Defensoria pede que polícia devolva bicicleta de som de médico-palhaço

Após uma semana da detenção por “perturbação de sossego”, equipamento usado em atividade na “Cracolândia” segue apreendido; delegado admitiu no Instagram que prisão foi retaliação por denúncias realizadas usando a caixa de som

foto jeniffer mendonca
Ação do projeto Teto, Trampo e Tratamento com bicicleta de som junto com grupos e coletivos pela Rua Mauá em direção à Praça Princesa Isabel, no centro de SP, em setembro de 2021 | Foto: Jeniffer Mendonça/Ponte Jornalismo

O psiquiatra e palhaço Flavio Falcone, 42, teve de retirar do próprio bolso R$ 1.500 para comprar uma caixa de som e continuar desenvolvendo uma atividade de show de talentos e apresentações que coordena dentro do projeto Teto, Trampo e Tratamento na região conhecida pejorativamente como “Cracolândia”, no centro da capital paulista, para pessoas em situação de rua e com dependência química. Mais de uma semana após ter sido detido com outros profissionais de saúde, artistas e um fotojornalista, a Polícia Civil mantém apreendida a bicicleta de som que o médico utilizava todas as quintas-feiras. “Tivemos que comprar outra caixa para trabalhar”, lamenta.

A Defensoria Pública do Estado de São Paulo entrou com um pedido, na última sexta-feira (9/9), ao juíz do Departamento de Inquéritos Policiais da Capital (Dipo) para que o equipamento seja devolvido ao psiquiatra. “Neste cenário, considerando que a bicicleta não é um objeto proibido e que o requerente não estava em flagrante delito, não havia qualquer fundamento legal para a apreensão do bem em questão, tendo sido realizado verdadeiro confisco pela autoridade policial”, argumentou o Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos.

O órgão também havia entrado com um pedido de habeas corpus coletivo, que ainda não foi julgado, visando garantir a liberdade de circulação e de trabalho dos profissionais e artistas que atuam no projeto.

Na ocasião, um grupo de pelo menos 15 pessoas foi levado à delegacia sob a alegação de perturbação de sossego e recusa de dados sobre a própria identidade, que são contravenções penais, ou seja, infrações de menor potencial ofensivo.

O delegado Dimitrius Coelho Batista, do 77º DP (Santa Cecília), descreveu que a apreensão da bicicleta se deu por conta de denúncias registradas por moradores, apesar de não mencionar diretamente quais e quantos boletins foram feitos, e que o “som elevado e estridente” também incomodaria funcionários do próprio distrito policial. Flavio e os demais artistas afirmam que nunca foram intimados ou tiveram conhecimento de alguma investigação ou reclamação sobre o uso da caixa de som.

Os defensores apontam, na petição de habeas corpus, que “os profissionais que desenvolvem suas atividades na região popularmente conhecida como ‘Cracolândia’, na capital paulista, vêm sendo constantemente ameaçados no seu direito de ir, vir e ficar”, que “as abordagens e intimidações realizadas pela autoridade policial têm o claro propósito de dissuadir qualquer atividade dos pacientes no local” e que a perturbação do sossego acontece na verdade pelas incursões policiais com uso de balas de borracha e bombas.

Além disso, enfatizam que essas abordagens “têm como escopo a remoção das pessoas daquela área, por vias ilegais e sem qualquer mandado judicial, sem que se coloque à disposição das pessoas alternativas, simplesmente provocando uma diáspora que, longe de resolver um problema social, apenas o aprofunda”.

De acordo com a defensora pública Fernanda Balera, o pedido de habeas corpus foi uma forma de “resguardar as atividades na região da Cracolândia porque a gente entende que o trabalho do Flávio é um meio de resistência de atendimento à população vulnerável em relação às ações de espalhamento dos usuários que vêm acontecendo”.

Flávio Falcone atua como médico psiquiatra no programa para dependentes químicos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordena o projeto Teto, Trampo e Tratamento desde janeiro de 2020 na região do “fluxo”, como é conhecida a cena aberta de venda e consumo de drogas no centro da cidade de São Paulo.

Além de manter parcerias para fornecer trabalho e moradia para alguns dos pacientes, desenvolve uma atividade chamada “Rádio Kawex” na qual percorre algumas ruas do fluxo, tendo como ponto de partida e retorno o Teatro de Contêiner, realizando show de talentos e apresentações de MCs a fim de integrar e se aproximar de pessoas em situação de vulnerabilidade social pela ótica da redução de danos. A rádio acontece toda a quinta-feira, das 14h às 17h.

Uma das pessoas detidas na operação da Polícia Civil, em 1º de setembro, foi uma psicóloga que acompanha as atividades desde junho para uma pesquisa clínica sobre práticas de psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas. Ludmila Frateschi, 42, denuncia que foi atingida por uma bala disparada durante a ação. “Eu não sei nem de onde [a bala] veio porque eu estava correndo, a bala foi no chão e ricocheteou no meu braço”, declarou.

“Quando entramos no fluxo, o Flavio estendeu o tapete para marcar onde aconteceria o slamis, que é a atividade que ele faz lá, teve uma apresentação de poesias e depois começou o concurso [show de talentos] com uma das usuárias que tinha se inscrito para cantar e começou a cantar uma música gospel”, lembra.

“Logo que ela começou a cantar, a gente viu uma multidão descendo, correndo a Rua Helvétia, em direção à Avenida São João, eu saí correndo da multidão e, na hora que eu estava chegando na esquina da São João com a Helvétia, o policial apontou um fuzil dizendo para ninguém sair. Eu fui atravessar a rua e sair da mira dele, alguém atirou uma bala de borracha no meu pé, não pegou no pé”.

De acordo com ela, os policiais foram na direção de Flavio e da atriz Andrea Macera, ambos caracterizados de palhaços. “O policial apontou para o Flavio [e disse] ‘você para a delegacia’. [Flávio] disse que só iria se todos os profissionais do projeto fossem também e nós fomos em 15 pessoas. Na delegacia, ninguém dizia o porquê a gente estava sendo levado quando a gente perguntava, só foram pedir identificação para a gente mais de uma hora depois”, prossegue. Ela fez exame de corpo de delito sobre a lesão no braço, mas afirma que ainda não teve retorno do Instituto Médico Legal (IML).

A psicóloga e as outras oito pessoas ouvidas pela Defensoria disseram que em nenhum momento o grupo se recusou a se identificar no local e não tiveram a identificação solicitada no momento da abordagem. No distrito policial, o delegado também não coletou depoimento de ninguém. O fotojornalista João Leoci denunciou na ocasião que foi impedido de registrar a atuação da Polícia Civil.

Tanto a Defensoria quanto o advogado criminalista Flavio Campos apontaram que as detenções foram ilegais por serem para “averiguação”, tipo de prisão que não é permitida desde a Constituição Federal de 1988. “Foi uma prisão sem embasamento. Ele afirmou que trouxe as pessoas para cá para fazer uma averiguação. Não existe esse expediente de trabalho por parte da polícia. Não tem nenhum inquérito aberto, o delegado mesmo admitiu que fez isso baseado nas suas próprias suposições”, declarou à Ponte no dia da detenção coletiva.

As versões destoam do que o delegado titular da seccional Centro, Roberto Monteiro, postou em seu Instagram. Ele escreveu que as pessoas foram levadas à delegacia “em razão de não quererem se identificar e, o mais importante, pela existência de inúmeras reclamações de moradores da Santa Cecília e região, sobre a perturbação de tranquilidade causada pelo som em altíssimo volume”.

A Defensoria apontou no pedido de devolução da bicicleta que pediu ao delegado Severino Vasconcelos, do 77º DP, que fornecesse os boletins de ocorrência que tratassem dessas reclamações, mas ele se recusou. “Quando chegamos na delegacia, primeiro disseram que tinha um inquérito, depois que, na verdade, eram boletins de ocorrência. A gente pediu para ver e o delegado fez muita volta e disse ‘quem na verdade se incomoda sou eu'”, declarou a defensora pública Fernanda Balera.

Nos depoimentos colhidos pela Defensoria, aos quais a Ponte teve acesso, tanto os profissionais de saúde quanto os artistas relataram um clima “tenso” na região diante do aumento de abordagens e truculência policiais. Um dos episódios aconteceu uma semana antes, quando MC Nego Bala, 23, que participa do projeto Teto, Trampo e Tratamento, questionou uma abordagem pela GCM a um homem negro em situação de rua depois que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que guardas municipais não têm poder de polícia. Na ocasião, discutiu com um guarda que também filmava a ação e que registrou um boletim de ocorrência por desacato e injúria.

O delegado Roberto Monteiro cita uma parte do que aconteceu ao afirmar que “a referida bicicleta de som foi também usada para desacatar as forças policiais e até para a prática de injúria racial contra um GCM a serviço, pela pessoa do MC Nego Bala, que tem antecedentes criminais por roubo (condenado a 4 anos de prisão) e pratica atos infracionais desde os 12 anos de idade”.

A Ponte contou a história do MC em janeiro deste ano após o lançamento do seu primeiro álbum. À reportagem, o advogado do jovem, Erik Torquato, disse que ainda estuda com ele as medidas que vão ser tomadas diante da publicação do delegado.

Monteiro também afirma que o Instituto de Criminalística teria constatado que “o som da bicicleta funciona a 95 decibéis, em volume bem superior ao suportado, configurando, portanto, crime ambiental”. No entanto, nem o boletim de ocorrência nem o auto de apreensão indicam essa informação ou cometimento de crime ambiental. “A gente não viu ninguém medindo a caixa de som da bicicleta”, diz Ludmila Frateschi.

“Tudo que foi postado em redes sociais nós oficiamos pedindo acesso, mas até agora não teve resposta”, informa Balera.

Para o psiquiatra, a ação foi “uma tentativa de criminalização da redução de danos e das pessoas que defendem os usuários e estão denunciando as violações constantes de direitos humanos que essa operação está fazendo”.

Não é a primeira vez que Falcone é alvo de investigação policial. Em janeiro deste ano, o Tribunal de Justiça de São Paulo arquivou uma investigação aberta pelo Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (Denarc), da Polícia Civil, após um dos fundadores do Movimento Brasil Livre (MBL), o vereador Rubens Nunes (PSL), fazer uma representação criminal, em setembro de 2020, para apurar os crimes de apologia ao crime e indução ao uso indevido de droga contra ele e o coletivo A Craco Resiste, coletivo que denuncia violência policial no território desde 2017.

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Durante a campanha eleitoral de 2020, em vídeo e postagem no Twitter, Rubens Nunes, que disputava uma cadeira na Câmara Municipal, alegava que o coletivo se tratava de uma “ONG que distribuía cachimbo na Cracolândia”. E usou prints de publicações das redes sociais d’A Craco Resiste que tratava sobre defesa de direitos humanos e a abordagem de redução de danos como meio para tratar dependência química.

Na época, ele declarou à reportagem que não concordava com esse tipo de política pública. A investigação do Denarc apontou que não existiam provas de que o coletivo e o psiquiatra praticavam crimes. Ambos não faziam distribuição de cachimbos, embora a prática para redução de danos também não seja ilegal e já foi adotada como política pública pelo Ministério da Saúde.

O que diz a polícia

A Ponte solicitou entrevista com os delegados Severino Vasconcelos e Roberto Monteiro, via assessoria da Secretaria da Segurança Pública (SSP), além de questionar sobre os pontos e pedidos feitos pela Defensoria Pública sobre a detenção e apreensão da bicicleta de som.

Em nota, a SSP respondeu que “a ocorrência foi registrada como contravenções penais por perturbação do trabalho ou do sossego alheios e recusa dados sobre própria identidade/qualificação pelo 77º Distrito Policial, que instaurou inquérito policial para apurar todas as circunstâncias do fato. Na ocasião, 15 pessoas foram detidas na tarde do dia 1º de setembro, durante a Operação Caronte, na região central de São Paulo. Moradores do bairro denunciaram que o grupo circulava na região usando um equipamento de som causando diversos transtornos e perturbando o sossego. Oito moradores já foram ouvidos e novos depoimentos serão colhidos nos próximos dias. A caixa de som foi apreendida para perícia, que constatou a prática de crime ambiental, tendo em vista que a caixa de som estava com a altura em 96 decibéis“.

Reportagem atualizada às 12h30 do dia 14/9/2022 para incluir posicionamento da SSP

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