Danilo de Oliveira Silva foi reconhecido por foto do RG mostrada às vítimas oito meses depois de um crime que ocorreu em 2009, depoimento de testemunha imputa crime a homem também chamado ‘Danilo’ que moraria em outro lugar e teria outra família
Desde maio de 2021 o sargento temporário do Exército Brasileiro Danilo de Oliveira Silva, 32 anos, não sabe mais se manterá seu emprego e se conseguirá arcar com os custos da criação de sua filha de nove meses. Ele vive com a esposa e a filha no bairro do Cachambi, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, e agora corre o risco de ser preso pelo crime de roubo que ocorreu em 2009, mas que teve conhecimento de que era acusado apenas neste ano. Segundo a família, Danilo é vítima de racismo e de uma acusação totalmente infundada.
De acordo com a denúncia assinada pelo promotor de Justiça do Rio de Janeiro Marcos Kac em 5 de outubro do ano passado, o crime ocorreu em 9 de outubro de 2009, na Barra da Tijuca, zona sul do Rio, quando por volta da 1h20 da madrugada os acusados Bruno Leandro, Walmor Neves e Danilo abordaram uma das vítimas nas imediações de um condomínio do bairro enquanto ela estacionava seu carro.
Os suspeitos, segundo a denúncia, estavam com uma arma de fogo, uma granada e uma faca. Na sequência eles teriam ordenado que a vítima os levassem até a sua residência. No entando a vítima os conduziu até a casa de seu irmão, no Recreio dos Bandeirantes, zona oeste carioca. Lá eles roubaram “bens da residência”, segundo a denúncia.
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Apesar disso, os acusados perceberam que aquela não era a casa da vítima e ordenaram que ele os levasse a sua casa. Chegando no condomínio na Barra da Tijuca os acusados renderam o porteiro e um bombeiro civil e entraram na garagem do edifício. Na sequência o grupo realizou uma série de roubos dentro do condomínio, onde roubaram peças eletrônicas, fizeram ao menos mais cinco moradores de reféns e subtraíram itens e dinheiro deles.
A sequência de roubos terminou quando uma das vítimas e morador do prédio que era policial federal chegou ao condomínio e se deu conta do que ocorria, entrando em confronto com os acusados. Os denunciados fugiram dentro de um veículo EcoSport. Segundo o inquérito, Danilo seria o motorista e estava com uma faca.
No dia dos acontecimentos e no dia seguinte foram ouvidas vítimas e testemunhas na 16ª Delegacia de Polícia pelos delegados Heloisa Helena Gonçalves e Paulo Roberto Trugano de Almeida, na qual todos afirmaram que os autores dos roubos eram brancos ou pardos, mas nenhuma informação efetiva de distinção no reconhecimento foi produzida.
Durante as investigações, ainda em 2009, a polícia interceptou uma ligação vinda de um dos chips de celular de um dos acusados do crime, que no ocorrido efetuou a troca de chip com um dos aparelhos considerado mais moderno de uma das vítimas.
Após a realização da quebra de sigilo telefônico, onde também foram consultadas chamadas anteriores, a investigação constatatou que uma das linhas já utilizadas naquele aparelho era de um dos acusados do crime, que segundo o inquérito vivia na comunidade da Rocinha, zona norte da cidade.
A partir das investigações, em maio de 2010 a polícia entrevistou Diogo Pantoja, que teria sido uma das testemunhas do caso pois seria amigo de um dos suspeitos que vivia na Rocinha e possuía algumas das linhas telefônicas interceptadas pela polícia. Ele menciona na delegacia que conhecia o réu Bruno e disse que “soube” que o Bruno teria sido preso por roubo e que este teria um primo chamado Danilo, que também estaria preso por roubo, provavelmente no presídio Bangu 4. O depoimento foi assinado pelo delegado Rafael Willis Fernandez da 16ª DP.
O delegado menciona que Diogo teria feito menção ao fato de saber por terceiros sobre Danilo e que ele seria enteado de Admes Nunes da Silva e cunhado de um dos investigados.
No mesmo ano, o delegado juntou aos autos do inquérito policial a foto de Danilo, convocando parte das vítimas e testemunhas para submetê-lo a “reconhecimento”. Em junho de 2010, de um total de nove depoentes entre vítimas e testemunhas, duas vítimas e uma testemunha afirmam que reconheceram Danilo pela foto do RG disponibilizada pela polícia.
Somente em 12 de abril 2011 o promotor do Ministério Público (MP) Márcio Velasco recebeu os autos. Em 15 de junho de 2011 ele determinou remessa dos autos à delegacia, com prazo de 120 dias para conclusão das investigações. Os autos ficaram então paralisados por sete anos. Apenas em 15 de dezembro 2017 o delegado Marcus Antônio Neves Pereira devolveu ao MP.
Em 16 de abril de 2018 o promotor Cláudio Varela devolveu mais uma vez os autos à delegacia, com prazo de 120 dias para conclusão das investigações. As investigações, com idas e vindas do MP à Polícia Civil, perduraram até o dia 5 de outubro de 2020, quando o promotor Marco Kac denunciou Danilo pelo crime de roubo (art. 157 do Código Penal), com penas de reclusão de quatro a dez anos e multa, e associação criminosa (art. 288 do Código Penal) na forma do artigo 69 do Código Penal, com pena prevista de reclusão de 1 a 3 anos.
Antes disso, em abril de 2020, a juíza Simone de Araujo Rolim, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), expediu um mandado de intimação a Danilo com prazo de apresentação de defesa em 10 dias, que só chegou a ele em maio deste ano, segundo a família.
Família e defesa apontam contradições e furos no processo
A defesa de Danilo, protocolada ao TJRJ em 20 de maio pelo advogado Rafael Correia dos Santos, solicita a anulação da denúncia. O defensor aponta que há diversos “furos” no processo, inlcuindo o fato de que Danilo nunca foi preso e não tem nenhum padrasto com nome Admes, uma vez que tem como pais Carlos Alberto Silva e Maria Celeste de Oliveira Silva, que nunca se separaram.
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Além disso, segundo a defesa, eles vivem juntos no mesmo endereço, no bairro de Senador Camará, na zona oeste da cidade do Rio, distante do local onde vive o núcleo criminoso apontado nas investigações, na comunidade da Rocinha.
Em entrevista à Ponte, Rafael afirma ainda que o fato de as testemunhas não terem indicado no dia dos fatos nada que vinculasse Danilo ao crime é mais um fato questionável. “Sempre afirmavam que os acusados ou eram brancos ou pardos, meses depois por uma única foto o reconheceram”, afirma. Fora isso, ele aponta que o reconhecimento fotográfico não foi feito em conformidade com o que determina o artigo 266 do Código de Processo Penal, uma vez que Danilo não foi apresentado às vítimas e testemunhas presencialmente com outros suspeitos e com características físicas semelhantes às suas.
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A defesa teve o pedido de anulação da denúncia rejeitado pelo Ministério Público em 16 de junho deste ano. Na manifestação a promotora Janaina Silva Rettich afirma que o fato de Danilo ser reconhecido por vítimas e testemunhas demonstra a necessidade de prosseguimento da denúncia. “No que toca à alegação de que haveria nulidade no reconhecimento fotográfico do acusado, também não assiste razão à defesa. Isso porque, eventual inobservância das recomendações legais dispostas no art.266 do Código de Processo Penal, por si só, não é capaz de gerar qualquer nulidade ao ato de reconhecimento do acusado”, diz.
Agora o advogado aguarda a manifestação da Justiça acerca do pedido de reconsideração do recebimento da denúncia contra Danilo. Apesar disso, o advogado reitera que a defesa e a família estão “recebendo apoio irrestrito de várias pessoas, inclusive no trabalho dele”.
O conhecimento das acusações contra Danilo chegaram apenas em maio deste ano, como contou à reportagem a esposa do militar e psicóloga Débora Pacífico, de 27 anos. “Soubemos em maio, através de uma carta de citação que chegou na casa dos pais do Danilo. O oficial de justiça apareceu com a intimação, porém, não quis informar do que se tratava. Ao ligar tivemos essa grande surpresa”.
Ela diz que se sente impotente por não saber o que fazer pelo companheiro. “Gostaria de ter o poder de tirá-lo dessa situação o mais rápido possível. Diante dessa situação nosso emocional fica um pouco abalado. Mas estou me esforçando para ficar forte para oferecer todo apoio que ele precisa. Emocionalmente ficamos abalados, assustados e com medo de algo pior vir acontecer”.
A notícia da denúncia alterou completamente o cotidiano da família, que agora teme a possibilidade de Danilo perder seu emprego, uma vez que como sargento do exército brasileiro ele necessita, anualmente, apresentar pedidos de renovação de tempo de serviço, que ficam condicionados à não existência de processos judiciais em seu desfavor. A próxima renovação já ocorre no mês de agosto. “Infelizmente após esse fato, aonde vamos temos o receio de estarmos sendo olhados por alguém, e com medo do que as pessoas podem estar pensando a respeito dele”, complementa Débora.
Os custos com a defesa em meio à crise também prejudicaram o casal, que cuida de uma filha de nove meses. “Visto a gravidade dos fatos, tivemos que ter uma despesa com advogado que sinceramente no momento não estávamos podendo fazer. Já estávamos vindo de uma baixa orçamentária por conta da pandemia, temos uma empresa mas os eventos haviam parado e para arcar com essa nova despesa que de fato não esperávamos acabamos tendo que pegar emprestado, acabamos nos enrolando mais ainda”, disse a psicóloga em suas redes sociais ao pedir ajuda para pagar as despesas do processo.
Diante de tudo isso, Débora conclui que a Justiça do Brasil não tem desempenhado o seu papel real. “Eu não sou formada em direito e não tenho nenhum conhecimento, mas fiz uma pequena leitura do processo, em apenas 15 minutos já encontrei inúmeros erros na investigação. Até uma criança com o mínimo de interpretação saberia que se tratam de Danilo diferentes. Então a Justiça do Brasil precisa, para ontem, reavaliar seus critérios. Ela não tem o direito de estragar a vida de alguém a troco de nada.”
Debora também critica a morosidade do processo: “eles levaram 12 anos para notificar meu esposo de que o nome dele estava nesse processo, 12 anos que ele não sabia que a foto dele estava anexada em uma investigação policial. Que justiça é essa? A Justiça está sendo falha, e essa falha está nos custando danos que podem ser irreversíveis”.
Ana Gabriela Ferreira, advogada e professora de direito penal e criminologia da Pós-Graduação em Ciências Criminais da UCSAL (Universidade Católica do Salvador), da graduação em Direito e especializações de Direitos Humanos e de Segurança Pública da UFBA (Universidade Federal da Bahia) analisou o caso a pedido da reportagem e apontou inconsistências nos fatos narrados pelos policiais.
Para ela, o reconhecimento fotográfico parece ser a única prova usada no caso, o que já contraria, por si só, entendimento do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) sobre o tema. “O STJ definiu neste ano que não é possível sustentar condenação com base apenas neste tipo de prova. Isso porque provas testemunhais de reconhecimento são precárias. Ao realizar reconhecimento, a vítima e eventuais testemunhas estão sujeitas comumente a falhas e equívocos da memória. Além disso, o procedimento foi feito em desconformidade com o art. 266 do CPP, pela narrativa.”
Junto a isso, segundo a advogada, “percebe-se que o decurso de tempo afeta diretamente as possibilidades de que a informação prestada sobre o investigado”, argumenta. “Mais ainda, se a descrição das pessoas não é correspondente ao investigado, não haveria sentido em implicá-lo. E o tempo tomado entre as investigações e a denúncia também gera discussões inúmeras, das mais práticas, sobre prescrição, às mais subjetivas: com que patamares serão identificadas as provas que já eram pautadas somente em critério mnemônico mais de dez anos depois?”, diz.
Outro ponto levantado pela advogada é a noção racial citada no caso. Para ela é um equivoco distinguir pardos de negros, ainda que essa visão seja frequentemente utilizada. “Isso é um equívoco comum, superado pelas definições do próprio IBGE que levaram em conta estudos de anos feitos pelo movimento negro no país. Negros são uma macro categoria, que envolve pretos e pardos. O que ocorre é que, por muitos anos, a autodeclaração foi a única fonte de definição racial, por políticas de governo que pautavam o embranquecimento do país e o apagamento de reconhecimento racial da negritude. Então, inúmeros termos como ‘moreno’, ‘cafuso’, ‘mulato’, ‘pardo’, ‘cor de jambo’ e afins eram utilizados”.
Outro lado
A reportagem questionou o promotor de Justiça Marcos Kac do Ministério Público do Rio de Janeiro e os delegados da Polícia Civil Rafael Willis Fernandez e de Marcus Antônio Neves Pereira da 16ª DP sobre as incoerências da investigação apontadas pela defesa de Danilo no processo e aguarda as respostas do MPRJ.
Em nota a Polícia Civil diz que o inquérito foi relatado pelo delegado à época e encaminhado ao Ministério Público. “O reconhecimento fotográfico ocorreu na gestão passada. Para aperfeiçoar esses procedimentos, a atual gestão da Polícia Civil recomendou que os delegados não usem apenas o reconhecimento fotográfico como única prova em inquéritos policiais para pedir a prisão de suspeitos”.
Procurado, o Tribunal de Justiça do Rio não informou o prazo para o julgamento do pedido de anulação da denúncia.
**Reportagem atualizada às 13h00, de 30/7/2021, para inclusão de resposta da Polícia Civil.