Davi está preso acusado de roubo ao ser reconhecido ‘pelos olhos’; família diz que ele é inocente

Ajudante geral está preso há três meses; esposa diz que ele trabalhava em lavanderia no momento do crime, ocorrido em maio de 2022 na capital paulista

Davi Monteiro está casado com Vanessa Lima há oito anos e têm três filhos | Foto: arquivo pessoal

“Como alguém pode ser reconhecido pelo olho?”. A pergunta da assistente de vendas Vanessa Hércules de Lima, 29, mistura indignação e desespero ao telefone quando conta que seu marido, o ajudante geral Davi Silva Monteiro, 30, foi preso em 15 de setembro de 2022 e acusado por um roubo ocorrido em maio do mesmo ano, que afirma não ter cometido. “Quando ele foi preso, ele estava indo para o trabalho, com a marmita na mochila”, lamenta.

A única prova que existe contra ele são reconhecimentos feitos de forma irregular pela Polícia Civil de São Paulo, sendo que em um deles, que inicia a investigação, é de uma foto cortada em que aparecem apenas os olhos de Davi. A situação virou de cabeça para baixo os planos do casal. “A gente queria juntar dinheiro para financiar uma casa em outro lugar, maior, para as crianças”, conta Vanessa, que mora no bairro do Capão Redondo, na periferia da zona sul da capital, com os filhos de 10 meses e cinco e sete anos.

Desde dezembro de 2021 Davi estava cumprindo o regime aberto por roubo e porte ilegal de arma, crimes acontecidos entre 2013 e 2014. Nesse tipo de progressão ele deve comparecer mensalmente ao Fórum, não pode se ausentar de casa antes das 6h e depois das 22h, precisa ter um trabalho lícito, não pode portar armas nem frequentar locais como bares e boates. Ainda naquele mês, ele conseguiu um emprego como ajudante de motorista em uma lavanderia na região de Santo Amaro, na zona sul da cidade.

“Ele estava se ressocializando, se afastou de más companhias, mas infelizmente o passado sujo dele está sendo usado de maneira injusta, porque senão eu não estaria movendo o mundo para mostrar que ele é inocente”, afirma Vanessa.

A passagem criminal do jovem foi um dos pontos usados na investigação da 1ª Delegacia de Investigações sobre Roubos e Latrocínios do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic). Tudo começou quando um motoboy de uma casa de câmbio fez um boletim de ocorrência eletrônico denunciando que havia sido vítima de um roubo por volta das 10h, em 3 de maio de 2022, na Rua Manoel da Nóbrega, bairro da Vila Mariana, na zona sul da capital.

Ele escreveu que ia fazer uma entrega quando dois indivíduos, sendo um de blusa vermelha, se aproximaram e roubaram os envelopes nos valores de 1 mil euros, 4.450 dólares e 3 mil dólares canadenses. A vítima decidiu seguir a dupla, que estava de moto, e disse que conseguiu anotar a placa do veículo de um deles quando ela foi destampada e que depois os perdeu de vista. O motoboy descreveu apenas que os suspeitos eram magros e que um tinha 1,70 metro de altura enquanto outro tinha 1,80.

De acordo com os documentos do inquérito, a Polícia Civil identificou que a placa da moto estava em nome de Michel Evangelista, 37, que tinha passagem por porte ilegal de arma. De acordo com o relatório do investigador Ricardo Costa, “em uma das oportunidades que Michel foi autuado em flagrante acabou confessando que iria praticar roubo na modalidade ‘saidinha de banco’ na companhia de seu comparsa Davi Silva Monteiro” e que, por isso, mostrou fotos dos dois além de outras pessoas com antecedentes criminais à vítima. A confissão de Michel ocorreu em 2013 durante uma abordagem policial em que ele estava com uma arma de numeração raspada sentado na garupa de uma moto que Davi dirigia. Os dois foram condenados por porte ilegal de arma por isso.

O motoboy só foi ouvido oficialmente no Deic em agosto, ou seja, três meses depois do crime, e deu outros detalhes do roubo. Ele disse que um usava jaqueta laranja fluorescente com o nome da empresa iFood (e não mais vermelha) e o outro jaqueta azul e que faziam menção de estarem armados. Após a dupla ter levado o dinheiro, a vítima disse que decidiu seguí-la e viu quando um deles tirou a jaqueta azul e a guardou no baú da moto, momento em que visualizou uma tatuagem no antebraço, sem saber detalhar o desenho, e que conseguiu anotar a placa do veículo.

O motoboy relatou que só não continuou a seguir os suspeitos por receio de ter sido notado e que “embora ambos estivessem utilizando capacete, pode ver bem a fisionomia do rosto e principalmente a região dos olhos”. Nesse depoimento, contudo, não há a descrição de nenhuma característica física dos assaltantes. A vítima também afirmou que conseguiu imagens da câmera de segurança do prédio onde faria a entrega, mas no inquérito não consta nenhum pedido da delegacia de que esse material fosse anexado ou analisado.

Trecho de um dos autos de reconhecimento fotográfico com apenas a imagem dos olhos de Davi Monteiro para ser reconhecido pela vítima | Foto: reprodução

No depoimento do motoboy, consta que foi apresentada uma foto de Michel, a quem “reconheceu sem sombra de dúvidas” como o suspeito de jaqueta azul, e outra de Davi a quem reconheceu “com quase 100% de certeza” por meio da “fisionomia do rosto e principalmente a região dos olhos”. No inquérito, há três autos de reconhecimento fotográfico: um apenas com os olhos de Michel, um apenas com os olhos de Davi e outro com três fotos de rosto inteiro: sendo um de Davi, um de Michel e outro de um terceiro rapaz. Não há informação de cor do homem da terceira foto. Com base nos “reconhecimentos positivos”, a Polícia Civil pediu a prisão temporária (30 dias prorrogáveis), o que foi acatado pelo Tribunal de Justiça.

O procedimento, porém, viola o artigo 226 do Código de Processo Penal, que prevê que a vítima ou testemunha descreva as características físicas da pessoa a ser reconhecida e depois lhe sejam mostradas pessoas semelhantes para que ela indique se o suspeito do crime está entre elas. Diversas reportagens feitas pela Ponte e por outros veículos de imprensa mostram o risco de pessoas serem presas e acusadas injustamente por reconhecimentos falhos, o que fez o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) elaborar uma resolução, em dezembro de 2022, que estabelece diretrizes para reconhecimentos fotográfico e presencial. A medida entrará em vigor daqui a dois meses.

Auto de reconhecimento com três fotos: Davi, Michel e um terceiro rapaz. Davi é negro, Michel é branco e não há informação de cor no inquérito sobre o terceiro jovem. A Ponte censurou os dados pessoais e os rostos dos demais, além dos dados da vítima do roubo. | Foto: reprodução

Com os mandados de prisão expedidos, Davi foi preso a caminho do trabalho, no bairro do Capão Redondo, sem nenhum produto de crime. Já Michel foi detido na moto identificada pela vítima e portava ainda um revólver calibre 38 com numeração raspada na região de Pinheiros, na zona oeste da cidade. Ambos negaram participação no roubo na delegacia.

Cerca de 20 dias depois da prisão, os dois foram submetidos a reconhecimento presencial pela vítima. Consta no auto de reconhecimento que eles estavam ao lado de outros três homens, mas não há detalhes sobre as características físicas deles e todos juntos, mesmo tendo cores de pele diferentes, já que Michel é branco e Davi, negro. Dessa vez, diferentemente do que foi informado até então, havia descrições dos suspeitos do roubo da seguinte maneira:

Autor 1 – como aparentando aproximadamente 31 anos de idade, 1,70 m de altura, cútis [pele] parda, olhos castanhos e fazia uso de capacete na cor preta, jaqueta da empresa iFood de cor laranja.

Autor 2 – como aparentando aproximadamente 35 anos de idade, 1,80 m de altura, cútis branca, olhos castanhos, fazia uso de jaqueta da empresa iFood de cor azul.

Nesse documento, não é apontada a questão da tatuagem no antebraço. Mesmo assim, consta que o motoboy reconheceu Michel como o de jaqueta azul e Davi como o que vestia laranja “sem sombra de dúvidas”.

A advogada de Davi contesta o procedimento. “É lógico que ali a vítima ia reconhecer depois que a foto dele foi mostrada porque cravou na memória, foi induzido”, critica Gabriela Poletti.

Além disso, ela e a esposa apontam que Davi tem perfil diferente do descrito pela vítima. “Ele é muito baixinho e é gordinho enquanto no boletim de ocorrência a vítima diz que um tem 1,70 e o outro 1,80”, prossegue Poletti. Em boletins de ocorrência antigos, que tinham esse tipo de informação da pessoa detida, o de 2013 apontava que Michel tem 1,70 de altura e Davi, 1,62.

Esse também é um problema de reconhecimentos que podem gerar falsas memórias, por isso a resolução do CNJ prevê que as autoridades não mostrem fotos ou façam qualquer tipo de indução antes do ato de reconhecimento, como dizer sobre a vida pregressa da pessoa que será reconhecida, dar acesso prévio a informações que podem comprometer o procedimento ou apresentar uma única foto ou única pessoa a ser reconhecida.

No relatório final da investigação, o delegado Thiago de Souza Delgado indiciou os dois por roubo e pediu a prisão preventiva (por tempo indeterminado), o que foi aceito pela juíza Marcela Dias De Abreu Pinto Coelho, em novembro. No documento, Delgado ainda aponta que um colega do motoboy também foi vítima de outros quatro roubos semelhantes, ocorridos em março, e que havia reconhecido Michel e Davi como os autores do crime e que esses casos estão sendo apurados. Nesse inquérito, não foram anexados os boletins de ocorrência nem os autos de reconhecimento referentes a esses outros casos. Nem a Ponte nem a família teve acesso às investigações correspondentes.

Os dois viraram réus por roubo majorado (agravante de ter sido cometido com violência ou ameaça com uso de arma de fogo, com participação de duas ou mais pessoas e pela vítima estar em serviço de transporte de valores) cuja pena pode variar de quatro a 10 anos de prisão e multa, já que a denúncia da promotora Leticia Stuginski Stoffa foi acatada pela juíza. Agora o processo começa a correr para a fase de instrução, em que vítimas, acusados e testemunhas são ouvidas e provas produzidas. Stoffa também pediu que as imagens de câmera de segurança citada pela vítima fossem anexadas ao processo.

O receio da família é de que Davi acabe sendo condenado nos cinco casos pelo reconhecimento irregular. “Somado, seria mais de 30 anos, é muito injusto”, lamenta Vanessa.

A assistente de vendas tentou ir atrás da lavanderia onde o companheiro trabalhou, mas um dos proprietários não a ajudou e Davi foi demitido em outubro de 2022. “Eu pedi câmera de segurança, mas disseram que só armazenam as imagens por 30 dias, pedi a folha de ponto dele, mas [o proprietário] disse que estava em manutenção, pedi até carta para comprovar que ele estava trabalhando”, afirma.

Ela encaminhou à reportagem a troca de mensagens com Tárcio, responsável pelo estabelecimento que comprovam os pedidos, em que ele diz que “o ponto estava em manutenção” e que iria ver se algum dos motoristas que trabalham no local poderiam confirmar que Davi estava trabalhando. A Ponte entrou em contato com ele, que disse por mensagem que “o arquivo das imagens já tinha sido excluído quando foi solicitado”. Sobre a folha de ponto e se poderia passar contato de funcionários que poderiam estar com Davi no dia, não respondeu. A reportagem tentou marcar uma ligação, mas Tárcio recusou as chamadas.

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Outra advogada de Davi entrou com uma ação trabalhista contra a lavanderia alegando que a empresa não assinou a carteira de trabalho dele de dezembro de 2021 a março de 2022, tendo apenas formalizado contrato de experiência em abril de 2022 com prazo de 45 dias, não registrou sua efetivação no emprego após o período, além de não pagar verbas rescisórias, férias, 13º salário e afins. O processo está em tramitação no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região.

Durante esses cinco meses, Vanessa afirma que ela e as crianças estão abaladas. “Eu ainda não consegui visitá-lo porque trabalho de domingo a domingo, a visita [no Centro de Detenção Provisória de Pinheiros] é de sábado, mas eu só tenho folga de quarta-feira, então só fico sabendo como ele está por familiares de outros presos”, lamenta. “Essa injustiça só está acontecendo porque ele é preto”.

O que diz a polícia

A Ponte solicitou entrevista com o delegado responsável pelo relatório do caso e também questionou os pontos relacionados ao processo de reconhecimento. A Fator F, assessoria terceirizada da Secretaria da Segurança Pública, encaminhou a seguinte nota:

A Polícia Civil esclarece que segue as exigências do artigo 226 do Código de Processo Penal e seguirá as regras do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), quando entrar em vigor. O caso em questão foi investigado pela 1° Delegacia da Divisão de Crimes Contra o Patrimônio do Deic. Todas as providências legais foram adotadas e o inquérito policial foi encaminhado para apreciação da Justiça.

O que diz o Ministério Público

A reportagem também pediu entrevista com a promotora e questionou sobre o reconhecimento não ter sido contestado. A assessoria informou que “o MPSP está em recesso judiciário até dia 06/01 e funcionando em esquema de plantão” e que daria um retorno assim que tivesse contato com a Promotoria.

Reportagem atualizada às 12h44, de 11/1/2023, para incluir resposta da SSP.

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