Conan, o Bárbaro, vira racista em tradução brasileira de quadrinhos

    Edição relançada no ano passado pela editora Panini manteve expressão racista inventada por tradução da Abril, em 1986, que não existia no original. Panini diz que repudia “toda forma de preconceito”

    Trecho da história “Revolução na Cidade Proibida” em que a tradução usa termo racista |Foto: Reprodução

    Fãs de histórias em quadrinhos reagiram com indignação nas redes sociais a um trecho da HQ “A Maldição do Monólito”, edição nº 11, que faz parte da coleção “A Espada Selvagem de Conan”, publicado no Brasil pela Panini. Eles apontaram que na história “Revolução na cidade proibida” a tradução de uma fala do herói Conan, o Bárbaro é racista. O personagem começa um conflito com sua espada em punho dizendo a personagens negros: “Agora por Crom… esses macacos vão sentir o gosto do aço!”.

    Originalmente, a frase na edição em inglês está “Now by Crom… we’ll see if we can’t even the odds a little” — em tradução livre: “Agora por Crom… vamos ver se não igualamos as coisas”.

    O editor responsável pelo quadrinho relançado é Leandro Luigi Del Manto e a tradução é assinada por Jefferson Pereira. A primeira tradução da história foi lançada em 1986, com relançamento em janeiro de 2020. A recente edição manteve a frase racista da HQ dos anos 80. Segundo o expediente da revista na época, o autor da tradução é o psiquiatra João Paulo Martins, conhecido como Jotapê Martins, antigo tradutor da editora Abril. Jotapê nega (veja mais abaixo).

    O mestre em artes gráficas e pesquisador de HQs Nobu Chinen, autor de O Negro nos Quadrinhos do Brasil, considera inadmissível a tradução racista. “Talvez o tradutor tivesse a intenção de reforçar o quão bruto e pouco sutil é o linguajar do Conan, mas é só ler o original em inglês para constatar que haveria outras soluções mais apropriadas”, afirma.

    Tradutores podem usar diversas técnicas e ter a liberdade de mudar um tom de fala de um personagem, desde que o texto siga coerente com a passagem da história contada. Segundo um tradutor de quadrinhos consultado pela reportagem, que preferiu não se identificar, além de a tradução não ser equivalente ao original, o termo racista não se encaixa com a marca Conan, ou seja, não seria usado em qualquer outro idioma. O trabalho do tradutor é só uma das etapas do processo que envolve revisores, preparadores, letreiristas e editores, até o momento da publicação das HQs.

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    Conan, o Bárbaro, também conhecido como Conan, o Cimério, foi criado pelo escritor norte-americano Robert E. Howard, em 1932, e lançado no formato pulp fiction, literatura produzida em revistas e livros de baixo custo voltados para as massas. Anos depois, em 1970, foi introduzido aos quadrinhos pela editora Marvel Comics no gênero espada e feitiçaria.

    “A maldição do Monólito “, edição relançada em 2020 (à esquerda) e edição original “A Espada Selvagem de Conan” de 1986 (à direita) |Foto:  Reprodução / Guia dos Quadrinhos

    Suas narrativas remetem a histórias medievais, com muita violência. Conan nasceu em um campo de batalhas e passa a vida enfrentando guerreiros, feiticeiros e monstros. “Ele é um personagem viril, bruto e conquistador, um ideal de masculinidade para muitos leitores, inclusive para o próprio autor, o escritor Robert Howard. Numa análise ‘política’, sim, é uma HQ conservadora”, analisa. As histórias de Conan já foram adaptadas para o cinema, série animada de televisão, videogames, e recentemente o bárbaro entrou para a equipe dos Vingadores Selvagens.

    Acerca das traduções feitas em edições antigas e mantidas nas atuais, Nobu comenta que isso sempre gerou questionamentos, pois há quem defenda que deve ser preservado o máximo da intenção do autor e outros que defendem adaptar à realidade do país e ao contexto da época. “Manter a tradução de anos ou décadas atrás, eu acho um erro grave. Quadrinhos das décadas de 1980 e 90 costumavam trazer gírias e expressões daquele período e lidas hoje soam ridículas”, comenta.

    Historicamente a representação de personagens negros nos quadrinhos foi estereotipada desde o século XIX, quando o negro esteve retratado constantemente na imprensa por meio de charges, cartoons e caricaturas, segundo Nobu. “A origem desse estereótipo são os black faces, artistas brancos que pintavam o rosto de preto e marcavam exageradamente o contorno dos lábios e dos olhos com tinta branca”, explica.

    No Brasil, até o começo do século XX, as caricaturas eram bem diversas. “Isso muda e o modelo vigente nos quadrinhos e desenhos animados americanos também passa a predominar nos quadrinhos brasileiros, como é o caso de Giby, companheiro do garoto Juquinha, e Lamparina [personagens infantis]. Ambos são criações de J. Carlos, um dos mais talentosos artistas gráficos do país, mas cujas representações de personagens negros eram inegavelmente racistas”, afirma.

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    O escritor também cita os personagens dos quadrinistas Henfil e Edgar Vasques durante os anos 70 e 80. “Suas histórias eram politizadas e faziam críticas ao regime militar com abordagem de temas sociais importantes, inclusive o racismo, mas o desenho era baseado no estereótipo de décadas passadas”, lembra.

    Nobu também comenta que neste século a situação mudou bastante, apesar do caso da HQ do Conan. Os quadrinhos avançaram conforme as discussões sociais se tornavam mais urgentes: “é importante destacar o trabalho de Mauricio Pestana, Marcelo D’Salete, João Pinheiro e Sirlene Barbosa, Ana Luiza Koehler, entre outros. Essas histórias em quadrinhos são necessárias porque tratam de episódios que, infelizmente, ainda são comuns”, destaca.

    Andreza Delgado, cocriadora da PerifaCon, evento sobre quadrinhos e cultura nerd da quebrada, enxerga uma escolha editorial racista na tradução da fala de Conan. “Existem escolhas editoriais que trazem [traduções] um pouco mais para a nossa realidade, traz uma tradução mais próxima do público, o que é super normal. Agora, uma tradução dessa é racista e condenável”, afirma.

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    Para ela, o racismo também sempre esteve presente nas histórias em quadrinhos, mas há movimentações contrárias. “Eu acho que tem um esforço de uma apresentação, de uma caracterização dos personagens negros ao longo da história. Um dos maiores e melhores exemplos que podemos falar é o Jeremias [da Turma da Mônica], que passou por toda uma reformulação. São histórias marcadas por discussões raciais e sobre racismo na infância, acho que esse é um case de sucesso de como avançamos na representação negra nos quadrinhos”, opina. Jeremias foi repaginado em um romance gráfico desenhado por Jefferson Costa e escrito por Rafael Calça, lançado em 2018 pelo selo Graphic MSP da Panini.

    Outro lado

    A reportagem entrou em contato com a assessoria da editora Panini pedindo um posicionamento sobre o caso, perguntando quais são as orientações para as traduções de histórias em quadrinhos e solicitou entrevista com o editor Leandro Luigi Del Manto, mas ainda não obteve resposta.

    Após um vídeo que foi ao ar ontem comentado a tradução racista na HQ, a Panini enviou uma nota ao canal do Youtube Comix Zone em que diz: “O fato isolado não corresponde à política de marca da editora, e por ele, pedimos desculpas a todos os leitores e fãs dos quadrinhos. Repudiamos qualquer forma de preconceito. Dessa forma, a editora tomou a decisão de suspender imediatamente as vendas do referido número, reimprimir a edição com a fala do personagem ajustada, bem como dar início imediato em uma completa revisão das HQs de Conan”.

    À Ponte, Jotapê negou ter sido o autor da expressão racista. “Eu não fui o tradutor de Espada Selvagem de Conan 19. Eu só traduzi com alguma regularidade até a décima edição. Havia outros tradutores na época, mas não constavam no expediente da revista, porque não eram empregados com carteira assinada na Abril”, afirma.

    Chegar ao autor da tradução racista seria muito difícil, segundo Jotapê, porque, além de a editora fazer uso de diversos tradutores, os textos traduzidos passavam por copidesques (revisores) que costumavam fazer diversas alterações. “Então, o rol de possíveis responsáveis é muito maior”, aponta. Sobre a Panini ter utilizado uma tradução dos anos 80 numa edição atual, o tradutor afirma: “Infelizmente plágio de tradução é uma prática nociva disseminada no mundo e especialmente no Brasil”. Mas ressaltou: “Traduzo para a Panini, diretamente ou por meio de estúdios que ela contrata, há cerca de 20 anos, admiro muito o que ela tem feito no mercado de HQs e sempre tive um bom relacionamento com a editora”.

    “O desagradável nisso tudo é que a tradução foi um equívoco que não deveria ter acontecido. Ela não segue as melhores práticas do ofício. Fugiu do sentido original sem necessidade (a revista não era formatinho, não precisava ter o texto modificado) e se baseou numa interpretação incorreta do Conan. Ele era um cimério, membro de uma etnia minoritária e muito desfavorecida na Era Hiboriana. A raça dele era alvo de preconceito”, aponta Jotapê Martins.

    Reportagem atualizada em 12/3, às 8h40, para inserir posicionamento do tradutor Jotapê Martins

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