimentos operacionais padrão [que tratam de ações nas ruas]. Você tem ali que para começar os trabalhos se faz de outro jeito do que foi aprendido na escola e a própria instituição abre mão das suas próprias regras e não quer efetivá-las no sentido geral, porque não cobra, não efetiva no dia a dia, não produz, inclusive, ações recorrentes de educação para os próprios procedimentos operacionais padrões [os POPs]. Você tem muito mais isso [reforço dos procedimentos] acontecendo em unidades especializadas, mas com uma abordagem voltada à preservação do policial, mais do que para o cidadão. Além de que você tem uma baixa instrução contínua dos policiais que mais têm interface com a gente na rua. Eles têm muito trabalho, fazem “bicos” e têm pouco reforço do que aprenderam na escola. Quando eu fui para a Rota, por exemplo, o discurso dos policiais lá era de que não se ensinava nada de muito especial. E que a parte realmente do homicídio e violência era um aprendizado à parte, fora dos procedimentos. Esse é o grande poder que os policiais de rua acabam tendo quando entram em interface com a gente. Eles podem fazer o que quiserem. Por isso também as periferias são sempre o melhor lugar para esse perfil de policial trabalhar — porque eles sabem que, se der problema, naquele lugar ninguém vai reclamar muito ou, se reclamar, não vai ser ouvido. Aí o poder dele cresce e ele pode fazer o que quiser porque não será punido. É um reforço negativo.
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Ponte ― Você aponta que apesar de a PM ter hierarquia, disciplina e toda uma estrutura militarizada, isso não é suficiente para a fiscalização. Por quê?
Henrique Macedo ― Quando fui analisar a quantidade de pessoas no efetivo da PM fui muito inspirado no trabalho que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública fez sobre salários. Fui verificando que o número de oficiais é muito reduzido em relação ao número de praças [parte baixa da hierarquia da PM]. Além disso, dentro do número de praças, você tem muito mais soldados e cabos do que sargentos. Isso é um grande problema no sentido de capilaridade, porque fica difícil uma pessoa assumir uma equipe tão grande. Mas o problema é que, no caso da Polícia Militar de São Paulo, criou-se uma grande elite, que são os oficiais da Polícia Militar. Eles são poucos, mas concentram muito poder. Então você tem, por exemplo, principalmente no interior de São Paulo, capitães que cuidam de grandes áreas, com milhares de policiais para dar conta, várias burocracias. Acaba que o soldado e o cabo [que são os postos mais baixos] vão ganhando mais autonomia e poder no dia a dia, porque não são supervisionados. São muito poucos os sargentos que podem fazer a supervisão dessa tropa. O número de tenentes é ainda menor, e assim por diante. Quanto menos gente, mais eles [os oficiais] podem receber. Eles preferem acumular poder e dinheiro do que efetivamente prestar um bom serviço para a população e democratizar esses cargos. O que eu fui percebendo na pesquisa é que esses oficiais querem se afastar ou ter o mínimo contato possível com a rua. Eles querem se afastar, como é dito na literatura policial, do que está mais perto do lixo, do que é ruim, e estar em posições mais dignas pelo fato de terem formação em direito ou até em estatística. Preferem estar num nível gerencial e se limpar da “sujeira da rua”. Com isso, vai se dando mais autonomia para o policial que está na rua, sem grande supervisão. E a rua acaba virando, no final das contas, o ambiente perfeito para os praças sejam os direcionadores do seu próprio trabalho.
Ponte ― Ou seja essa hierarquia toda dentro da PM que se fala é relativa?
Henrique Macedo ― Se eles cumprirem certinho, fizerem “um papel”, como eles dizem, que é fazer a documentação e parecerem que estão trabalhando dentro do esperado, ninguém vai punir eles. O nível gerencial vai olhar para eles como para um número: estão cumprindo os pontos de patrulhamento? Não vai avaliar se estão ou não produzindo de fato ou garantindo direitos, mas se eles estão cumprindo as balizas do que é esperado das metas profissionais deles. E aí é o que eu chamo de “enxugar gelo” porque essa autodeterminação dos policiais da rua vai criando pessoalismos. Eles mesmos vão vendendo depois segurança, fazendo “bicos”, criando uma dinâmica de empoderamento onde eles vão se tornam “os donos da rua”. No final das contas, a polícia se vende muito como hierarquizada, mas é baixamente hierarquizada, porque, na ponta, quem tem mais poder e quem às vezes tem mais capacidade de decisão vai ser pouco fiscalizado.