Como uma amizade no Facebook levou à condenação de jovem negro

    Fernando Henrique dos Santos, 27 anos, foi condenado a 8 anos de prisão acusado de roubar a empresa em que trabalhava; além do Facebook, ele teve sua voz reconhecida por áudio do WhatsApp

    Fernando Henrique foi preso acusado de roubar a empresa em que trabalhava | Foto: Arquivo pessoal

    Ainda não havia amanhecido quando Fernando Henrique dos Santos, 27 anos, saiu de casa em 23 de janeiro de 2020. Sem horário fixo, Fernando recebeu um dia antes os seus horários de trabalho. Naquele dia, saiu de casa no Guarapiranga, Jardim São Luís, na zona sul da cidade de São Paulo, por volta das 4h da manhã, para ir para o trabalho, em Santo André (Grande SP). Mas, por volta das 9h, foi preso pela Polícia Civil, acusado de roubar empresa que trabalhava.

    Fernando é formado em educação física, mas, por não conseguir emprego na área, prestava serviço para a transportadora Golden Sat, por meio período, como escolta. A dona de casa Juliana Lopes dos Santos, 27 anos, esposa de Fernando, conta à Ponte que ele dava aula particular como personal trainer depois de sair da transportadora e, no fim do dia, ainda treinava, de forma voluntária, adolescentes para os campeonatos em uma comunidade próxima de sua casa.

    “Nos finais de semana, ele gostava de jogar bola com amigos, pai e irmão. Depois do futebol se reunia com a família, sempre presente na vida de todos, homem de coração lindo, que não mede esforços para ajudar”, define Juliana.

    “O Fernando mora em comunidade sim, tem a pele negra sim, mas onde moramos e a cor da nossa pele não define nosso caráter. Queremos Justiça. Provando a inocência do Fernando vamos mostrar que pobres e negros têm valor. Já estamos cansados desse racismo estrutural”, completa.

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    Segundo a investigação, Fernando se tornou suspeito de um roubo de carga após ter sua voz reconhecida pela vítima, em um áudio enviado via WhatsApp para um dos assaltantes durante o roubo. A partir daí, os policiais procuraram as redes sociais do jovem e encontraram em sua lista de amigos no Facebook outro jovem que teria as “características de um dos roubadores e tatuagens descritas pela vítima”.

    Essas duas provas bastaram para que a Polícia Civil, o Ministério Público e o Tribunal de Justiça de São Paulo considerassem Fernando como culpado. Em 1º de setembro de 2020, ele foi condenado a 8 anos de prisão. Cumpre pena de regime fechado no Centro de Detenção Provisória de São Bernardo do Campo (Grande SP).

    Na sentença condenatória, o juiz Pedro Corrêa Liao, da 2ª Vara Criminal e de Crimes Contra a Vida da Comarca de São Caetano do Sul, do TJ-SP, afirmou que “a vítima foi convincente ao asseverar ter reconhecido familiaridade na voz de Fernando Henrique ao escutar a conversa do condutor do veículo em que estava após ter sido sequestrado pelos roubadores, com um interlocutor, pelo viva-voz, mesmo sem saber que aquela voz era de Fernando Henrique”.

    Fernando é formado em Educação Física pelo Centro Universitário Ítalo Brasileiro | Foto: Arquivo pessoal

    O juiz também apontou que a defesa “desistiu da realização de perícia de voz, prova esta que poderia, se o caso, afastar a participação do réu na empreitada criminosa” e que a vítima “resolveu revisar os áudios dos grupos do aplicativo WhatsApp para verificar se alguma voz seria reconhecida pela referida vítima, o que acabou acontecendo, sem que fosse indicado o nome de Fernando Henrique, o que afasta qualquer tipo de possibilidade de perseguição”.

    O juiz completou que “não é mera coincidência que o acusado Igor, reconhecido pela vítima como indivíduo armado que se aproximou da moto no momento da abordagem inicial, tenha vínculo de amizade com Fernando Henrique (inicialmente negado sob a pecha de “amizade virtual”, mas posteriormente confirmado por se tratar de amizade desde a infância), que teve a voz reconhecida pela aludida vítima durante a ação criminosa”.

    Fragilidade nas provas

    A pedido da Ponte, a advogada criminalista Débora Roque, que auxilia a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, analisou o processo que condenou Fernando Henrique. Para Roque, o processo “não foge muito de uma condenação de réus com provas frágeis, que é corriqueira no sistema judiciário brasileiro”.

    “Percebemos que o acusado Fernando foi condenado com base na declaração de uma testemunha que diz ter reconhecido a voz dele, por meio de um áudio enviando no WhatsApp. Quando a acusação é frágil, dificulta muito o trabalho da defesa, pois a pessoa não sabe do que tem que se defender”, explica.

    Por isso, continua a especialista, a fragilidade na prova reflete negativamente nos princípios da ampla defesa e do contraditório. “Lendo o processo também percebemos que o advogado foi impedido de ter acesso ao inquérito, ou parte dele quando da prisão temporária. Ou seja, além de provas frágeis, ainda teve esse impedimento de acesso da defesa”.

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    Para Roque, é inegável que esse tipo de processo e decisão condenatória “fere o Estado Democrático de Direito e relativiza as garantias individuais descritas na Constituição Federal”.

    “E não reflete positivamente na sociedade, pois o sistema judiciário é quem deveria defender as garantias individuais e não o faz. Importante lembrar que essas garantias foram conquistadas historicamente, o que significa que já passamos por um período em que não existia a ampla defesa e podemos afirmar que não deu certo, estamos apenas repetindo a história”.

    As investigações

    O boletim de ocorrência que levou à prisão de Fernando foi registrado em em 30 de outubro de 2019, às 11h26, no 3º DP de São Caetano do Sul (Grande SP). Segundo a vítima protegida, foram roubados 3.790 pacotes de cigarros da marca Philip Morris, 40 cartelas e 120 unidades de bala Fini, no valor de 30 mil reais. Os policiais Marcelo Vieira de Moraes, do GOE, e Eduardo de Oliveira Ramos, policial civil do 3º DP de São Caetano do Sul, são condutor e testemunha do caso, respectivamente. O caso foi registrado pelo delegado Tiago de Mattos Almeida.

    Na delegacia, a vítima narrou que foi abordada na rua José França Dias, em São Caetano, após efetuar uma entrega. Ele afirma que foi fechado por um carro preto e uma moto, com uma pessoa apenas, que pediu para a vítima segui-lo. No local que a vítima foi levada, já havia um caminhão estacionado, de porte médio e cor branca. Os assaltantes pediram para a vítima carregar o caminhão com a mercadoria.

    Ainda de acordo com a testemunha, o motorista da moto era branco, “gordinho” e de 1,70m aproximadamente, tinha olhos escuros, manteve a cabeça coberta pelo capacete de cor azul, vestindo calça cor preta e jaqueta também de cor preta. Quanto aos demais suspeitos, se recordava que um era “pardo”, usava cavanhaque, boné cinza, camiseta branca e outro, também “pardo”, tinha tatuagens nos dois braços, usando camiseta cor verde e calça jeans.

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    A vítima contou, ainda, que ficou sob a guarda de dois suspeitos e percebeu que outro suspeito falava no celular, pelo WhatsApp, com alguém que tinha uma voz familiar, que reconheceu como sendo de Fernando Henrique Santos, seu colega de trabalho. Em 6 de novembro o delegado Rodrigo Fiacadori, do 2º DP de São Bernardo do Campo, instaurou um inquérito policial para apurar o crime.

    A partir daí, a Polícia Civil pesquisou Fernando no Facebook e encontraram um amigo que possuía uma tatuagem de rosto no braço, que posteriormente foi reconhecido como Igor dos Santos, a quem Fernando informou que conhecia desde a infância. Fernando, Igor e Luiz Fernando Alves Ferreira, outro funcionário da empresa, foram apontados como os autores do roubo.

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    Em 8 de novembro de 2019 a promotora Roseli Naldi Souza pediu a prisão temporária dos três acusados, que foi acolhida pelo juiz Edson Nakamatu no mesmo dia. O promotor Newton José de Oliveira Dantas, porém, discordou da necessidade da prisão temporária, acolhida pelo juiz Pedro Corrêa Liao em 12 de novembro. Em 22 de novembro a delegada Luciara de Cassia da Conceição Campos assumiu as investigações do inquérito policial.

    Segundo a investigação, Fernando, por trabalhar na área de monitoramento de campo na empresa, teria passado informações privilegiadas para o seu “amigo” e comparsa, que efetuou o roubo da carga. Em 13 de janeiro de 2020, o juiz Pedro Corrêa Liao autorizou o mandado de busca e apreensão dos três suspeitos, assim como a prisão temporária. Os mandados foram cumpridos em 23 de janeiro, mas nada foi encontrado em nenhuma das duas residências (de Luiz e Fernando), Igor não foi localizado. Em 27 de janeiro, o promotor Newton pediu a prisão preventiva dos acusados.

    No momento do roubo, Fernando afirmou na delegacia que estava trabalhando em outro município e não se recordava a rota que fez aquele dia. Ele também contou que conhecia Igor do bairro onde cresceu.

    Para a delegada Luciara, “Fernando Henrique dos Santos não forneceu informações relevantes sobre o roubo ora investigado, entretanto, presentou algumas informações suspeitas sobre sua ‘amizade’ com o suspeito Igor dos Santos e outros funcionários – prestadores de serviços da empresa vítima”.

    Outro lado

    A reportagem procurou a Secretaria da Segurança Pública para cobrar um posicionamento sobre as investigações. Em nota, a pasta informou que “todas as circunstâncias relativas aos fatos foram investigadas por meio de inquérito policial instaurado pelo 3º Distrito Policial de São Caetano do Sul, já relatado ao Poder Judiciário em janeiro deste ano. Os envolvidos na ação foram presos”.

    A pasta não respondeu sobre os pedidos de entrevista feitos pela Ponte com os policiais civis Marcelo Vieira de Moraes e Eduardo de Oliveira Ramos, e com os delegados Tiago de Mattos Almeida, que registrou o caso, Rodrigo Fiacadori, que instaurou o inquérito policial, e Luciara de Cassia da Conceição Campos, que finalizou o inquérito.

    Apoie a Ponte!

    Também pedimos posicionamento para o MP-SP, solicitando entrevista com o promotor Newton José de Oliveira Dantas, que informou que a sua manifestação já está nos autos, e para o TJ-SP, solicitando entrevista com o juiz Pedro Corrêa Liao, que não pode emitir nota sobre questão jurisdicional e que os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento.

    A Defensoria Pública, que cuida atualmente da defesa de Fernando Henrique, foi procurada pela reportagem para saber quais os próximos passos para a defesa. Por e-mail, informaram que o assunto “será tratado exclusivamente no âmbito da Coordenadoria de Comunicação Social e Assessoria de Imprensa da Defensoria Pública”.

    Os advogados dos demais acusados também foram procurados, assim como a empresa Golden Sat. Até o momento de publicação, não obtivemos retorno.

    Matéria atualizada às 10h do dia 14/10 para inclusão dos posicionamentos do MP, do TJ e da Defensoria Pública

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