Movimentos do Corinthians, Palmeiras e Santos explicam atos contra escalada autoritária no Brasil: “Olhamos e pensamos: enfrentamos o Estado juntos”
Há uma linha de pensamento no esporte que tenta separá-lo da política. Prega a independência e neutralidade. Ignora — e critica — atos como os punhos cerrados dos atletas Tommie Smith e John Carlos, na Olimpíada do México, em 1968, em apoio aos Panteras Negras norte-americanos, combatentes ao racismo nos Estados Unidos.
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Esse pensamento também considera errado movimentos no Brasil, como a Democracia Corinthiana, que na década de 1980 colocou o Corinthians no protagonismo do movimento contra a ditadura militar e a favor das eleições Diretas Já. O ex-jogador Sócrates ameaçou sair do país caso as diretas perdessem em votação no Congresso, como acabou acontecendo. Falou e cumpriu. O meia se transferiu para a Fiorentina, da Itália.
A mesma cobrança de isenção surge contra as torcidas antifascistas, empenhadas em combater a ascensão do fascismo no Brasil e as galopadas antidemocráticas movidas pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), como definem à Ponte.
São coletivos ligados ao Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Santos. Com certa dificuldade, deixaram de lado a rivalidade natural do futebol para colocar, acima de tudo, a defesa da liberdade no país. Mas não há unanimidade nem mesmo entre os próprios torcedores, já que alguns criticam aqueles que se uniram na Paulista. Chegaram a ser chamados de menos corinthianos ou menos palmeirenses por estarem “ao lado do inimigo”.
Na Avenida Paulista, em São Paulo, no último domingo (31/5), coletivos dos quatro grandes clubes do futebol paulista combateram juntos a ação truculenta da Polícia Militar quando reagiram a símbolos nazistas — a própria corporação reconheceu este como o estopim para o uso de bombas e bala de borracha contra o grupo.
“Foi lindo. No fim de tudo, descemos a rua todos zuados. Palmeirenses com corinthianos, são-paulinos, alguns santistas… Olhamos e pensamos: ‘hoje fomos foda. Enfrentamos o Estado juntos'”, conta Filipe Anarco, professor e integrante da torcida Palmeiras Antifascismo, a P16.
Afinal, como foi o processo de união dos corintianos, palmeirenses, são-paulinos e santistas?
“É algo não muito simples. Futebol é paixão e a história das rivalidades existe pela própria formação da sociedade, de extrema competitividade. É complicado”, admite Danilo Pássaro, estudante de história da USP e líder do movimento Somos Democracia, do Corinthians.
Outros, como o grupo Santos FC Antifascista, argumentam que não estavam alinhados com o ato original, marcado para o Vão do Masp. Estavam ali por movimento próprio e reagiram à ação da PM, como explica um integrante à Ponte.
“A gente foi na manifestação, mas não porque era algo organizado por grupos. Nós estávamos mobilizados para contrapor os fachos e fomos pra Paulista reforçar isso. Não fomos por causa da convocação. [Eu digo isso] Pra não gerar dúvida”, explica o homem, que pediu para não ser identificado.
Ainda que exista diferença e a independência de suas ações, parte dos grupos se uniu, de fato, em frente ao Masp. Colocaram acima dessas diferenças clubísticas o que consideram um inimigo comum: a ascensão autoritária.
“Existe uma escalada autoritária e o Bolsonaro pode utilizar a pandemia para a dar sua saída autoritária”, define o corintiano Pássaro. “Falar de fascismo em 2020, de golpe militar, manifestação contra o STF… Qualquer pessoa que estudou acha impensável isso voltar. Não! Está aí”, explica Anarco.
O santista prefere dizer que não estavam necessariamente contra a figura e as práticas de Jair Bolsonaro. “Fomos às ruas contra setores que estão se apoiando nesse governo para ampliar pautas de caráter fascista que refletem na política nacional. Não podemos perder a narrativa dentro das arquibancadas”, diz.
A Ponte tentou contato com a torcida Bonde do Che, a antifacista ligada ao São Paulo, mas não obteve retorno. Em sua página no Instagram, o coletivo disse que não fará “fechamento” em atos com as demais torcidas e lembrou da rivalidade violenta entre as organizadas.
“Apesar de no mundo cor de rosa da internet tudo ser lindo, a verdade é que uma torcida rival praticamente encabeçou o ato de ontem em resposta à provocação de um inimigo”, afirma a nota. “A causa é política, mas não vamos ser hipócritas de caminhar de mãos dadas com quem abriria nossas cabeças com uma barra de ferro na primeira oportunidade”, defende.
Distância parcial das organizadas
Há, no entanto, uma ação conjunta para retirar do foco as torcidas organizadas, grupos que não têm necessariamente ligação com as torcidas antifascistas. A ideia é não vincular diretamente os clubes aos atos.
“As manifestações foram autônomas e não impulsionadas pelas instituições [clubes de futebol e respectivas torcidas organizadas] citadas”, explica Alex Minduim, sociólogo que preside a Anatorg (Associação Nacional das Torcidas Organizadas), formada por 214 das 783 torcidas formalmente constituídas no país.
A Gaviões da Fiel, do Corinthians, puxou ato contra bolsonaristas em 11 de maio e alguns integrantes estiveram no protesto do último domingo. No entanto, os palmeirenses fazem questão de não associar suas ações com a Mancha Verde, organizada do clube. Anteriormente, outros palmeirenses registraram apoio aos atos a favor do presidente, contra o STF e a democracia.
No Facebook, Paulo Serdan, presidente da Mancha Verde, se posicionou sobre um membro, Fernando Paes Cândido, o Nandão, investigado pela Polícia Civil de São Paulo por apologia ao nazismo.
Como denunciado pela Ponte, ele aparece ao lado de símbolos usados pela Alemanha na Segunda Guerra Mundial e uma foto do ditador genocida Adolf Hitler. “Fique bem claro em definitivo a Mancha não é e nunca foi lugar pra Ideologia Fascista e ou Nazista. Incomoda muito o fato de termos atingido 100 toneladas de alimentos [doados] e estarmos entrando em todas as comunidades em SP e, mesmo assim, sermos questionados se temos ideologia racista ou fascista”, posicionou-se, dizendo que Nandão “jamais voltará a pisar em uma de nossas sedes”.
Segundo Anarco, a rivalidade política está presente dentro dos próprios clubes e torcidas. “Existe rivalidade dentro dos próprios clubes em si, como o Palmeiras. A linha fortíssima nas organizadas que não querem ser vinculadas a esse tipo de ação, um discurso de serem apolíticos”, diz. “Tinha vários da Mancha apoiando [o ato de domingo], mas evitava sair em foto para não associar a imagem da Mancha”.
Política e futebol se misturam, sim
Com as torcidas antifascistas, a união de esporte e política voltou à tona e ao debate. Quem estuda o passado cita os movimentos contrários à ditadura com o início de tudo. Agora, uma nova história é escrita.
Segundo o historiador e jornalista Celso Unzelti, a primeira faixa a favor da Anistia, dado pelo governo militar em 1979 para quem combateu a ditadura e também aos seus integrantes, partiu da torcida do Corinthians em um jogo contra o Santos.
“Ali já tinha um posicionamento. A própria Gaviões nasce como uma torcida contra o Wadih Helu, que era uma espécie de cópia da ditadura militar dentro do Corinthians. Mandava bater em jornalista. Era, inclusive, político, se elegeu pela Arena, partido da ditadura”, explica.
Unzelte relembra que, à época, o futebol era considerado alienação. Havia uma dicotomia: enquanto falavam em “pão e circo”, surgiam movimentos a favor da abertura política. No Brasil, detalha, isso se dá pelas organizadas. Em outros países, os próprios clubes, instituições constituídas, possuem este histórico combativo.
“É um momento importante já que os clubes de futebol em si não tomam essa iniciativa, muito pelos comprometimentos políticos que eles têm. Então as torcidas estão fazendo esses papéis. O futebol como instituição se posiciona muito pouco”, define.
Para ele, as organizadas foram reconhecidas por “se envolver em encrenca” nos últimos anos. “Também por uma questão social dos jovens querendo se identificar nos grupos, o que dá um aspecto meio miliciano para as organizadas”, justifica.
No entanto, considera positivo os coletivos que puxam esse movimento combatente ao fascismo, como a Gaviões, mas acredita ser temerário fazer qualquer comparação entre as brigas que ocorrem com torcedores rivais e o ato de agora.
“Relacionar as duas coisas é de interesse de muita gente para desvalorizar esse momento. Misturar é perigoso”, diz. “Ninguém está falando que torcida organizada é lugar de anjinho. Mas estão fazendo, tomando uma atitude que muita gente boa não está tomando”, pontua.
O historiador condena quem defende a tese de que futebol e política não andam lado a lado. “Quem fala que futebol e política não se misturam? Quem tem alguma coisa a esconder!”, afirma. “Um político corrupto, um dirigente que desvia dinheiro do clube. É para esses que não interessa misturar futebol e política, é para quem tem alguma coisa a esconder na política”.
E alerta: “Se você vir esse tipo de intenção, desconfie. Eu não acho bem intencionada. É, no mínimo, uma atitude de quem quer lavar as mãos em um momento em que não se pode lavar as mãos nesse país”, conclui.
Um novo ato pela democracia, antirracista e antifascista está marcado para o próximo domingo (7/6), na avenida Paulista, a partir das 14h. Nenhum das torcidas reivindica o chamamento do ato.