Especialistas apontam que prisão por desacato pretende maquiar detenção para averiguação, prática extinta no país; tratados internacionais condenam prática, de uso ‘amplo e que possibilita abusos’
No último domingo (1/7), a autônoma Stella Avalloni, que é mãe e participava de um ato contra a violência de Estado no centro de São Paulo, acabou detida por desacato. Na versão dela e de outras testemunhas, o PM Allan da Silva Araújo teria, de dentro da viatura, provocado um grupo de mulheres e mandado beijos para Stella, que foi questionar a atitude e foi presa. O crime de desacato à autoridade, descrito no artigo 331 do Código Penal, consiste em ofender funcionário público no exercício da função ou em razão dela. A lei, além de deixar de forma vaga qual sua aplicação correta, ainda põe em posições diferentes as ofensas a um funcionário público em relação ao mesmo ato contra qualquer outro cidadão.
A lei sobre desacato, criada em dezembro de 1940, visava proteger o prestígio e dignidade da administração pública e prevê pena de detenção por seis meses a dois anos ou pagamento de multa. Há aproximadamente dois anos, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) considerou que a lei de desacato viola a liberdade de pensamento e de expressão, prevista no artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica. Seis meses mais tarde, o próprio tribunal tomou decisão divergente, o que ampliou a dúvida sobre o desacato. Em março de 2018, o STF (Superior Tribunal Federal) considerou a lei válida em processo de um civil contra um militar em serviço.
No fim de 2017, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) entrou com uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) no STF para questionar a constitucionalidade da lei do desacato e revogar sua validade. Esta questão ainda não foi julgada no Supremo e, atualmente, vale o entendimento de que o desacato é, sim, constitucional, sendo assim compatível com os tratados internacionais. Segundo especialistas, a sua função acaba sendo a de inibir qualquer tipo de crítica da população quanto a atuação do Estado, algo considerado básico em uma democracia.
Para Thayná Yaredy, advogada criminalista e coordenadora-chefe do setor de bolsas e desenvolvimento do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), a acusação de desacato para efetuar prisões serve, na verdade, para maquiar a prática de detenção para averiguação. “Eu acho que tem faltado a nós explorar e discutir o fato de que a Polícia Militar tem usado um tipo penal extinto e já retirado do nosso ordenamento jurídico penal, também em respeito a tratados internacionais”, explica.
Thayná pondera que a situação se agrava se considerarmos que essa prática aconteceu em uma manifestação de forte presença de mulheres e onde mães protestavam contra a violência de Estado que atinge seus filhos. “Era um movimento de mães, que se manifestavam pelo direito à vida de pessoas pobres e negras. Então, mais do que criminalizar, o que a gente está falando aqui é sobre oprimir pela utilização do abuso de autoridade. O que a gente vê é que a polícia utiliza o monopólio estatal da violência legítima para validar suas ilegitimidades”, critica.
A também advogada Camila Marques, do Centro de Referência Legal em Liberdade de Expressão e Acesso à Informação da Artigo 19, explica que a amplidão do termo “desacato” possibilita abusos. “Em qual momento um policial pode se considerar desacatado e prender uma pessoa? Como é um texto extremamente subjetivo e genérico, sabemos que os agentes do Estado, muitas vezes e de uma forma geral, usam a legislação de desacato para inibir qualquer tipo de crítica. O crime serve para abafar qualquer tipo de denúncia, ceifar reivindicações. Temos um instrumento pensado na época da ditadura para afastar as pessoas do debate público, silenciar as vozes mais vulneráveis, mas sendo usado amplamente em uma democracia”, critica.
Segundo Camila, o fato do STJ ter considerado a lei incompatível com convenções internacionais não impossibilitou o Brasil de seguir uma lógica mundial. “Vimos, por conta desses posicionamentos, a Guatemala e Bolívia descriminalizando o desacato, o que países europeus já fizeram. Enquanto isso o Brasil fica na total contramão da tendência. Para além da manutenção no código penal, vemos o uso massivo dessa figura em diversos contextos: tem o caso da mãe ao protestar contra a violência do Estado, e é usado para deter muitos moradores de favela com o intuito de afastar essas pessoas de seu lugar de reivindicação, de contestar as ações abusivas do Estado”, prossegue.
No ato das mães, Stella foi levada ao 78º DP (Distrito Policial) de São Paulo e foi liberada depois de assinar um termo circunstanciado (registro de ocorrência para delitos leves, com pena de até dois anos de prisão) em que é ré por desacatar o PM Allan da Silva Araújo. Segundo a mãe, ele mandou beijos e a provocou, o que a fez reagir. “Senti completamente violada quando ele mandou beijos, não assediada sexualmente, me senti mal porque ele estava no trabalho e nunca tinha visto um policial agir daquela forma. Eles [policiais] queriam acabar com o ato, não tenho dúvida. Ficaram provocando até que alguém perdeu a cabeça e fui eu”, explica.
No termo, o delegado considera que existe “presunção de legitimidade” no depoimento do policial, que descreveu o ato como uma manifestação “para o fim da Polícia Militar” e que Stella teria o agarrado pelo braço antes de ser presa. Quando detida, a mãe teria resistido e, por isso, ficou com machucados, versão contestada por ela. “O que é desacato? Confrontar uma pessoa que te desrespeitou? Ela está em uma posição segura. A gente tem que abaixar a cabeça, é um estado de exceção”, analisa Stella, que diz sentir medo de ir à rua depois da prisão. Autônoma, ela aponta que deixou de fazer suas entregas e não irá a atos “por um tempo”, temendo represálias. “A base desses caras fica a três quarterões da minha casa. Vai demorar para eu voltar aos atos”, conta.
A advogada criminalista Thayná Yaredy questiona a ação em um ato pacífico. “Esse protesto especificamente era norteado pela perda de um ente querido pelo braço armado do Estado, que, por sua vez, não dá nenhum tipo de retorno quando isso acontece, como pagamento de indenização, de reconhecimento do excesso por parte das forças de segurança. São as mães que vão à frente do movimento, buscando direitos, buscando resguarda essas pessoas da violência, tentando caracterizar essas pessoas como seres humanos, signatários de direitos fundamentais”, analisa. “E, no final, acabam por não conseguir, porque são estigmatizadas como se fossem pessoas de subcategorias de direitos. O que acontece com elas é esse tipo de coisa, de ser oprimida, de ser provocada para reagir e a reação gerar a aplicação do tipo penal desacato”, continua.
Ela destaca que, quando colocamos a lente sobre situações de detenções arbitrárias para averiguações, podemos depreender um outro recorte, além do classista ou de motivação de gênero: o racista. “Quem são essas mães que pautam o movimento? As que tiveram seus filhos mortos. E esses filhos são em sua esmagadora maioria negros, esses filhos são pobres. E aí a gente vai tendo várias dessas intersecções de opressão. A gente não pode perder de vista que, no fundo, a gente está falando de uma opressão especifica, motivada pela estrutura do racismo”, pontua Thayná.