Lei de 1979 era para anistiar quem lutou contra ditadura, mas serviu para ‘passar o pano’ a torturadores
Como chegamos a isso? Nesta semana, o homem que ocupa o cargo de presidente da República, Jair Messias Bolsonaro (PSL), zombou publicamente da dor do presidente nacional da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Felipe Santa Cruz, que perdeu aos dois anos de idade o próprio pai, Fernando Augusto de Santa Cruz, desaparecido após ser preso pela ditadura militar, em 1974. No dia seguinte, ao voltar ao tema, Bolsonaro mentiu sobre o desaparecimento, dizendo que o pai de Felipe teria sido morto não por militares, mas por colegas de militância.
Como chegamos a isso? A Ponte Jornalismo conversou com estudiosos e militantes de direitos humanos ligados à luta contra a ditadura e todos apontaram que a violência institucional representada por Bolsonaro é fruto da relação mal resolvida do Brasil com seu passado autoritário: ao contrário dos seus vizinhos, como Chile, Argentina e Uruguai, o País nunca puniu os militares que, ao longo do período autoritário, mataram pais de família, estupraram mulheres, torturaram crianças e sequestraram bebês.
Não era pra ser assim, mas a Lei de Anistia, de 28 de agosto de 1979, acabou deixando impune os crimes cometidos pelos militares. Quando a lei foi criada, embora o regime militar ainda estivesse em vigor, as notícias de tortura e desaparecimentos forçados já tinham circulado para além das fronteiras do Brasil. “A lei anistia as pessoas que lutaram contra a ditadura. Por pressão dos movimentos sociais, dos grupos de direitos humanos por pressão internacional, inclusive. Essa lei é como se essas pessoas que lutaram contra a ditadura nunca tivessem cometido crime. Foi apagado esse crime. Isso em 1979”, destaca Amelinha Teles, 74 anos, militante e vítima da ditadura, à Ponte.
“Não está escrito nessa lei que foi proibido punir os torturadores. Isso foi interpretado, posteriormente, por políticos, pelos próprios militares, ao entender que os torturadores também estariam anistiados”, continuou.
Em 2010, o STF (Supremo Tribunal Federal) teve oportunidade de mudar essa ampla interpretação da lei, que coloca vítimas do regime militar e torturadores em pé de igualdade. Mas a Corte disse “não” à ADPF (Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 153 e, assim, permitiu manter vítima e algoz merecedores do mesmo tratamento.
“Isso acaba fazendo com que haja um passaporte para essa violência institucional, é um permissivo que se tem essa interpretação da lei que deixa a impunidade dos crimes do passado e vai renovando os crimes do passado no presente. Acho que o Bolsonaro só representa o que todos esses setores herdeiros da ditadura passaram tanto tempo tentando fazer”, explica Renan Quinalha, advogado em direitos humanos e professor da Unifesp (Universidade Estadual Paulista).
O jornalista Pedro Estevam da Rocha Pomar, filho e neto de vítimas da ditadura, destaca a interpretação perversa do texto da lei. “Ela considera ‘conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política’. A suposição é de que a tortura, as execuções sumárias e outros crimes relacionados à repressão praticada pelo Estado ditatorial brasileiro são tão merecedores de anistia quanto os crimes cometidos pelos que se opuseram à Ditadura Militar”, avalia. Pomar é neto de Pedro Pomar, um dos mortos no Massacre da Lapa, em 1976, quando militares invadiram a sede do PCdoB. O pai dele, Wladimir perdeu a audição após sessões de tortura. E ele mesmo usou outro nome durante anos para viver em paz.
Para Pomar, a declaração de Bolsonaro é abjeta, porém, não surpreende, já que em muitas oportunidades o presidente de extrema-direita defendeu o golpe militar, chamando de “revolução”. O jornalista vê relação da ascensão dele com uma herança violenta da impunidade da ditadura que se perpetua em forma de violência policial.
“Ele é o produto mais acabado de uma sociedade doente, que naturalizou os crimes da PM, os linchamentos, a tortura, a ignorância, o fascismo cotidiano. Esse presidente da República, que agride a memória dos heróis que tombaram lutando contra a ditadura militar, é o mesmo que deseja a morte dos povos indígenas, que zomba da chacina de presidiários, que tripudia da proteção ao meio ambiente, que ajoelha como um lacaio perante o Império e que entrega risonhamente as nossas riquezas. É um projeto de enorme perversidade, que é preciso combater incansavelmente”, conclui o jornalista.
E o que Pedro Pomar aponta não é uma sensação. Foi comprovado em estudo internacional. Kathryn Sikkink, especialista em direitos humanos da Universidade de Minnesotta, aponta em seu livro “The Justice Cascade”, que analisou o impacto da redemocratização em cem nações, entre os anos de 1980 e 2004, aponta que a falta de punição aos crimes de ditaduras incentiva a violência policial. “Países que processaram os responsáveis pelas violações de direitos humanos, como Argentina e Chile, registraram os maiores avanços nos direitos humanos, enquanto países como o Brasil, que não fez os líderes autoritários prestarem contas de seus atos, têm os níveis mais altos de violência”, afirma a autora em artigo no The New York Times.
Desses países do cone sul, o Brasil é o único que ainda coloca em xeque os crimes cometidos pelo regime militar. Não à toa, tem uma relação bem diferente do que a Argentina, por exemplo, com o período. Nossos vizinhos repudiam a ditadura que deixou mais de 30 mil desaparecidos e não tem a menor dúvida no debate público sobre os crimes cometidos pelos militares. Prova disso é que por lá, o dia 24 de março, quando o regime começou, passou a ser uma data em memória das vítimas. Aqui no Brasil, Bolsonaro determinou “as devidas comemorações” para o dia 31 de março, quando houve o golpe militar aqui.
O presidente do Chile, Sebastian Piñera, repudiou declaração elogiosa de Bolsonaro ao ex-ditador Augusto Pinochet e relativizou a ditadura sangrenta que fez mais de 3 mil vítimas no país.
O advogado Renan Quinalha aponta a dificuldade que o Brasil tem em lidar com o tema, a demora em instituir uma Comissão da Verdade, também objeto de tentativa de desqualificação por Bolsonaro, e lembra que o presidente, à época parlamentar, foi o único que se opôs frontalmente a criação do dispositivo. “A declaração dele se assemelha com a forma com que ele se portou durante as sessões e trabalhos da Comissão da Verdade. Ele chamava de ‘comissão da mentira’, desqualificava os trabalhos que nós, pesquisadores, fazíamos nas comissões. Como disse, elas chegaram tardiamente, mas apesar dos limites institucionais e mesmo o boicote dos setores militares que não deram documentos, fizeram de tudo para atrapalhar os trabalhos, o fato é que as comissões deram contribuições fundamentais para reconstruir esse passado recente”, explica.
“Quando ele desqualifica o trabalho da comissão e diz que é uma coisa de governo, tenta dizer que é algo feito pela Dilma Rousseff, ele ignora que ela foi fruto de um grande acordo no congresso nacional com todas as bancadas e forças politicas representadas, mostrando que era uma comissão de Estado”, conclui Quinalha.
Para Amelinha Teles, Bolsonaro quer enganar a opinião pública, além de atentar contra os direitos fundamentais. “Eu não sei nem se ele conhece a história do Brasil, essa impressão que eu tenho. Porque quando ele faz essas falas absurdas a respeito de Felipe Santa Cruz, é uma coisa sem pé nem cabeça. Eles, militares da repressão, que desapareceram com o Felipe Santa Cruz têm que dar conta dos esclarecimentos, dos restos mortais. Falar a verdade sobre essa história. Ele [Bolsonaro] distorce os fatos. Por outro lado, ele comete uma grave violação dos direitos humanos e não respeita a Constituição. Ele não respeita os próprios tratados internacionais do Brasil”, criticou.
O Estado Brasileiro foi condenado em mais de uma oportunidade pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por crimes da ditadura: no caso “Guerrilha do Araguaia” (Lund Gomes e outros), em 2010, e no caso de Vladimir Herzog, que teve o assassinato disfarçado de suicídio pelos militares. A morte de Vlado foi julgada pela Corte em julho do ano passado e o país foi condenado por crime de lesa-humanidade por falta de investigação e punição dos responsáveis. A decisão da Corte, no ano passado, apontou que a Lei de Anistia não pode ser usada para impedir a punição de graves violações contra os direitos humanos cometidas por agentes do Estado.
Bolsonaro como cúmplice
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal publicou uma nota pública de repúdio às declarações do presidente. Para o órgão, elas são muito graves “não só pelo atrito com o decoro ético e moral esperado de todos os cidadãos e das autoridades públicas, mas também por suas implicações jurídicas”.
Se Bolsonaro declara publicamente saber o paradeiro de um desaparecido político, então é cúmplice de um crime. “A responsabilidade do cargo que ocupa impõe ao Presidente da República o dever de revelar suas eventuais fontes para contradizer documentos e relatórios legítimos e oficiais sobre os graves crimes cometidos pelo regime ditatorial. Essa responsabilidade adquire ainda maior relevância no caso de Fernando Santa Cruz, pois o presidente afirma ter informações sobre um crime internacional que o direito considera em andamento”, diz outro trecho da nota.
A Human Rights Watch também se pronunciou em nota assinada pelo pelo diretor da divisão das Américas José Miguel Vivanco, que chamou as declarações de “irresponsáveis, cruéis e merecem absoluto repúdio”.
Vivanco destaca o conteúdo de desinformação na fala de Bolsonaro. “Ao dizer que não tem registros documentais de sua versão e admitir que ela está baseada em “sentimento”, Bolsonaro fabrica informações, distorce completamente a verdade, e manifesta profundo desprezo à dignidade humana das vítimas da repressão do Estado e seus familiares. Queremos expressar solidariedade total às vítimas da ditadura militar no Brasil, e em particular neste caso, ao Dr. Felipe Santa Cruz, Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, e seus familiares”.