Movimentos sociais e comunidades criam redes de apoio para tentar controlar avanço da pandemia, amenizar seu impacto social e cobrar o poder público
A pandemia do coronavírus, que já contaminou 2 mil pessoas e matou mais de 30 no Brasil, afeta a todos, mas de jeitos diferentes. Os riscos são muito maiores para moradores de favelas e periferias, trabalhadores informais, pessoas em situação de rua e encarceradas, que sofrem tanto pela escassez de acesso a informações, de saneamento básico e de equipamentos públicos de qualidade como pelas impossibilidade de ficar em quarentena sem morrer de fome.
Diante desse cenário, membros de comunidades e movimentos sociais se articulam em redes de apoio pelo país para tentar suprir a demanda dos mais pobres.
No caso das favelas, onde vivem mais de 13 milhões de brasileiros, associações comunitárias e voluntários se organizam desde a semana passada para arrecadar doações, articular iniciativas e cobrar do poder público medidas que atendam comunidades e populações estruturalmente desassistidas pelo Estado brasileiro, especialmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, que atualmente lideram o número de mortes e casos confirmados de contaminados pelo país.
Enfrentar o genocídio
Uma iniciativa veio da UNEafro-Brasil, que há 11 anos atua em bairros periféricos de São Paulo e do Rio de Janeiro por meio de cursinhos populares e atividades socioeducativas. A entidade reuniu, em uma semana, 328 apoiadores e R$ 50 mil, convertidos na compra de alimentos e kits de higiene para 241 famílias assistidas pela entidade. “Enfrentamento ao genocídio pelo Covid-19” é o lema.
Colabore na campanha de apoio imediato para famílias negras e periféricas
Segundo Douglas Belchior, educador e membro fundador da Uneafro, a segunda etapa da ação, divulgada ontem (23/3), prevê agora a distribuição dos recursos aos movimentos Rede UBUNTU, Amparar, Herdeiros Humanísticos, Batalha do Paraisópolis e Comunidade Evangélica Voz que Prega no Deserto, da favela de Heliópolis, e às comunidades dos territórios onde atuam.
“Historicamente o povo negro e periférico está pela sua própria conta e isso se repete mais uma vez num ambiente de calamidade e crise humanitária que a gente está vivendo”, ressalta Belchior. “Então, por um lado, [precisamos] pressionar os poderes para que eles cumpram a sua função, por outro, garantir a nossa sobrevivência e a dos nossos nas comunidades”, conclui.
Ação em Paraisópolis
Outra iniciativa vem sendo articulada pela Associação de Moradores de Paraisópolis, uma das maiores favelas de São Paulo, que abriga cerca de 100 mil habitantes. Uma das principais ações do grupo prevê o aluguel de mansões no bairro paulistano do Morumbi para abrigar idosos e moradores da comunidade que não têm condições de cumprir com as recomendações de isolamento em suas próprias casas.
De acordo com Gilson Rodrigues, líder comunitário de Paraisópolis, outras investidas da associação incluem a distribuição de alimentos e produtos de higiene às famílias, o fornecimento gratuito de chips de celular para facilitar o repasse de informações sobre medidas de prevenção ao vírus e o aluguel de vans e uma ambulância para transportar os mantimentos pela comunidade a pessoas doentes.
“Nós esperamos que a sociedade consiga nos ajudar, mas principalmente que o governo crie uma política pública específica para as favelas. Tem política para salvar os bancos, têm políticas para salvar os shoppings, tem política para salvar o varejo, e a palavra favela até agora ninguém falou”, afirma o líder comunitário, que é também coordenador nacional do G10 das Favelas.
Como colaborar na campanha do G10 Favelas para Paraisópolis
Uma campanha virtual organizada pelo grupo busca arrecadar doações para as populações que não terão condições financeiras de permanecer na quarentena recomendada pelo governo. “Muitos só recebem dinheiro quando saem para trabalhar, como as empregadas domésticas e ambulantes. Isso se soma ao fato da maioria das famílias não terem renda suficiente para comprar mantimentos para os 14 dias de isolamento, quem dirá para comprar álcool em gel”, diz o comunicado.
Mais saúde para a Maré
No Rio de Janeiro, outro grupo que se articula para minimizar os efeitos da pandemia entre populações periféricas é a Redes da Maré, criada por moradores do conjunto de 16 favelas da Maré, na zona norte do Rio, onde residem cerca de 140 mil pessoas.
Segundo Lidiane Malanquini, coordenadora do Eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça da organização, entre as iniciativas da Redes está a criação de um canal aberto de Whatsapp para divulgar esclarecimentos sobre o Covid-19 e orientar os moradores da Maré sobre o acesso à equipamentos públicos da região.
“A gente está num diálogo permanente com as Unidades de Saúde para entender suas dificuldades e tentar pautar junto às autoridades sanitárias como a gente pode qualificar o atendimento de saúde na Maré”, diz Malanquini.
Acesse a campanha das Redes da Maré
De acordo com a coordenadora, a entidade desenvolveu ainda uma campanha de doações que não apenas distribuísse mantimentos e recursos aos moradores das comunidades, mas também fortalecesse a economia local. “Tudo o que a gente vai comprar vai ser dentro da Maré, pra fazer esse dinheiro circular na Maré e potencializar os seus pequenos empreendedores”, explica.
Os que não têm casa onde ficar
Fora das comunidades, coletivos e organizações civis também têm articulado campanhas para arrecadar materiais básicos de higiene e pressionar o poder público de grandes centros urbanos a contemplar pessoas em situação de rua em seus planos de ação para conter o avanço do Coronavírus nas capitais.
Em São Paulo, o padre Julio Lancelotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua, cobra principalmente da administração municipal investimento público em kits com produtos de higiene e a abertura de espaços públicos que hoje estão fechados para o acolhimento de quem dorme nas ruas.
“Oferecemos a ‘Casa de Oração do Povo da Rua’, na região central da Capital, para acolher moradores de rua com suspeita do Coronavírus e com necessidade de quarentena. Acreditamos que o espaço tem capacidade para isolar até 50 pessoas. Mas precisamos que a Prefeitura, forneça ao menos o básico para garantir alguma proteção a esse povo que, assim como qualquer outro cidadão, tem direitos’, diz um abaixo-assinado criado pelo padre no início da semana.
Cobre a Prefeitura de SP para fornecer acolhida e álcool gel para os moradores de rua
Na capital, o Censo da População de Rua estima que pouco mais de 24 mil pessoas vivam em situação de rua. O número é considerado subnotificado pelas organizações que tratam do tema. Mesmo levando em consideração o valor oficial, a prefeitura dispõe de 17 mil vagas em abrigos, o que representa um déficit de pelo menos 7.000 pessoas.
Informação para combater a pandemia
Segundo Maria Angélica Comis, coordenadora geral do Centro É de Lei, que organizou no último sábado (21/3) uma ação de conscientização e distribuição de doações para a população que vive nas ruas do centro da cidade, ali “ainda não há acesso à informação sobre a pandemia e como se prevenir”.
A organização que, de acordo com Comis, já conseguiu distribuir cerca de 300 kits de higiene na Luz, segue arrecadando recursos para investir na produção de materiais e ações para garantir “informações qualificadas, que não seja só nas redes sociais, as quais elas [pessoas em situação de rua] não tem acesso”.
Outro lado
Procurada, a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo afirma, em nota, que “os serviços conveniados à pasta estão intensificando os cuidados com a higiene, como lavar bem as mãos com água e sabão, cobrir a boca e o nariz ao tossir e espirrar, evitar tocar os olhos, e orientações [para pessoas nas ruas] de não compartilhar objetos de uso pessoal”.