Construtora mentiu à polícia sobre terreno próximo ao Doi-Codi onde teria encontrado ossadas

    Parecer técnico feito a pedido do Ministério Público, após denúncia da Ponte, aponta que terreno esteve abandonado durante a ditadura militar, e não ocupado por uma casa

    Obra em que funcionário relata ter visto ossadas humanas | Foto: Reprodução

    Laudo técnico feito pelo Condephaat, conselho do patrimônio vinculado à secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, contradiz versão dada pela construtora Uniq de que existiria uma residência desde 1908 na Rua Abílio Soares, 1.149, no Paraíso, zona sul da cidade de São Paulo, antes das obras de um empreendimento residencial. Denúncia anônima deu início a uma investigação da Polícia Civil sobre a descoberta de ao menos seis ossadas supostamente humanas no caneiro de obras, em outubro de 2019.

    O empreendimento da empresa fica a 150 metros da antiga sede do Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna), usado pela ditadura militar para prender, torturar e matar opositores ao regime, que durou entre 1964 e 1985.

    Dois investigadores da SIG (Setor de Investigações Gerais) da Polícia Civil de Diadema (ABC paulista) receberam denúncia anônima, em 30 de outubro do ano passado, sobre o encontro das ossadas, que teriam sido juntadas a terra e entulho e posteriormente descartadas em um aterro em Carapicuíba (Grande SP) durante a execução das obras.

    Os policiais foram ao local averiguar a denúncia no dia 1º de novembro. Um operador de máquina de uma terceirizada contratada pela Uniq declarou, em depoimento, que viu, entre os dias 22 e 25 daquele de outubro, o que pareciam ser fragmentos de um crânio, tórax, e que alguns dos ossos teriam “furos” no local, parecendo um “corpo desmontado”, mas foi orientado pelo mestre de obras a prosseguir as escavações porque, segundo ele, poderiam ser “ossos de bichos” e eles precisavam seguir o cronograma das obras.

    A própria construtora identificou, no dia 4 de dezembro do ano passado, outras ossadas no canteiro de obras e, desta vez, informou à Justiça. Essas ossadas passaram por perícia cujo laudo aponta se tratarem de ossos de animais. A Polícia Civil, no entanto, não foi ao aterro em Carapicuíba para localizar as ossadas frutos da denúncia. Após cobrança da Uniq, o Tribunal de Justiça determinou que a investigação fosse conduzida pelo 36º DP (Paraíso), já que o caso seria de competência dessa delegacia na capital paulista.

    A pedido do Ministério Público, o Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado), analisou documentações relacionadas ao terreno da obra na Rua Abilio Soares para saber o que havia no local antes da execução do empreendimento.

    Imagens do terreno que constam no relatório do Condephaat | Foto: Reprodução

    A promotora Karina Scutti Santos teceu diversas críticas sobre o trabalho realizado pela Polícia Civil, apontando que os investigadores deveriam ter se dirigido ao local da denúncia com urgência e entrado com mandado de busca e apreensão para colher o material e realizar a perícia. “Passados mais de 13 dias, houve o pedido de paralisação das obras mas, obviamente, se diversos ossos foram visualizados no local, 13 dias depois seria bem difícil encontrá-los”, analisou a promotora.

    O parecer técnico elaborado pelo Condephaat, datado de 16 de dezembro de 2019 (leia aqui), aponta que o terreno sofreu “ampla demolição” em 1970, antes do espaço ser repassado à extinta Telesp (Telecomunicações de São Paulo, que se transformaria na Vivo). Segundo o documento, o local ficou “sem qualquer edificação ao menos desde o ano de 1968 e o ano de 1981”, último ano que o órgão aponta ter mapeamento aéreo do local.

    O relatório foi feito quatro dias depois da Ponte denunciar o caso e contém imagens de 1958, 1968, 1973, 1977, 1981 e 2019, que incluem o prédio do antigo Doi-Codi e que hoje abriga o 36º DP (Paraíso). A reportagem também foi anexada ao documento.

    Os registros constatam a demolição abrangendo as ruas Tutóia, Livramento, Joivinlle, além da Rua Abílio Soares, onde está o empreendimento. A imagem mais recente no parecer do Condephaat, de 2019, mostra que parte da Rua Tutóia tem uma agência bancária do Bradesco, um prédio da Vivo e edifícios residenciais.

    O Condephaat enviou ofício requerendo a certidão centenária dos endereços ao Primeiro Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo. Esse tipo de solicitação de documento visa buscar informações de antigos proprietários do terreno e como se deu a sua transmissão.

    As informações do Conselho contradizem explicações dada pela construtura. À Justiça, 14 de novembro de 2019, os advogados da Uniq alegaram que no terreno havia uma casa “da mesma família desde o ano de 1908, sendo absolutamente improvável que uma pessoa tenha sido enterrada no local”.

    Questionada pela Ponte, a assessoria de imprensa da empresa mudou a explicação. Segundo a Uniq, na época da compra do terreno, em 2018, “havia uma casa construída no local e que o vendedor afirmou ter nascido lá em 1950” e que “não tem detalhes anteriores à compra do terreno, pois o mesmo não era de sua propriedade”. Além disso, a Uniq afirmou que o projeto “ocorreu em conformidade com todos os trâmites legais” junto à Prefeitura de São Paulo e que as obras estão em fase final.

    A reportagem também questionou a SSP (Secretaria da Segurança Pública) de São Paulo, administrada pelo general João Camilo Pires de Campos neste governo de João Doria (PSDB), sobre as investigações.

    A assessoria de imprensa terceirizada da pasta, a InPress, se limitou a encaminhar a mesma nota enviada à reportagem no dia 18 de dezembro de 2019, na qual afirma que “laudo Necroscópico-Antropológico, emitido no dia 13 de dezembro, concluiu que a ossada encontrada é compatível com animal mamífero de médio porte e jovem com características diversas das da espécie humana”. No entanto, esse laudo é referente ao material encontrado pela construtora no dia 4 de dezembro e não em relação à denúncia anônima. A secretaria não respondeu aos questionamentos da Ponte.

    Já a assessoria do Ministério Público de São Paulo detalhou o atual cenário da apuração, que está parada pelo risco de contágio da Covid-19 e informou que a Polícia Civil suspendeu as investigações. “Os prazos processuais também estão suspensos”, explicou em nota, detalhando que solicitou “diligências e elas estão ainda sendo cumpridas”.

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