Copa do Moinho: a final que não passou na TV

    Marcada pela resistência de jovens da única favela no centro de SP, final da competição aconteceu no mesmo dia em que França venceu Croácia e se tornou campeã mundial

    Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Uma brecha da defesa do time adversário foi o suficiente para o zagueiro e camisa 10 Jailson bater a bola no cantinho do gol. Não tinha dado nem dez minutos de jogo e era a terceira vez que o Conexão Moinho, time de verde e preto, fez balançar as redes. Triunfante, o jogador saiu correndo para bater nas mãos dos companheiros da reserva e da torcida que acompanhava na grade. A mulher dele, Michele, se equilibrava com dois celulares na mão, o dela e o de uma amiga, entre as crianças e se atentava ao que o juiz, segundo ela, não estava vendo. “O cara não tá marcando as faltas, tem que ficar de olho”, criticava. “Gente, vocês estão ganhando, mas estão deixando espaço, bora marcar!”, gritava.

    O camisa 10 Jailson aproveita vacilo da defesa e marca | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Com o dedo do pé quebrado por conta de um acidente de moto, mas firme no jogo, o goleiro Feijão, do Conexão Moinho, mesmo time de Jailson, atuava como uma liderança no esquema tático. “Quando eu gritava para eles fazerem linha, eles faziam, marcavam bem, mas o ruim é que eles esperavam muito o juiz apitar. Tinha um lance, eles paravam antes de o juiz marcar falta e por isso a gente perdeu uns dois gols”, analisou o defensor.

    Conexão Moinho (verde e preto) contra Canabes (laranja) | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    A partida era decisiva e marcava o encerramento da segunda edição da Copa do Moinho. Os jogos aconteceram em pelo menos seis finais de semana simultâneos ao Mundial da Fifa, com 13 times formados por integrantes diversos: meninos e meninas, jovens e adultos, moradores ou não da Favela do Moinho, localizada abaixo do Viaduto Engenheiro Orlando Murgel, a única na região central de São Paulo. “Nossa Copa é uma forma de protesto, de mostrar para esses jovens que Copa do Mundo não é só Fifa, que não é só lá que eles podem ter o sonho de jogar. A maioria dos moleques da periferia são os que jogam melhor e não têm uma oportunidade”, afirma Alessandra Moja, 34 anos, líder comunitária, coordenadora da competição e moradora da comunidade há 25 anos. Com muito mais gols do que no confronto da Rússia, onde França venceu a Croácia por 4 a 2, Conexão Moinho sagrou-se campeã diante da Canabes por 12 a 3.

    A fé carregada no pescoço e marcada na pele de um dos jogadores do time vencedor | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Dois times com cinco jogadores cada ocupavam o campinho de terra batida, desenhado cuidadosamente com pó de cal. Não foram poucas as vezes em que moradores do entorno, em vez de chuteiras, presenciaram coturnos chutando portas. “Os policiais chegam invadindo, atropelando todo mundo, quebrando cadeado, entrando em barraco com arma na mão e aqui é cheio de jovem, de criança”, relata Alessandra. A comunidade vem sofrendo com frequentes ações policiais, que se intensificaram após a operação de maio de 2017 na região da Luz, conhecida como Cracolândia. A gestão Doria argumentava que o local é ponto de fornecimento de drogas para o fluxo de dependentes químicos na Praça Julio Prestes, que fica a pouco mais de 1 km da favela.

    Torcida acompanha atenta a final do campeonato | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Os abusos por parte da polícia na favela não são exatamente uma novidade. Em abril, três jovens foram acusados de tráfico de drogas depois que a PM alegou ter encontrado 200 Kg de entorpecentes perto de onde o trio estava. Em junho, eles foram inocentados  por falta de provas. Há um ano, um jovem de 18 anos foi morto por policiais militares da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) e a comunidade denunciou aumento da repressão na região.

    “Acham que só porque a gente mora na favela que somos ladrões, traficantes, não é assim. Eu sou segurança e manobrista e onde eu trabalho, há oito anos, sempre que chega gente nova e pergunta onde eu moro e eu falo que é no Moinho, a pessoa já fica meio assim de me dar a chave para manobrar o carro no estacionamento”, conta Josuel Oliveira Santos, 24 anos, o goleiro Feijão.

    O sol que fazia na capital paulista obrigou os jogadores a se refrescarem na hora do intervalo | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    O goleiro prefere atuar como zagueiro em outros times de várzea porque gosta de estar circulando pelo campo, o que não foi possível durante a copa. A vitória do time por 12 a 3 é uma das conquistas deste ano. “Depois dessas férias de julho, eu vou começar a faculdade de Direito. Eu acho que todo mundo deveria conhecer os seus direitos para poder saber o que está certo e o que está errado”, aponta.

    O sentimento de união e compromisso é o que mais mobiliza os jogadores. “Eu fico muito feliz de poder jogar e contar com os meus companheiros”, sorri Jailson da Silva Santos, de 29 anos, que fez dois dos 12 gols do Conexão Moinho. “Meu sonho antigamente era jogar de forma profissional, mas acho que hoje em dia não dá mais porque a gente não tem condições, eu também estou velho. E se chegar para um empresário e falar que você mora na favela, não dão nem chance”, conta. O zagueiro costuma jogar em outro time de várzea quando não está trabalhando como estoquista na Rua 25 de Março, local de comércio popular no centro da capital paulista, para sustentar a família, de sete crianças, que mora há 10 anos na Favela do Moinho.

    “Essa copa aqui mostra para crianças como ser um time, para elas entenderem que a união faz a força. Humildade em primeiro lugar”, completou Michele da Silva Santos, 31 anos, companheira de Jailson.

    Comemoração de um dos gols do Conexão Moinho | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Uma puxada de camisa, um braço que bateu no rosto sem querer, um pênalti não dado. Com o peso do jogo decisivo, os ânimos também se exaltavam. “A gente lutou bastante, mas o outro time estava mais forte. Os dois perderam a cabeça em alguns momentos, mas só em campo, aqui fora tá tudo certo e vamos continuar jogando”, garantiu Alex Santos, 18 anos, com o uniforme amarelo do time Canabes.

    Marcação forte do Canabes contra atacante do Conexão Moinho | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Alex é estudante e mora desde os 11 anos na Favela do Moinho. Quando está em campo, diz que muita coisa passa pela cabeça. Uma lembrança, é o incêndio em 2011 na comunidade, quando três pessoas morreram. “Tinha surgido uma oportunidade, com uma autorização para uma bolsa de futebol, mas acabou queimando quando o barraco que eu morava pegou fogo”, recorda. “Só hoje eu e o Thiago voltamos a pensar nisso porque o cara da escolinha está selecionando e quem sabe a gente não estaria hoje no Barcelona”, sonha Alex.

    O primo de Alex, Thiago, de 17 anos, também vestia amarelo. Mais conhecido como Negro Drama, uma alusão à música dos Racionais MCs, foi um dos artilheiros da Copa, com oito gols. Quando um olha para o outro para pensar em um jogador que se inspiram, ele é taxativo. “Casemiro, ele manda muito na marcação”, enfatiza.

    Torcida dava pitacos sobre os lances e a arbitragem durante a partida | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    “É muito bom ter um campeonato porque geralmente não tem e ver um par de gente assistindo, os moradores, gente de fora, vocês de reportagem”, Matheus dos Santos, 21, um dos atacantes do Canabes aponta o dedo para as pessoas que continuavam ocupando o campo após o final da partida.

    Depois de tudo, morador brinca de embaixadinha com bola da partida | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

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