Desembargador Ivan Ricardo Garisio Sartori, relator do processo, afirma que “as tropas foram recebidas a tiros pelos detentos, razão pela qual atiraram em revide à agressões que recebiam”. Leia a minuta do voto do magistrado na íntegra
Os desembargadores Ivan Sartori (relator), Camilo Léllis e Edison Brandão, da 4ª Câmara Criminal do Tribunal do Júri, foram os responsáveis por anular os primeiros julgamentos que condenaram 73 PMs, além do falecido Coronel Ubiratan Guimarães, a penas que variavam de 48 a 624 anos.
Os policiais envolvidos são acusados de participação no Massacre do Carandiru, quando 111 pessoas foram mortas após uma ação policial, em 2 de outubro de 1992. Para os três desembargadores, as provas do processo evidenciaram que a ação da PM foi necessária e que os policiais agiram no estrito cumprimento do dever na tentativa de controlar uma rebelião.
Os magistrados entenderam que não havia elementos suficientes para comprovar quais foram os crimes cometidos por cada um dos policiais. Apesar do pedido de absolvição de todos, feito por Sartori, os outros dois desembargadores pediram novos julgamentos. Agora, os réus serão submetidos a novo julgamento pelo 2º Tribunal do Júri da Capital, ainda sem data marcada para ocorrer.
Por envolver grande número de réus e de vítimas, o julgamento inicialmente foi dividido em quatro etapas. Cada etapa analisava o que ocorreu em cada um dos pavimentos da penitenciária.
A reportagem da Ponte Jornalismo teve acesso à minuta do voto de Ivan Sartori, relator do caso. Clique aqui e leia na íntegra. Nele, há a explicação de que a investigação foi feita por pavimentos e há a contabilidade de pessoas mortas por cada andar da Casa de Detenção: no térreo, ninguém; no primeiro andar, 15 mortos pela Rota; no segundo, 78 mortos pela Rota; no terceiro, oito mortos pelo COE; no quarto andar, 10 mortos pelo Gate.
Na minuta obtida pela reportagem, o desembargador relembrou o 1º Júri, realizado em 15 de abril de 2013, preservando os nomes e a quantidade de PMs, citando que eles haviam sido condenados a 156 anos de prisão cada um por 13 homicídios qualificados. No 2º Júri, ocorrido em 29 de julho de 2013, PMs foram condenados a 624 anos por 52 homicídios qualificados. O MP cobrou a perda do cargo público dos condenados até então.
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No 3º Júri, realizado em 17 de março de 2014, os PMs foram condenados a 96 anos de prisão por oito homicídios qualificados. No mesmo julgamento, um outro policial foi condenado a 104 anos “em razão dos maus antecedentes”. No 4º Júri, de 31 de março de 2014, os PMs foram condenados a 48 anos de prisão por quatro homicídios também qualificados. No 5º Júri, de 9 de dezembro de 2014, mais PMs foram condenados a 624 anos por 52 assassinatos.
Ao justificar seu voto contrário às condenações, Sartori relembra o que ocorreu naquele 2 de outubro. “Por volta das 11h, o então diretor José Ismael Pedrosa foi cientificado por funcionários de que havia eclodido um conflito entre presos do Pavilhão 9, que teve início com uma briga envolvendo os detentos Luiz Tavares de Azevedo, vulgo “Coelho”, e Antonio Luiz Nascimento, vulgo “Barba””, escreveu.
“Gerou um acirramento de ânimos, verificando-se tumulto generalizado entre os grupos de presos, quando se alinharam, de um lado, os partidários de “Barba” e, de outro, os de “Coelho”. Agentes penitenciários foram acionados, tendo sido, contudo, expulsos do 1º andar, onde se aglomeravam os rixosos”, diz.
Assim, o diretor acionou a Polícia Militar. “O coronel Ubiratan Guimarães determinou a mobilização dos Batalhões de Choque e do Grupamento de Polícia de Operações Especiais. Após reunião “in loco” e conversação telefônica com o então secretário da Segurança Pública, Cel. Ubiratan entendeu pela necessidade de invasão do pavilhão pela PM com vistas ao restabelecimento da ordem no local”.
O desembargador afirma que os PMs envolvidos afirmaram que, ao entrarem na prisão, já viram detentos mortos no chão. E que a “escuridão, fumaça, chão úmido e escorregadio dificultavam a ação policial”. De acordo com os policiais, o barulho era ensurdecedor e alguns presos, aidéticos, “praticavam atos para infectá-los com sangue”. E continua, com base em argumentos utilizados pelos policiais: “ao atingirem o piso dos pavimentos, as tropas foram recebidas a tiros pelos detentos, razão pela qual atiraram em revide à agressões que recebiam”.
Em contraponto, Sartori afirmou que “as vítimas, por sua vez, de um modo geral, disseram que não ofereceram qualquer resistência e que os policiais já entraram atirando”. Para isso, ele utilizou e citou o nome de três sobreviventes do Massacre do Carandiru.
No fim, ele afirma que as “versões apresentadas pelos detentos ofendidos parecem fantasiosas, não encontrando apoio no conjunto probatório”. O desembargador argumenta que um dos presos relatou que um policial matou muita gente com uma marreta e que, depois, jogou os corpos no poço do elevador, o que não foi constatado na perícia.
A conclusão de Ivan Sartori é de que “parece que, antes da entrada os policiais, já havia detentos mortos e arma no local, inclusive porque já se ouviam tiros no interior do pavilhão”. Ele cita que a perícia concluiu que não houve disparos de arma de fogo em sentidos opostos, “entretanto, o fato é que vários foram os policiais feridos por arma de fogo, sem falar nos coletes e escudos, também alvejados”.
Ele também relata que foram apreendidas 13 armas de fogo e mais de 500 armas brancas. “Detentos que entregaram saíram ilesos. 2 mil foram rendidos”, afirma em seu voto o desembargador. “Merece exame mais acurado, então, a alegação acusatória de que os réus tinham a intenção de praticar um massacre”, afirmou. “Chegou-se à conclusão de que houve excesso, porém, sem a possibilidade de identificar quem se excedeu”, conclui.
Relator político
Ivan Ricardo Garisio Sartori foi um dos presidentes mais jovens do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao ficar à frente da corte, com 54 anos, no biênio de 2012 e 2013.
No evento solene de posse do desembargador Ivan Ricardo Garisio Sartori como presidente do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), em 7 de fevereiro de 2012, estiveram presentes os então vice-presidente Michel Temer; governador Geraldo Alckmin; presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Cezar Peluso; e ministro do STF Ricardo Lewandowski.
No Facebook do juiz Ivan Sartori, relator do processo que anulou o julgamento de 74 PMs envolvidos no Massacre do Carandiru, há várias fotos em que recebe condecorações militares. Há, também, uma foto do evento de posse de 2012. Na imagem, estão Sartori, Temer, Alckmin, Peluso e, atrás, Fernando Grella, então secretário da Segurança Pública de São Paulo. Veja, abaixo:
A reportagem entrou em contato com Ivan Sartori para que ele pudesse falar sobre o processo. Ele afirmou estar “impedido” de falar. “Não posso. Lei orgânica não permite. Pegue minha decisão no site do TJ-SP. Fica para outra vez”, disse. De acordo com a lei orgânica, magistrados não podem se “manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério”.
A decisão de Sartori não está disponível no site do TJ-SP ainda. A assessoria de imprensa do tribunal afirmou à reportagem que, por não ser uma decisão, e, sim, um acórdão, o documento deve ir para o site em uma semana. O TJ também ressaltou que um dos motivos pelos quais o juiz não pode conceder entrevista é que, dependendo do que for informado por ele, uma das partes envolvidas pode exigir que ele se retire do processo.
MP vai recorrer: “propôs algo além do que a própria defesa”
O Ministério Público de São Paulo informou que irá recorrer da decisão do TJ. “Vamos recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e talvez também ao Supremo [Tribunal Federal] e vamos tentar reverter o resultado desse julgamento”, afirmou a procuradora de Justiça criminal, Sandra Jardim. “Ele, relator, propôs algo além do que a própria defesa pedia”, disse Sandra.
A procuradora afirmou ter visto a decisão do TJ com “preocupação”, principalmente no que se refere ao pedido de absolvição dos PMs feito por Sartori. “Haviam três réus no processo que o Ministério Público havia pedido a absolvição. O relator do processo [Sartori] entendeu que, como o próprio Ministério Público pediu a absolvição desses três réus e como ele não viu uma situação diferente entre estes réus e o restante – os 74 policiais que foram condenados – ele estendeu aquela decisão de absolver para todo mundo. E não havia recurso, nem na defesa e nem da acusação, que permitisse a ele estender essa decisão”, disse a procuradora.
“Vejo isso de forma desesperançosa. Essa decisão, por se tratar de uma decisão inusitada, questiona todos nossos conceitos jurídicos e questiona a própria soberania do Tribunal de Júri. É uma decisão que causa um precedente muito importante. No momento em que a gente vê que, passado tanto tempo, ainda temos tantos casos de violência policial, essa decisão, de algum modo, contribui para a impunidade destes casos”.
“Afronta à luta pela efetivação dos Direitos Humanos no Brasil”
O Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana), por meio de uma nota assinada pelo advogado e conselheiro Ariel de Castro Alves afirmou que a decisão da Justiça paulista “constitui-se numa verdadeira afronta à luta pela efetivação dos Direitos Humanos no Brasil”.
“A decisão abre ainda mais precedentes para a ampliação dos já altos índices de violência e letalidade nas ações policiais em São Paulo e no Brasil, sob o falso argumento de ‘legitima defesa’. O Tribunal de Justiça de São Paulo está chancelando o recrudescimento da violência policial e a impunidade decorrente desses crimes”, afirma o conselho.