Cozinheiro é preso por roubo ocorrido enquanto comprava cigarro em banca de jornal

Imagens mostram Francisco ao sair do trabalho e comprando no momento do crime. Hoje ele responde o processo em liberdade, mas enfrenta restrições. ‘Nunca imaginei que uma injustiça dessa poderia acontecer comigo’, diz

Imagens de câmeras de segurança mostram Francisco voltando do trabalho com uma colega poucos minutos antes do crime | Foto: Reprodução de imagem da câmera de segurança

Vindo há quase um ano e meio de Teresina, no Piauí, para procurar melhores condições de trabalho na capital paulista, o cozinheiro Francisco Henrique Pereira de Matos, 22 anos, passou os últimos quatro dias preso no Centro de Detenção Provisória IV de Pinheiros, zona oeste de São Paulo, após ser preso sob suspeita de participar de um arrastão ocorrido às 19h28, na avenida Domingos de Moraes, na Vila Mariana, região sul de São Paulo, na última segunda-feira (12/9). 

Francisco foi detido em frente ao metrô Ana Rosa, em um suposto flagrante, meia hora depois de um roubo ocorrer enquanto ele saia do trabalho, junto com uma colega e parava em uma banca de jornal para comprar cigarro, conforme demonstram imagens de câmeras de segurança obtidas pela defesa.

“Meu pai me ensinou a não roubar nada de ninguém, posso ser pobre, mas aprendi a nunca pegar nada de ninguém, tenho meu trabalho honesto”, diz o cozinheiro, solto nesta sexta-feira (16/9), após a magistrada Celina Maria Macedo Stern, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), conceder a liberdade provisória.

A prisão ocorreu depois que os policiais militares Marcos Augusto Fonseca Jesus Lins e Pedro de Andrade Pinheiro Saraiva foram acionados via COPOM (Centro de Operações da Polícia Militar) para atender uma ocorrência de roubo.

Segundo documento do caso, assinado pelo delegado Rafael Godoi de Vasconcelos, do 27º DP (Campo Belo), os militares chegaram na avenida Domingos de Moraes e duas pessoas afirmaram que três homens haviam roubado seus celulares no trânsito.

Uma das vítimas era motorista de um carro por aplicativo e afirmou que um dos ladrões era moreno, magro e vestia moletom preto e short azul. Já a outra vítima, que estava no banco do passageiro, alegou que um dos homem que o assaltou era alto, moreno, tinha bigode e cavanhaque. Segundo esse relato, o assaltante vestia um moletom preto. 

Na sequência, os policiais passaram a procurar os ladrões e, cerca de 30 minutos depois, abordaram Francisco em frente ao metrô Ana Rosa. Segundo o documento, os PMs viram um senhor, na sacada de um prédio, que apontava para Francisco. Para os militares, ele indicava que ele seria um dos ladrões de celulares. O senhor, no entanto, não foi encaminhado para a delegacia como possível testemunha.

Durante a abordagem nada de ilícito foi encontrado com Francisco. Além disso, foram consultados os IMEIs (Identificação Internacional de Equipamento Móvel, na sigla em português) de dois aparelhos celulares Samsung que estavam com ele. Nenhum constava com registro criminal.

Ele teria alegado aos PMs que trabalha em um restaurante localizado na Rua Domingos de Morais, no entanto, os policiais não teriam encontrado o local. Francisco relatou que mora em São Paulo há um ano e quatro meses, mas não soube informar o endereço onde reside na hora da prisão. 

A abordagem, segundo o cozinheiro, foi violenta, o que prejudicou a memória do endereço onde vive. “Me trataram como se eu fosse um bandido, sendo que nunca fui. Mandaram colocar a mão na cabeça, perguntando cadê os outros indivíduos, fizeram revista pessoal, perguntando ‘cadê a arma?’, ‘cadê os objetos do crime?’, ‘cadê os outros?”. Eu falava que não fiz nada, que era trabalhador. Mesmo sem encontrar nada em relação ao crime disseram que iriam me conduzir para delegacia”, relembra.

“Fiquei apavorado”, conta, lembrando dos momentos de tensão na abordagem. “Nunca tinha sido ‘enquadrado’ em São Paulo, senti que estavam cometendo uma injustiça e que logo tudo seria esclarecido. Ainda disse que tinha acabado de deixar meu trabalho, que era cozinheiro em um restaurante próximo.”

Na delegacia, o motorista por aplicativo relatou que quando estavam na rua Domingos de Morais, com o trânsito parado, foram cercados por três homens, sendo que um deles bateu com uma arma no vidro, apontou para seu rosto e pediu celular e carteira, e também recolheram os pertences do passageiro. 

Disse ainda que o grupo roubou vários outros carros que estavam na rua, sendo que um dos indivíduos dava a voz de assalto e os outros, também armados, recolhiam os pertences. 

As vítimas identificaram Francisco como um dos autores do crime. No reconhecimento haviam outros três homens ao lado do cozinheiro, sendo que uma das vítimas apontou que “o autor possuía um sotaque nordestino bastante característico”.

Por fim, o motorista não reconheceu os aparelhos celulares encontrados como sendo seus.

Já o passageiro também apontou Francisco como um dos responsáveis pelo roubo, mas também não identificou nenhum dos dois celulares que estavam com o cozinheiro como seu.

Durante o interrogatório, Francisco negou as acusações e informou ao delegado que trabalha em um restaurante japonês localizado na Rua Domingos de Morais. Sustentou que havia saído por volta das 19h22 do trabalho, sendo que outras pessoas poderiam dizer o horário exato que saiu de lá. Apesar disso, Francisco foi indiciado pelo crime de roubo e teve a prisão em flagrante decretada.

No dia seguinte (13/9), em audiência de custódia, a juíza Celina Maria Macedo Stern acatou a posição da promotora de justiça do Ministério Público de São Paulo (MPSP) Mariana Pieragnoli Viana e confirmou a prisão em flagrante, argumentando que “se faz necessária a decretação da custódia cautelar para a garantia da ordem pública”. 

Defesa aponta ilegalidades

Diversas inconsistências no inquérito policial contra Francisco foram apontadas pelas advogadas Tatiane Candido da Silva, especialista em Direito Penal, e Midiã Souza de Lima, que requisitaram na última sexta-feira (16/9), a revogação da prisão preventiva contra Francisco.

O promotor do MPSP Pedro Fernandes Castelo Maciel se manifestou contrário ao pedido da defesa.

Para mostrar a inocência do cozinheiro, as advogadas juntaram imagens de câmeras de segurança que mostram Francisco saindo do trabalho, junto de uma colega, por volta das 19h22.

Também apresentaram imagens que compravam que às 19h38 ele estava na banca de jornais, comprando um cigarro em uma banca de jornal, ao lado da Drogaria São Paulo, localizada na Rua Domingos de Morais, 418.

As defensoras mostraram como era improvável que, nesse meio tempo, Francisco tenha se juntado a outros homens para efetuar o arrastão.

Segundo a defesa, o horário da câmera da banca de jornal estaria 10 minutos adiantado, conforme apontou o dono do comércio que cedeu as imagens.

Imagem de uma câmera de segurança mostra Francisco comprando um cigarro na banca de jornal | Foto: Reprodução de imagem da câmera.

Outro ponto questionado pelas advogadas é a falta de flagrante, conforme os termos descritos no Código de Processo Penal. “Francisco não estava cometendo crime nem havia acabado de cometer, não foi perseguido por ninguém, não foi encontrado com instrumentos, nem com armas, nem com objetos ou papéis que fizessem presumir ser ele o autor da infração. Assim, houve ilegalidade no momento da prisão”, afirma Midiã.

Os próprios policiais acionados pelo COPOM sobre o arrastão diligenciaram por trinta minutos, e só após esse período, prenderam Francisco na porta da estação de metrô, aponta a advogada. “Unicamente porque estava com roupas similares às descritas pelas vítimas”, diz a advogada. 

Ela ainda questiona quem seria o senhor que apontou Francisco como culpado. “Além disso, os policiais responsáveis pela prisão alegam que um senhor, da sacada de um prédio, apontou para Francisco dizendo que ele teria participado da ação criminosa. Porém, este senhor não foi ouvido, sequer qualificado nos autos do Inquérito Policial. Não houve o menor lastro probatório de autoria que pudesse fundamentar a prisão de Francisco”, reitera.

O cozinheiro reafirma que estava trabalhando em um restaurante perto da estação. “Saí do trabalho, no caminho passei em uma banca para comprar um cigarro, paguei com meu cartão de débito, e parei para fumar em frente ao metrô Ana Rosa, onde embarcaria, quando os policiais chegaram e me abordaram. Nunca imaginei que uma injustiça dessa poderia acontecer comigo.”

Além da prisão, o reconhecimento de Francisco não foi feito conforme os moldes do artigo 226 do Código de Processo Penal.

Segundo a advogada Midiã foram colocadas outras pessoas juntamente com Francisco no momento do reconhecimento, porém, ninguém fisicamente parecido. “As outras três pessoas colocadas ao lado de Francisco eram de baixa estatura, nenhum magro como Francisco, nenhum de cavanhaque, nenhum de blusa preta nem bermuda azul, sem nenhuma semelhança com Francisco.”

Para ela, o promotor do caso, ao se manifestar pela conversão da prisão em flagrante pela prisão preventiva, deveria ter pedido, de pronto, o relaxamento da prisão ilegal de Francisco e mesmo após todo o conjunto probatório continuou requisitando a manutenção da prisão.

“De toda forma, mesmo após o pedido de revogação da prisão carreado de todo o forte conjunto probatório, contendo declaração do patrão de Francisco sobre o horário que teria deixado o trabalho, imagens de câmeras de segurança, comprovante de residência, ficha de registro de trabalho e certidões de antecedentes confirmando a primariedade e bons antecedentes de Francisco, o MP [Promotoria] ainda assim, agindo com acesso, se manteve contra a soltura.”

O sistema de justiça no Brasil não é seguro, diz ela. “A polícia prende sem a menor certeza de que está prendendo a pessoa certa. Sabemos também, e foi bem destacado nos relatos colhidos das vítimas que Francisco era ‘moreno’. Neste ponto, nunca podemos esquecer a forte influência do preconceito racial e socioeconômico. Hoje a injustiça foi com Francisco, amanhã pode ser contigo ou comigo, lamentavelmente.”

Mesmo respondendo em liberdade, Francisco ainda possui limitações, pois não foi inocentado. Ele deve comparecer mensalmente em Juízo para informar e justificar suas atividades, bem como se houver uma eventual atualização de endereço. Está proibido de ausentar-se da cidade de São Paulo por mais de oito dias sem prévia comunicação ao judiciário. Ademais, deve permanecer em recolhimento domiciliar no período noturno (das 22 horas às 6 horas) e nos dias de folga.

Depois dos dias na prisão, Francisco convive agora com o medo da polícia. “Tenho medo devido ao preconceito com as pessoas simples e por sofrer em razão da nossa cor, quando na verdade sou um trabalhador com registro na carteira.”

Diante disso, a advogada Midiã lamenta que a prisão de Francisco não tenha sido um fato isolado no Brasil. “Francisco não foi o primeiro e não será o último, ele teve a felicidade de ter a favor de si inúmeras provas de que não teria participado do arrastão do qual está sendo acusado. Se Francisco estivesse na calçada de sua casa, ou se estivesse voltando da igreja, ou da padaria, provavelmente não teria como provar, e estaria preso até este momento. Felizmente, ainda, havia acabado de sair do trabalho e seu patrão, muito sensibilizado, forneceu todos os documentos necessários para provar a inocência de seu bom funcionário. Se assim se o patrão não tivesse certeza que não foi Francisco, provavelmente ele teria perdido seu emprego, seu ganha pão.” 

Em vista disso, inicialmente, a defesa vai impetrar Habeas Corpus no Tribunal de Justiça, requerendo o trancamento da ação penal por ausência de justa causa para a ação penal, pontua a advogada Tatiane. “Que é o lastro probatório mínimo e firme, indicativo da autoria e da materialidade da infração penal prevista de forma expressa no Código de Processo Penal. Paralelamente, irá continuar a defesa no processo que tramita contra Francisco no Fórum da Barra Funda, no sentido de provar sua inocência.”

O advogado Vinícius Jonathan Caetano analisou o caso de Francisco a pedido da Ponte. Na visão dele a prisão de Francisco baseou-se em preconceitos.

“Nós temos um indivíduo magro, de pele morena como sempre é o estereótipo do criminoso brasileiro formalizado pelos órgãos de segurança pública. O simples fato de os policiais entenderem que não havia restaurante ali foi o suficiente para prendê-lo. Foi desprezado o fato de que ele não tinha antecedentes criminais, de que consultaram os dois celulares que estavam com ele e que não havia nenhum ilícito penal sobre esses celulares e que haviam câmeras de segurança no local.”

O pedido de prisão por parte do Ministério Público tem se tornado uma forma de atuação modelo padrão, diz Vinicius. “A polícia judiciária brasileira está preocupada com a formalidade de validar uma prisão e, em contrapartida, temos o Ministério Público, que acha que a prisão é a solução pra tudo, muitos promotores têm essa conduta, eles pedem a prisão com uma espécie de protocolo padrão e estão muito mais preocupados com o êxito de manter o suspeito preso do que propriamente buscar verdade, é o que aconteceu nesse caso.”

Ajude a Ponte!

Depois dos dias na prisão, Francisco convive agora com o medo da polícia. “Tenho medo devido ao preconceito com as pessoas simples e por sofrer em razão da nossa cor, quando na verdade sou um trabalhador com registro na carteira.”

Diante disso, a advogada Midiã lamenta que a prisão de Francisco não tenha sido um fato isolado no Brasil. “Francisco não foi o primeiro e não será o último, ele teve a felicidade de ter a favor de si inúmeras provas de que não teria participado do arrastão do qual está sendo acusado. Se Francisco estivesse na calçada de sua casa, ou se estivesse voltando da igreja, ou da padaria, provavelmente não teria como provar, e estaria preso até este momento. Felizmente, ainda, havia acabado de sair do trabalho e seu patrão, muito sensibilizado, forneceu todos os documentos necessários para provar a inocência de seu bom funcionário. Se assim não fosse, se o patrão não tivesse certeza que não foi Francisco, provavelmente, teria perdido seu emprego, seu ganha pão.” 

Outro lado

A reportagem questionou a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, o delegado Rafael Godoi de Vasconcelos e os promotores sobre a prisão de Francisco.

Nenhuma das questões feitas pela reportagem foi respondida até o momento. Segundo a SSP “a ocorrência foi encaminhada ao Poder Judiciário, que deferiu a prisão. Outros questionamentos deverão ser encaminhados à Justiça.”

A Ponte também questionou o TJSP sobre a homologação da prisão em flagrante delito e sobre o reconhecimento feito em desconformidade com a lei. O órgão não respondeu até o momento.

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