Entidade computou 223 casos de violações de direitos humanos em unidades prisionais brasileiras entre 2021 e 2022; maioria das denúncias são de falta de assistência de itens básicos para presos, agressões físicas e negligência
Enquanto os golpistas presos em Brasília pela destruição dos prédios do Planalto, Congresso Nacional e Superior Tribunal Federal reclamam da falta de wi-fi na cadeia ou por terem sido encarcerados contra a sua vontade, a realidade cotidiana nos presídios brasileiros segue bem mais dura. Comida azeda ou estragada, falta de atendimento médico, xingamentos, chutes, tapas, introdução de spray de pimenta no ânus, golpe de cassetete, gordofobia, revista vexatória, humilhações a familiares de presos e mortes são algumas das denúncias que a Pastoral Carcerária Nacional recebeu entre 1º de julho de 2021 e 31 de julho de 2022. A entidade levantou 223 casos de tortura em unidades prisionais brasileiras, o que representou um aumento de 37% em relação ao mesmo período de 2019 a 2020.
Uma dessas denúncias foi reportada pela Ponte no ano passado: a família de João*, um jovem negro paraplégico de 26 anos, relatou o risco de o filho não sobreviver na Penitenciária de Dracena, distante a 650 quilômetros da capital paulista. Ele tem infecção nos ossos, usa fraldas e carrega quatro feridas profundas e permanentes nos glúteos, que precisam ser limpas duas vezes por dia, sob risco de infecção, e está com 80% da audição comprometida devido a antibióticos que fez uso. Além disso, a própria mãe tinha que enviar os materiais e curativos para o filho. Depois de seis meses, o Tribunal de Justiça concedeu o direito à prisão domiciliar.
O caso de João está entre os três mais recorrentes no levantamento da Pastoral: falta de acesso a itens básicos (55%) e de atendimento à saúde (47,5%). Além desses, em segundo lugar estão as agressões físicas (52%). Facadas, afogamentos, choques e pauladas na cabeça, por exemplo, foram alguns dos relatos de detentos do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, na região metropolitana da capital de Goiás, segundo familiares de presos, como a Ponte contou em novembro de 2021.
Para Mayra Balan, advogada da Pastoral Carcerária, o aumento do número de denúncias é multifatorial. “As pessoas estão conhecendo mais o nosso canal de denúncias, as pessoas conseguem falar conosco através do WhatsApp, começaram a usar mais o celular, mas a variável mais importante é o recrudescimento desse Estado penal, desse Estado punitivo. Os familiares também entenderam que passar fome não é normal, não ter água não é normal, que é preciso denunciar, que tortura não é só agressão física”, afirma.
Das 27 unidades federativas, São Paulo lidera o ranking, com 71 casos — também é o estado com a maior população carcerária: 195.302 pessoas até 13 de janeiro deste ano, segundo a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP). Em sequência, estão Minas Gerais e Goiás com, respectivamente, 31 e 17 denúncias. Os casos se concentraram, especialmente, em unidades prisionais voltadas a homens cisgêneros (que se identificam com o gênero de nascimento), totalizando 89,2%, e que já estão cumprindo pena (54,7%).
Balan entende que a presença maior de mecanismos de controle social e organizações de direitos humanos com sede em São Paulo também facilita a expressividade de casos no estado.
As denúncias foram coletadas por diversos meios: formulário online no site da Pastoral Carcerária (173), pelo e-mail da entidade (27), ligação telefônica (16), atendimento presencial (3), carta (3) e um por outro meio não divulgado. A maior parte dos denunciantes são familiares de pessoas presas (48,4%), mas também há ocorrências em que os próprios agentes da Pastoral observam as violações (5,3%), as próprias vítimas denunciam (4,4%), advogados (3,1%), atores que circundam o sistema de justiça (3,1%), servidores da unidade prisional (1,3%) e pessoas que não especificaram a relação com o sistema prisional (37,2%).
Já os autores mais frequentes das violações apontadas são policiais penais (156), seguidos da direção da unidade prisional (129). Por isso, a organização não identificou os envolvidos em cada caso para evitar retaliações aos denunciantes e às vítimas.
No entanto, apesar de tomar a frente da cobrança pelas denúncias, Mayra Balan aponta que a Pastoral Carcerária também é alvo de represálias. “Ao longo dos anos a gente percebe que as autoridades públicas acabam ou punindo nossos agentes locais, porque a Pastoral é formada por agentes locais em quase todos os estados do país, ou diminuindo a visita religiosa ou superpoliciando as visitas dos nossos agentes”, afirma.
“Na cidade de São Paulo, a Pastoral só consegue visitar as prisões na gaiola ou viúva, como eles chamam, em que os presos ficam todos amontoados em frente a uma porta de grade e os agentes da Pastoral conversando, porque as autoridades não deixam mais a gente entrar nos pátios, visitar as celas, é uma tentativa de punição do nosso trabalho”, denuncia.
Outro exemplo ocorreu no ano passado quando o promotor Fernando de Aurvalle Krebs, responsável pela inspeção dos presídios de Goiás, declarou em entrevista à Ponte que “preso reclama de tudo” e que quem denuncia teria “interesses escusos”. A Corregedoria-Geral do Ministério Público do Estado de Goiás (MPGO) decidiu abrir um procedimento disciplinar para apurar a conduta dele após a Pastoral entrar com uma reclamação disciplinar contra ele devido às declarações dadas à reportagem.
De acordo com a Pastoral Carcerária, todas as denúncias recebidas são encaminhadas para Defensorias Públicas, Ministérios Públicos, Judiciário e outras instituições. 124 casos tiveram a abertura de uma apuração interna, mas isso não significa que o problema foi resolvido, já que é a fase inicial para identificar se houve ou não uma violação dentro da unidade prisional.
“A gente têm muita dificuldade em fazer as autoridades entenderem que as pessoas estão passando por tortura, são muitos poucos os casos em que a gente consegue a responsabilização e a gente sabe que, por exemplo, a punição de um agente penitenciário que cometeu tortura não é suficiente porque ele vai sair e vai entrar outro que também vai fazer tortura porque está na lógica do cárcere”, explica Balan.
Contudo, a advogada sinaliza que a cobrança “é um meio de provocar as autoridades a colocarem um olhar sobre aquela situação, a irem até o presídio, ainda que são poucos que vão, a não culparem as pessoas presas, ainda que sejam poucos que escutam. A gente entende que as denúncias são efetivas dessa forma, a fazer com que as autoridades façam o seu papel”.
Mayra Balan aponta que só as denúncias de violações são insuficientes e que precisam ser tomadas medidas estruturais. “A Pastoral defende um mundo sem cárcere, a gente vê o cárcere por si só como um ambiente torturador e construído para levar as pessoas que estão à margem da sociedade: pretas, pobres, periféricas. Se essas pessoas já são indesejadas, não existe ambiente que seja possível colocar elas que não seja torturador”, explica.
A entidade é uma das organizações que em 2013 estipularam uma Agenda Nacional pelo Desencarceramento, que completa 10 anos neste ano. “A agenda tem 10 pontos para o desencarceramento, e acreditamos que podemos avançar em diferentes pontos da agenda, como suspensão de verba para construção de novos presídios, desmilitarização da polícia, revisão da Lei de Drogas, e o amplo acesso da sociedade ao cárcere”, elenca Mayra.
O que dizem os governos
A Ponte procurou as secretarias de Administração Penitenciária dos três estados que lideram o ranking de denúncias e a Secretaria Nacional de Políticas Penitenciárias (SENAPPEN), do governo federal.
A Polícia Penal de Goiás encaminhou a seguinte nota:
Todas as denúncias recebidas de eventuais violações de direitos humanos dentro do sistema penitenciário goiano são tratadas com a devida responsabilidade e agilidade pela Diretoria-Geral de Administração Penitenciária (DGAP).
A DGAP garante aos custodiados e custodiadas os direitos assegurados pela Constituição Federal e pela Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210, de 1984). Mesmo privado de liberdade, são garantidos os direitos fundamentais atinentes aos direitos humanos.
A Secretaria Nacional de Políticas Penitenciárias, através de nota, respondeu que:
As denúncias recebidas pela Secretaria Nacional de Políticas Penitenciárias (SENAPPEN), antigo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), são tratadas pela Ouvidoria Nacional dos Serviços Penais, que tem a atribuição de protocolar e dar encaminhamentos aos órgãos responsáveis pela apuração, como Ministérios Públicos, por exemplo. Tais demandas permanecem em monitoramento aguardando as informações acerca das providências adotadas pelos órgãos demandados.
Para além dessa atribuição, a Ouvidoria também é responsável por inspecionar estabelecimentos penais e produzir relatórios para subsídio da gestão penitenciária. Nesse sentido, é realizado um cronograma anual para designação das unidades da federação que serão visitadas durante o ano, levando-se em conta critérios estabelecidos pela Ouvidoria.
A transformação do antigo Depen em Secretaria de Políticas Penais, mudança que consta no artigo 59 da Medida Provisória nº 1.154, de 1º de janeiro de 2023, aprimora em ainda mais o trabalho desenvolvido por servidores e colaboradores em busca de transformações do sistema prisional. Além da Diretoria de Políticas Penitenciárias, diretoria que já compunha o órgão, que dentre as funções está o planejamento, coordenação, direção, controle e avaliação das atividades relativas à implantação e à gestão de serviços penais e colaborar técnica e financeiramente com os entes federativos, agora, contará também com a Diretoria de Cidadania e Alternativas Penais, como reforço na atuação do órgão, além de outras Diretorias.
A SAP de São Paulo disse que precisaria ter acesso à íntegra das denúncias para emitir uma posição. Sobre a delimitação de assistência religiosa, a assessoria informou que apenas visitantes das pessoas presas podem circular pelo pátio.
A Secretaria de Justiça e Segurança Pública de MG não respondeu até a publicação.
O que diz a Defensoria Pública de SP
O Núcleo Especializado de Situação Carcerária (Nesc) da Defensoria Pública de São Paulo aponta que “é lamentável que o Estado de São Paulo não tenha, até o presente momento, criado o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, apesar de o legislativo estadual ter aprovado o PL 1257/2014, o qual foi vetado pelo então governador João Dória. Ressalta-se que o Estado de São Paulo é o estado com o maior número de unidades prisionais e a maior população carcerária do país, sendo o estado com o maior número de denúncias de violações de direitos desta natureza segundo dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. A Defensoria Pública vem atuando juntamente com entidades da sociedade civil nesse tema.
Recebemos diariamente diversas denúncias relacionadas à violação aos direitos fundamentais das pessoas presas. As denúncias chegam ao NESC por meio de cartas, e-mails, Disque Direitos Humanos (Disque 100), atendimento de familiares de pessoas presas feitos diretamente pelo Núcleo e informações obtidas por Defensores Públicos durante os atendimentos a pessoas presas. As denúncias são encaminhadas aos Defensores Públicos responsáveis por cada unidade prisional, para adoção das medidas cabíveis.
As violações aos direitos das pessoas presas também são sistematicamente constatadas nas inspeções realizadas pelo NESC mensalmente em unidades prisionais do Estado de São Paulo. A partir das inspeções realizamos relatórios divulgados no site da Defensoria Pública e, a depender do caso concreto, encaminhamos ofícios e recomendações aos estabelecimentos prisionais, ingressamos com pedidos de providências junto ao Juízo Corregedor dos Presídios competente e também ações civis públicas“.
O que diz o Ministério Público de SP
A assessoria do órgão encaminhou a seguinte nota:
Todas as notícias de fato foram enviadas aos promotores de Justiça que exercem a corregedoria de presídios; e todos os promotores de Justiça passaram a apurar os fatos, seja no eixo criminal ou no âmbito da corregedoria de presídios. Nenhuma ocorrência ficou sem providência ou sem apuração.
O MPSP é rigoroso com esse tipo de notícia de fato e, inclusive, por meio dos promotores de execuções criminais, realiza visitas periódicas nos presídios estaduais.
*Nome foi trocado a pedido da família que teme represálias.