Condenado por reconhecimentos contraditórios, ex-policial tenta provar inocência em homicídio

Marcelo Silva foi acusado de matar homem e ferir casal dentro de uma boate de SP em 2006; única prova contra ex-carcereiro são reconhecimentos irregulares

Em fotos, Marcelo mostra os braços sem tatuagens, característica informada por uma das testemunhas do crime que descreveu que o suspeito tinha tatuagem no antebraço | Fotos: arquivo pessoal

O atendente Marcelo Silva, 47, afirma que ainda tem a esperança de reverter um sentimento que carrega há 15 anos. “É como se eu tivesse sido enterrado vivo”, lamenta. Em 2007, ele foi apontado como o suspeito que disparou dentro de uma boate na região da Vila Olímpia, bairro rico da capital paulista, e matou um homem de 34 anos e feriu um casal que dançava na pista. A única prova contra ele são reconhecimentos divergentes de testemunhas que estavam no local do crime, em 11 de dezembro de 2006, e que o condenaram à pena de 18 anos e nove meses de prisão em regime fechado após ser levado a júri popular.

Na época, Marcelo era carcereiro da 2ª Delegacia Seccional da zona sul da capital e estava em período de estágio probatório, que é o período de dois anos em que o servidor público nomeado é avaliado para que a sua permanência no cargo seja ou não efetivada. Ele tinha acabado de se formar na Academia de Polícia.

“Meu sonho inicial mesmo era ser delegado, eu passei nos concursos de investigador e carcereiro, mas como a segunda etapa das provas eram em dias diferentes, acabei ficando como carcereiro, que é uma carreira que já não era tão concorrida porque a polícia não estava mais cuidando tanto de cadeia”, conta. “Então, a ideia era continuar estudando para tentar ser delegado federal. Entre os carcereiros era muito raro ter alguém bacharel em direito e eu tinha faculdade.”

Ele passou a ser relacionado ao crime em abril de 2007, quando a foto da sua carteira de habilitação foi mostrada para duas testemunhas protegidas: A (chefe da segurança da boate) e B (amiga do homem que foi morto) na Corregedoria da Polícia Civil. Na época, além dessas, as demais testemunhas sustentavam a possibilidade de o suspeito ser um policial por duas questões: os seguranças terem autorizado a entrada do homem armado que teria mostrado um distintivo, mas não teve os dados anotados; e por comentários de clientes quando houve a correria depois do disparo.

Enquanto o chefe de segurança reconheceu Marcelo por foto, a amiga do homem assassinado disse que era “parecido” com o atirador. Nesses autos de reconhecimento, porém, não são informadas quantas fotografias foram mostradas, de quais pessoas nem o motivo de Marcelo estar na relação dessas imagens.

“O que aconteceu ali foi um show up, o que não deveria ter acontecido”, afirma Marcelo, em referência a uma técnica que contamina o processo de reconhecimento que é mostrar uma única foto ou uma única pessoa a ser reconhecida, gerando uma sugestão de suspeito e, consequentemente, a criação de uma falsa memória.

O chefe da segurança da boate descreveu o suspeito como um homem branco, de 1,70 m de altura, aparentemente de 90 kg, “cabelos raspados (calvo)”, sobrancelhas cerradas, cavanhaque ralo, com tatuagens nos braços “sem saber descrever os desenhos”. Contudo, o ex-carcereiro não tem tatuagens nos braços. Esse detalhe também não aparece no depoimento que essa testemunha deu no dia seguinte ao crime, em que apontou apenas se tratar de um homem branco, de 1,80 m de altura, cabeça raspada “com gilette”, vestindo jaqueta preta, de físico “forte”, que tinha apresentado a funcional da Polícia Civil.

A mulher amiga da vítima que morreu descreveu o suspeito como um homem de 1,80 m, usando boné escuro com “dizeres brancos”, de “pele morena”, e que não teria como reconhecê-lo por foto porque o atirador usava boné e, na foto, Marcelo está sem boné.

Além de algumas descrições por testemunhas mudarem no decorrer da investigação e do processo, os reconhecimentos pessoais, ou seja, em que são colocadas presencialmente pessoas semelhantes com as descrições fornecidas, também vão se alterando de testemunha para testemunha.

Só em novembro de 2007 é que Marcelo é visto pessoalmente por essas testemunhas A e B. Nos autos de reconhecimento, são apontadas a presença de outros quatro policiais da Corregedoria junto a ele na sala, mas não há descrição nem imagens deles. “Eu fui colocado ao lado de policiais que não eram parecidos comigo”, denuncia Marcelo. “Eu sou calvo e os outros tinham cabelo”. Enquanto o chefe de segurança não o reconheceu pessoalmente, a mulher lhe apontou “sem sombra de dúvidas”.

Em junho, foi colocado com outros dois policiais, também funcionários da Corregedoria, em que não foi reconhecido por um amigo da vítima pessoalmente nem por foto. Ele reconhece Marcelo pessoalmente na fase de juízo, que é quando já se tem um processo e acontece na frente de um juíz e do promotor. Ele descreveu o suspeito como “um rapaz de cerca de 1,70 m, pele morena, sem barba ou bigode, cabelos bem curtos escuros”. Marcelo é branco, tem a cabeça raspada, é calvo e não usava barba nem bigode na época. A foto que tirou da CNH, que data de 2002, também não apontava presença de cavanhaque, barba ou bigode.

Esquematização dos reconhecimentos ao longo da investigação e do processo sintetizados pela defesa do ex-policial. A Ponte censurou os nomes das testemunhas. Reconhecimento pessoal é o mesmo que presencial; reconhecimento em juízo é feito durante o processo judicial, na frente do juiz e do promotor; PAD é procedimento administrativo disciplinar, que corre em âmbito interno da corporação | Imagem: Reprodução

“O problema é que naquela época o artigo 226 não era discutido que nem hoje, era só uma recomendação”, critica o ex-carcereiro. Esse artigo do Código de Processo Penal estabelece os procedimentos para fazer um reconhecimento: descrição das características do suspeito para depois serem apresentadas pessoas que sejam semelhantes para que a vítima ou testemunha reconheça.

“Infelizmente, quem mais sofre com isso são pessoas negras, mas esse problema também chegou na classe policial e todo mundo, seja pardo, amarelo, branco, tinha que ter o devido processo legal, direito à defesa e ao contraditório”, lamenta.

Marcelo pediu que seu rosto não fosse divulgado por receio de ser reconhecido, já que está foragido desde 2017, quando foi expedido um mandado de prisão após ter transitado em julgado a sentença de condenação, ou seja, sem possibilidade de recurso. A defesa dele entrou com um habeas corpus, no mês passado, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), para tentar reverter o resultado e anular os reconhecimentos. “Minha última esperança é a imprensa porque tudo que eu tinha que juntar de prova está no processo”, afirma.

Como o crime aconteceu

Era madrugada do dia 11 de dezembro de 2006 quando acontecia uma festa de black music na hoje extinta boate Lov.E, na Rua Pequetita, bairro da Vila Olímpia. Segundo testemunhas, a vítima de 34 anos, um homem negro, tinha combinado de encontrar alguns amigos na casa noturna. Nenhum deles afirma ter chegado junto com o homem, uns dizem que chegaram depois, outros antes.

Paralelamente, o chefe de segurança, que é a testemunha protegida A, disse na delegacia que um policial civil, de nome André, que atuava na 2ª Seccional, costumava trabalhar como apoio aos seguranças do local, estava trabalhando no dia do crime e autorizou um homem que apresentou um distintivo e estava armado a entrar na boate sem anotar sua identificação nem da arma que portava.

Ele apontou que esse seria um procedimento comum com policiais, de ou anotar os dados e permitir o ingresso da pessoa armada ou fazer com que ela guardasse a arma em um guarda-volumes, e que teria tentado fazer com que o suspeito se identificasse, mas sem sucesso.

Por volta das 2h40, houve um tumulto dentro da boate em que ninguém conseguiu afirmar o que havia acontecido, mas aparentemente foi uma discussão envolvendo o suspeito. O chefe de segurança disse que, antes de conseguir se aproximar dele, o viu sacando a arma e disparando, atingindo o homem de 34 anos pelas costas e ferindo um casal: um homem que foi baleado no ombro e uma mulher atingida pelas costas. O casal sobreviveu, mas não conseguiu descrever o atirador porque não o viu, por isso, apesar de fotos mostradas, informaram que não tinham condições de reconhecer ninguém. O segurança disse que viu o suspeito fugir em uma viatura preta e branca, cores usadas em viaturas da Polícia Civil paulista.

Depois, o chefe de segurança disse que as pessoas saíram correndo, gerando um tumulto, e que viu policiais militares chegando para socorrer o homem caído ao chão.

A testemunha protegida B, que é uma das amigas do homem assassinado, relatou que viu o suspeito sacando a arma e que logo se jogou no chão, tendo escutado dois disparos. Em um dos depoimentos, disse que viu viaturas do lado de fora da casa noturna, sem saber precisar se eram da Polícia Civil ou da Polícia Militar. Em outro, diz que viu uma viatura preta e branca da Polícia Civil modelo Ipanema GM.

Um vigilante de um restaurante japonês que ficava em frente à boate relatou que viu uma viatura da Polícia Civil que parou por alguns minutos para conversar com uma pessoa que estava na outra calçada. Em seguida, ouviu um barulho parecido com tiro e uma correria. Um dos policiais da viatura correu para dentro da casa noturna enquanto o outro tentou, sem sucesso, manobrar o veículo. O vigilante disse que viu a mulher ensanguentada ser carregada por outras pessoas e que viaturas apareceram depois.

Algumas testemunhas disseram que ouviram um tiro. Outras, dois. Também divergem sobre o modelo de viatura que teriam visto, sendo que algumas dizem de cor vermelho, preta e branca, modelo Blazer. Nenhuma placa foi anotada.

O problema é que a perícia não apreendeu nenhuma bala nem no local nem nos corpos das vítimas. A única que poderia ser analisada para confronto balístico ficou alojada no tórax da mulher que foi ferida com o marido e não pôde ser retirada. O laudo também não aponta vestígio de disparo nem presença de câmeras na casa noturna, embora o chefe da segurança tenha dito, já na fase de audiências, que existiam, mas não gravavam as imagens.

A soldado Valeria Vanessa do Prado, do 23º Batalhão da PM, uma das policiais que atendeu a ocorrência, relatou no 15º DP (Itaim Bibi) que quando chegou o homem baleado nas costas já tinha sido levado para o hospital e que viu uma viatura da Polícia Civil próximo à boate. Disse que falou com a segurança do local e foi até o hospital buscar mais informações da vítima, que estava internada, sendo que viu os mesmos policiais civis também no pronto-socorro, mas que não teria condições de reconhecê-los.

O policial André mencionado pelo segurança é André Geccherle Souza, que trabalhava na chefia da 2ª Seccional e atuava durante o turno do dia. Ele mudou o depoimento dele pelo menos umas três vezes. Primeiro disse que era frequentador da boate e encontrou seu colega Paul do lado de fora na calçada e que, em determinado momento, ouviu um “estrondo” dentro do estabelecimento e foram lá dentro ajudar a “esvaziar a casa”. Ali encontraram um jovem ferido no pescoço no chão e disse que ouviu de “populares “que tinha sido um policial de 1,70 m de altura, branco, face lisa e cabelos raspados que disparou e fugiu numa viatura. Ele afirmou não ter visto nem o suspeito nem a viatura descrita.

Depois, ao ser confrontado sobre a atuação como segurança em um segundo depoimento, confirmou que realmente fazia “bico” de segurança no local, mas não havia autorizado a entrada nem visto homem ou policial armado e que ainda tentou estancar o sangue da vítima com as mãos usando luvas.

Em outro depoimento, ao longo do processo, relatou que fazia o “bico”, mas não trabalhava naquele dia e que não tinha avisado o pessoal da segurança de não iria trabalhar e que estava lá apenas por lazer. Negou novamente que tenha autorizado entrada do suspeito ou tido qualquer relação com ele. O policial continua trabalhando na corporação.

Os outros dois policiais civis que estavam do lado de fora da boate, na viatura, eram os investigadores Paul Henri Martin Junior e Marco César Frederico, da 2ª Seccional, que também continuam na corporação. Eles disseram que no dia do crime estavam fazendo ronda a caminho do 36º DP, onde funcionava a Central de Flagrantes, e que, no caminho, passando nas proximidades da danceteria, André os chamou e começaram a conversar. Depois, ouviram um barulho parecido com tiro. Enquanto Frederico foi a pé até o local ver o que estava acontecendo, Martin tentou manobrar a viatura, sem sucesso.

Frederico, ao ver que tinha uma pessoa caída no chão, voltou à viatura e pediu para ao colega chamar o resgate, e disseram que não fizeram os primeiros socorros porque logo em seguida a Polícia Militar chegou para o resgate. Os dois investigadores, inicialmente, foram tratados como suspeitos porque não avisaram que estavam no local e tiveram as armas apreendidas para perícia.

Disseram que foram ao hospital buscar mais detalhes do que havia acontecido e que não avisaram a delegacia porque a PM já estava conduzindo a ocorrência para o 15º DP. As pistolas dos policiais civis foram periciadas e não foi detectado disparo recente.

A dupla também fez diligências à parte, mesmo não participando da investigação, dizendo que estava atrás de testemunhas que poderiam confirmar a atuação no local, o que aconteceu, já que o depoimento do vigilante e alguns PMs que atenderam a ocorrência serviram de álibi para os dois. Nenhum deles disse ter visto uma outra viatura fugindo do local e nem que viram Marcelo ali.

Marcelo também estava de serviço naquele dia, conforme escala de plantão anexada no processo. O turno dele era das 20h do dia 10 de dezembro às 8h do dia seguinte, 11. Consta um boletim de ocorrência de um caso de transferência de preso que ele atuou às 21h do dia 10 de dezembro de 2006. Depois, não há mais registros.

Além de fazer escolta em delegacia, ele também atuava com transferência de detidos. O outro carcereiro que trabalhava com ele no dia, Benedito Bento, disse, tanto na Corregedoria como ao longo do processo judicial, que Marcelo não se ausentou e nem teria como por conta do trabalho intenso e porque, a qualquer momento, eles poderiam ser acionados no plantão.

Além disso, os carcereiros usavam uma viatura modelo Ipanema, que é citada pela testemunha protegida B. Porém, Marcelo acredita que houve indução do depoimento da testemunha, já que ela mencionou de início que não teria como dizer que tipo de viatura viu do lado de fora da casa noturna. “Só uma testemunha fala isso e todas as outras não, não faz sentido”, critica.

O ex-policial foi denunciado pelo Ministério Público por homicídio qualificado com recurso que dificultou a defesa da vítima, já que o homem de 34 anos faleceu cerca de 10 dias depois de ter sido baleado, e por tentativa de homicídio e lesão corporal contra o casal que sobreviveu. O Tribunal de Justiça de São Paulo aceitou a denúncia.

Depois, o tribunal decidiu que ele seria julgado por um júri popular com base nos reconhecimentos dos dois amigos da vítima assassinada. O chefe de segurança não reconheceu Marcelo e disse que no primeiro reconhecimento fotográfico disse que ele era “parecido” e não que tinha apontado com certeza.

Em setembro de 2008, o então governador José Serra (PSDB) exonerou Marcelo da corporação por não ter conduta ilibada, requisito da permanência após o estágio probatório, por conta do processo judicial pelo qual foi acusado. Já o Conselho da Polícia Civil tinha decidido, em 2009, pela suspensão do procedimento administrativo a fim de aguardar a conclusão do processo judicial, embora os depoimentos de uma das vítimas sobreviventes e de uma das testemunhas “poderiam embasar uma proposta de absolvição”.

Em setembro de 2010, os jurados votaram pela condenação de Marcelo e o juiz Emanuel Brandão Filho fixou a pena de 18 anos e nove meses de prisão em regime fechado com direito de recorrer em liberdade. A defesa do ex-carcereiro tentou recorrer, mas os desembargadores da 14ª Câmara de Direito Criminal negaram a anulação do julgamento, em decisão de 2014, e argumentaram que os jurados não foram contrários às provas dos autos.

Ajude a Ponte!

Como a sentença transitou em julgado em 2017, ou seja, não havia mais possibilidade de recurso, o tribunal expediu mandado de prisão para que Marcelo cumpra a pena. Ele trocou de advogados e a defesa entrou com um habeas corpus para reverter a condenação, já que o STJ entendeu, em 2020, que reconhecimento como única prova é pouco para condenar alguém. Os ministros devem julgar o pedido ainda nesta semana.

Enquanto isso, Marcelo conta que vive de “bicos” como atendente em bar e professor de condicionamento físico, contando com a ajuda de amigos, já que o pai faleceu e ele não tem contato com a mãe. “Eu passei na prova da OAB, mas nem se eu quisesse ser advogado poderia atuar por conta desse processo”, lamenta.

Ele aponta que desde aquela época era comum policiais ingressarem armados em qualquer ambiente, algo que voltou a entrar em discussão após o atleta Leandro Lo ter sido baleado e morto por um PM de folga em agosto, e que não sabe por que acabou vinculado ao caso de 2006. “Vou ser sincero de que policial tem seus privilégios, eu já entrei armado em danceteria, mas nunca disparei. Já me envolvi numa confusão que nem era comigo [em maio de 2007, conforme boletim de ocorrência] e fui agredido, mas hoje eu vejo que isso [policial portar arma em casa noturna] deveria ser proibido”.

O que diz a polícia

A Ponte pediu entrevista e posicionamento dos policiais civis envolvidos bem como dos delegados que conduziram o inquérito e também os que foram responsáveis pelo procedimento na Corregedoria e aguarda resposta.

O que diz o Ministério Público

A reportagem também solicitou posição dos promotores que atuaram ao longo do processo, mas não teve resposta até a publicação. Caso se manifestem, o texto será atualizado.

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