Promotora Flávia Lias Sgobi disse ter sabido de do vídeo que mostra mulher sendo agredida em 2020 apenas pela imprensa. Advogado diz que promotora só desistiu de denúncia após repercussão negativa na mídia
Depois de denunciar uma mulher negra que teve o pescoço pisoteado por um policial militar em uma abordagem em 2020 em uma bar em Paralheiros, zona sul da cidade de São Paulo, a promotora do MInistério Público de São Paulo voltou atrás em sua decisão e pediu para rever a ação. Em um requerimento feito nesta sexta-feira (22/10), Flávia Lias Sgobi informou ao Tribunal de Justiça de São Paulo que o caso tem fatos novos, e por isso precisa ser revisto.
Ela tinha denunciado a mulher na última terça-feira (19/10) alegando que a dona de bar e seus dois clientes resistiram à prisão e ofenderam e agrediram os soldado João Paulo Servato e o cabo Ricardo de Morais Lopes. Porém, apenas três dias após a sua decisão, ela afirma ter sabido pela imprensa de que os policiais já foram denunciados à Justiça Militar e a existência de vídeos que registram a violência dos policiais.
“Diante disso, a subscritora solicitou informações à Promotoria da Justiça Militar para confirmar a veracidade das informações, o que se verificou, conforme cópia da denúncia, que segue anexa”, explicou Sgobi em seu requerimento.
No documento, ela cita o advogado que atua no caso defendendo a mulher agredida pelos PMs, afirmando que o defensor, ao invés de apresentar as provas a Justiça, preferiu divulgar o material na imprensa. “Ressalto que, estranhamente, o representante legal da vítima nestes autos, Dr. Felipe Pires Morandini (fls. 109/110), ciente da existência dos vídeos e da denúncia oferecida contra os policiais militares, não trouxe tais fatos aos autos, apenas pronunciando-se diretamente à imprensa após oferecida a denúncia.”
“Ela fala que esses fatos novos deveriam ser apreciados no momento de apresentação da denúncia e faz ataques a mim dizendo que eu agi de má fé por ter encaminhado isso à mídia, o que é um total absurdo”, diz o advogado Felipe Morandini.
O responsável pela defesa da mulher agredida aguarda uma nova manifestação da promotora e que dessa vez a decisão não seja contrária a sua cliente. “Eu nunca vi isso acontecer na minha vida. Isso é claramente algo que veio após a repercussão que teve na mídia a denúncia que ela fez. Acho que é possível que ela reveja essa decisão e eu espero que isso aconteça”.
Em outro trecho do requerimento, a promotora Flávia Lias Sgobi diz que Morandini teve má fé em divulgar os vídeos nos meios de comunicação. “Diante disso, sendo a opinião do Nobre Causídico de que referido vídeo era suficiente para inocentar sua cliente, faltou com boa-fé e/ou deixou de representar adequadamente a investigada nos autos.”
Em nota divulgada para a imprensa, o advogado rebate a acusação da promotoria sobre a sua atuação no caso. “O ataque direto à defesa demonstra claramente a desatenção e irresponsabilidade para com a denúncia apresentada. Pelo princípio da presunção de inocência, é dever da acusação produzir a prova acima da dúvida razoável (reasonable doubt), de modo que o ônus da prova recai integralmente à acusação que deve possuir elementos indiciários mínimos para apresentar a denúncia, é prova suficiente (leia-se: incontestável) para a condenação. Tal ônus não pode (e não deve) ser transferido à defesa.”
O caso
No dia 30 de maio de 2020 a dona de um bar em Parelheiros, na zona sul da cidade de São Paulo, teve a perna quebrada e o pescoço pisado por um policial militar. O caso foi revelado pelo Fantástico, da TV Globo.
Segunda a vítima, no dia das agressões, ela nem sequer foi abordada pelos policiais. O que aconteceu foi que um policial estava dando golpes em um cliente e ela tentou intervir. “O rapaz já tinha apanhado bastante, estava caído. Pedi para o PM parar, aí o outro me jogou duas vezes na grade do bar”, contou ela à época para a Ponte.
“Fiquei tonta com os golpes, ele me deu uma rasteira. O chute pegou na canela e quebrou minha tíbia. Quando eu disse isso, ele falou ‘quebrou porra nenhuma’ e pisou no meu pescoço”, relatou a mulher.
Traumatizada, disse na época que não lembrou ao certo quanto tempo o PM permaneceu com a bota apoiada em seu pescoço e que chegou a desmaiar. “Não foi pouco, não. Colocou todo o peso do corpo. Meu rosto esfregou o asfalto enquanto ele me algemava” , explicou. Depois, o policial ainda colocou o joelho em seu pescoço e sua costela quando estava jogada na calçada. A comerciante foi levada ao pronto-socorro do Hospital Balneário São José e depois ao 101º DP (Jardim Imbuias), junto com os outros dois clientes.
Na delegacia, os policiais deram uma versão completamente diferente. Ricardo e João alegaram que receberam chamado a respeito de descumprimento de quarentena em um bar e tão logo chegaram ao local disseram que haviam quatro pessoas consumindo no estabelecimento, mas antes de conseguirem falar com o proprietário, um deles teria fugido. Ao tentar mandá-lo encostar na parede, os policiais afirmam que Luís teria dito “vou colocar a mão na cabeça não, tio! Vai se fuder”, que chegou a empurrá-los e resistiu ser algemado.
A dupla alegou que, nesse momento, sentiram “pancadas na cabeça e chutes” e que apareceu “uma senhora descontrolada, utilizando uma barra de ferro para agredi-los, acompanhada de outros dois rapazes, que também os agrediam com chutes e socos”. Ricardo disse que conseguiu arrancar a barra da mão dela mulher e enquanto tentavam conter os demais que a população ao redor os chamavam de “vermes”. Disse que a comerciante retornou com um rodo e reiniciou as ofensas verbais e agressões físicas aos policiais militares e que a situação só se acalmou quando solicitaram reforço. Na ocasião, como a comerciante não teve alta do hospital, ela permaneceu sob escolta e não deu depoimento no dia.
A delegada Isabela Pereira Bahia entendeu que a mulher e os dois clientes praticaram lesão corporal contra os PMs, além de desobediência, resistência à prisão e desacato, e também solicitou as prisões dos três. Em audiência de custódia, o juiz Fabrizio Sena Fuzari determinou que a comerciante e os dois clientes respondessem o processo em liberdade, cumprindo medidas cautelares (comparecimento mensal em juízo, não estar fora de casa entre 22h e 6h, não sair da cidade sem autorização), já que os três não têm antecedentes, têm residência fixa e trabalham.