Em vídeo, manifestantes contrários ao isolamento social dão a entender que PMs homenageando colega de farda na avenida Paulista apoiavam protesto pró-Bolsonaro
Um vídeo que circulou no Twitter no último domingo (24/5) mostrava policiais militares na avenida Paulista, no centro da cidade de São Paulo, ao lado de viaturas paradas no meio da pista e o barulho característico das sirenes ligadas. Todos parados, perfilados, prestando continência.
Na narração do vídeo, uma voz masculina empolgada, parece comemorar a cena e brada: “Isso é Brasil, caralho. Aí ó. Vai tomar no cu. Onde você vê isso”. Muitos aplausos podem ser ouvidos e vistos entre bandeiras do Brasil, camisetas em apoio a Jair Bolsonaro e uma grande faixa contra o governador de São Paulo: “Fora, Doria”, diz o letreiro sobre pano verde.
Não demorou muito para que o vídeo passasse a ser compartilhado nas redes sociais com duas mensagens diametralmente opostas. Uma formulada por bolsonaristas empolgados com aqueles homens fardados que estariam “prestando continência” ao presidente e ao protesto que ocorria contra o isolamento social e negando a evidente pandemia que assola o país, e que já matou mais de 23 mil brasileiros.
Naquele mesmo dia, uma carta assinada por militares da reserva do Exército brasileiro manifestava apoio ao ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, que falou em “consequências imprevisíveis” caso Bolsonaro seja obrigado a entregar o celular para perícia na investigação que apura interferência na Polícia Federal e fazia duras críticas ao Supremo Tribunal Federal.
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A outra de pessoas indignadas com a cena e admitindo que, sim, os PMs paulistas estavam mesmo reverenciando a manifestação, o presidente e havia ali o ensaio para uma possível tomada militar.
Como diz o apresentador Fausto Silva em frase que virou meme: “Errou!”.
Não demorou muito para que a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo divulgasse uma nota que explicava o ocorrido: uma homenagem da corporação ao soldado Lucas Alexandre Leite, 25 anos, que morreu em serviço na noite do sábado e estava sendo sepultado na tarde do domingo.
Leite integrava o 2º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano (BPM/M) e foi enterrado no Mausoléu da PM, no cemitério do Araça, localizado a menos de 3 quilômetros do local da avenida Paulista onde a filmagem foi feita.
“A cerimônia aconteceu de forma breve, diferente do que é comumente realizado, devido a situação sanitária em que o país se encontra e na impossibilidade de reunir muitas pessoas nesse último ato que merece um PM que dedicou à vida em prol da população. Durante a tarde, em todo o Estado, os policiais do serviço operacional, que não estavam no atendimento de emergência, pararam as viaturas, acionaram as sirenes e prestaram continência ao soldado durante um minuto”, diz a nota da PM.
Algumas figuras políticas, entre elas o deputado federal Eduardo Bolsonaro, também tentou tomar a narrativa e induzir as pessoas a acharem que a Polícia Militar apoiava Bolsonaro durante a homenagem ao colega de farda.
Mesmo alertado por seguidores do suposto engano, o filho do presidente não se corrigiu. O mesmo aconteceu com o ex-deputado e presidente do PTB, Roberto Jefferson, também disseminou a fake news.
A mensagem também manda recado ao governador Doria: “Em SP muita gente na Paulista pedido Fora Doria. O governador mandou a Polícia Militar esvaziar a Avenida. Só que a PM parou e bateu continência para o povo. Ordem inconstitucional não é para ser cumprida. Doria age contra a lei e a Constituição. Vai acabar sofrendo impeachment”.
O tucano também usou o Twitter para desmentir a informação: “É absolutamente falsa a notícia que Policiais Militares de SP prestaram continência hoje [24/5] a manifestantes. Os PMs prestaram continência e fizeram um minuto de silêncio nessa tarde, em homenagem ao soldado Lucas Leite, que faleceu em serviço ontem à noite na capital”.
Um perfil apócrifo que parece ser de policial admitiu o “erro”:
A aparente confusão entre o que de fato aconteceu e a narrativa que bolsonaristas tentaram construir não é à toa. Durante as eleições de 2018 que levaram Jair Bolsonaro à Presidência houve uma aproximação muito grande das polícias militares com o ex-capitão.
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Em agosto de 2018, o então corregedor da PM paulista, coronel Marcelino Fernandes, declarou apoio a Bolsonaro, afirmou que Carlos Brilhante Ustra não era torturador e negou que o Brasil tenha passado por uma ditadura: “os militares foram os que menos torturaram”, disse em entrevista à Ponte.
Dois meses depois, por exemplo, ainda no período da campanha, a nossa reportagem cobriu uma manifestação em apoio ao então candidato do PSL na avenida Paulista em que a PM assumiu um lado: o do bolsonarismo. Policiais que trabalhavam no protesto deixaram manifestante agredir repórter e expulsaram jovens da periferia que faziam “rolezinho“. A corporação, à época, negou qualquer preferência partidária.
Figuras políticas egressas de carreiras militares também construíram o apoio ao Bolsonaro em suas bases. Um deles é o deputado estadual Coronel Paulo Adriano Telhada (PP), ex-comandante da Rota, a tropa mais letal da PM paulista, que é apoiador inconteste de Bolsonaro e defensor da máxima “bandido bom é bandido morto”.
O filho dele, capitão Rafael Telhada, em fevereiro deste ano, quando a Ouvidoria da Polícia de SP divulgou relatório que indicava que a Rota havia matado 98% mais pessoas no ano passado na comparação com 2018, pediu mais mortes: “que venham os 200% em 2020“, escreveu. O delegado Rafael Vallejo Fagundes também comentou nas redes sociais sobre o mesmo tema e falou em “dobrar a meta”, o que mostra que o discurso de defesa da letalidade policial encampado por apoiadores do presidente não é uma exclusividade da Polícia Militar.
Ainda sobre o apoio aberto de policiais ao discurso de violência e das armas, alinhado a Bolsonaro e seus apoiadores, o episódio do massacre de Paraisópolis, quando uma ação policial deixou 9 jovens mortos em um baile funk, em dezembro passado, é mais um exemplo. O tenente Bruno Evilásio Mattos comemorou a operação com a hashtag #BolsonaroPresidente.
O senador Major Olímpio (PSL), do mesmo partido que elegeu o presidente, agora sem partido, é outro que fez campanha para Bolsonaro e é ferrenho crítico de João Doria, tendo, inclusive, protagonizado um bate-boca com o governador que quase terminou em agressão no início da pandemia. Após a saída de Sérgio Moro do Ministério da Justiça e Segurança Pública e as denúncias de suposta interferência na Polícia Federal por parte do presidente, o parlamentar, que se definia como “bolsomorista”, tem dado sinais de que vai desembarcar desse apoio irrestrito a Bolsonaro.
As críticas de PMs ao governador Doria, que dividiu palanque com Bolsonaro e hoje se tornou um dos principais desafetos do presidente, também ajudam a construir esse quadro. O deputado estadual Major Mecca (PSL), embora não tenha caído no “conto da Paulista”, é apoiador de Bolsonaro e faz parte da turma que nega a existência de uma pandemia. Nas suas redes sociais, críticas diretas aos governadores João Doria e a Wilson Wiztel, e elogios ao presidente. “Eis que divulgaram as imagens da ‘polêmica’ reunião ministerial. Ficou comprovado aos brasileiros que temos um Presidente da República que é um homem verdadeiro e preocupado com o povo”.
Para Rafael Alcadipani, professor da Fundação Getúlio Vargas e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, existe uma construção simbólica do heroísmo das forças policiais aliado a uma leniência com as polícias do Brasil com o uso das redes sociais por parte dos policiais.
“Se filma ocorrência, o sujeito faz propaganda fardado. É tudo uma coisa de aventura, já que o trabalho do policial é fascinante. Filmar abordagem e perseguições”, explica. O caso recente que exemplifica isso aconteceu na Polícia Civil, quando o delegado Carlos Alberto da Cunha transformou em uma série policial a prisão de Jagunço, um integrante do PCC acusado de fazer parte do tribunal do crime da facção.
Alcadipani destaca o episódio do ex-corregedor ainda no período de campanha eleitoral. “A gente começa a ter durante as eleições uma politização com policiais fardados fazendo campanha para o Bolsonaro. O próprio corregedor da Polícia Militar postou uma foto com o Bolsonaro e defendeu o Ustra e a ditadura”.
O especialista comenta também o afastamento de Bolsonaro e governadores que já o apoiaram, e que agora discordam da forma com que o governo federal tem atuado frente à pandemia do coronavírus. “Você começa a ver uma série de influenciadores da polícia, como deputados eleitos e PMs da ativa fazendo postagens pró-Bolsonaro, fazendo parte desse ‘exército’ de Bolsonaro”, pontua.
Na avaliação do professor, não é descabido pensar que é justamente esse “exército” que vai defender Bolsonaro em um possível golpe, propagandeado nas entrelinhas pelo general Augusto Heleno.
“É muito sério que a PM permita que policiais fardados, usando o símbolo da instituição, usando armas da instituição declarem apoio ao presidente da República, que flerta diariamente com a quebra da ordem institucional”, critica.
“É inconcebível que um oficial da ativa faça críticas ao STF, que é o órgão máximo da Justiça brasileira. Policial não é analista político, policial tem que ser neutro”, continua.
Alcadipani nota uma quebra de ordem de hierarquia, tão valorizada na carreira militar. “A PM não ia deixar que um soldado ou oficial criticasse o comando da corporação. Mas permite que oficiais critiquem o STF em rede social. Hoje, se você pensar, o maior opositor do governador do estado é um ex-oficial da Polícia Militar [o atual deputado Major Mecca], que faz palestra dentro dos quartéis”, conclui.