Detentos relatam casos de tortura após mudança de diretor na Unidade Prisional de Caldas Novas. Spray de pimenta, fome, superlotação, tapas no ouvido, socos no rosto, jatos de água gelada e outras denuncias foram feitas ao Ministério Público
23:45, segunda-feira. Gabriel comeu um pacote de bolacha de água e sal no almoço, desde então, espera a próxima refeição. Passam-se duas horas e seu estômago dói, não há nada a ser feito. 05:00, terça-feira, Gabriel e outros detentos são levados nus ao pátio da Unidade Prisional de Caldas Novas, um jato de água gelada é jorrada aos presos. Gabriel fica doente, mas é proibido o atendimento na enfermaria. Ele reivindica seus direitos e recebe vários tapas no ouvido, socos no rosto e chutes na costela como recompensa. Após as agressões Gabriel é levado para a área T-3, onde é colocado em isolamento para “curar os hematomas”, na cela não tem colchão, coberta, pasta de dente e sabonete. Gabriel fica 10 dias na T-3 somente com a cueca.
No dia 10 de setembro, 99 presos assinaram um abaixo assinado que relata a rotina de torturas sofridas na Unidade Prisional de Caldas Novas, sob a direção do policial penal Wallisson dos Santos Souza. A carta foi entregue a Joacy Fernandes Carvalho Júnior, pai de um dos presos torturados, por Wender Júnior dos Santos no dia em que saiu do presídio.
Quatro dias depois, a denuncia é entregue ao promotor Sávio Fraga e Greco, da 6ª Promotoria de Justiça de Caldas Novas. Em entrevista ao Jornal Metamorfose, Sávio informa que foi instaurado um procedimento administrativo pela Corregedoria da Unidade Prisional e os depoimentos foram entregues à Polícia Civil, que investiga o caso.
Segundo o promotor, depoimentos do diretor e agentes penitenciários já foram colhidos. “As providências cabíveis serão tomadas ao final das investigações, sem prejuízo de adoção de medidas cautelares e urgentes, caso haja elementos indicativos de que medidas desta natureza devem ser tomadas de imediato (no curso das investigações)”, afirma Greco ao JM.
Fazem aproximadamente quatro meses que Carlos Renato preso há 11 meses na Ala I, reclama para sua esposa Lauryane Felix dos Santos que está apanhando.
“Os presos não conseguem falar o que está acontecendo, porque no interfone fica gravado. Eles fazem sinal, choram e dizem que está difícil. Teve um preso que estava reclamando que estava recebendo vários tapas na orelha e que ele estava surdo e que não pode pedir para ir à enfermaria porque senão também apanha”, relata Lauryane em entrevista ao Jornal Metamorfose. “Na última visita eu fiquei só 15 minutos. Tiraram ele do telefone sem explicação nenhuma. Eles pedem pra ligar, mas ninguém atende. Já liguei várias vezes e ninguém me explicou porque meu marido não pode mais falar nas visitas”.
As denuncias começaram a surgir em agosto deste ano, quando o diretor Adalberto Lima foi afastado do cargo, também sem explicação aparente. No período a frente da penitenciaria o ex-diretor promovia ações de ressocialização aos presos. Após a mudança, o novo diretor Wallisson dos Santos Souza entregou aos agentes penitenciários novos métodos e diretrizes a serem seguidas.
A vida no cárcere
“Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”, afirma o artigo quinto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, do qual o Brasil é signatário, desde o dia 10 de dezembro 1948. O texto continua: “Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei”, afirma o artigo sexto.
O Brasil é o terceiro país com a maior população carcerária do mundo. A Constituição Federal e a Lei de Execução Penal garantem direitos aos presos. As leis brasileiras asseguram que mesmo privado de liberdade, o preso tem o direito de ser tratado com dignidade humana.
Porém, os dados do Projeto Sistema Prisional em Números realizado pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) em 2018, mostram que a taxa de ocupação dos presídios brasileiros é de 175%. Isto representa 810 mil presos para 437 mil vagas, nos 1.456 estabelecimentos penais no país. O estudo aponta, ainda, em 81 de 474 unidades foram registradas mortes violentas de detentos, todas por tortura e maus tratos. Em outras 436 unidades foram registradas lesão corporal praticada pelos funcionários.
O estado mais violento
Em Goiás, desde 2019, a Pastoral Carcerária Nacional vem monitorando 27 casos de denúncias envolvendo infrações de direitos humanos em unidades prisionais.
De 27 unidades pesquisadas, em 21, ou seja,77,7% existem relatos das denúncias dizem respeito à agressão física. Em 18 ou 66,6% unidades as reclamações são sobre negligência na assistência material – falta de alimento, água, energia, roupas, colchões, etc. Em 14 (51,85%) os detentos denunciam a falta de assistência médica, incluindo ausência de profissionais, medicamentos, atendimento e de encaminhamento para unidade hospitalar. Em 11 (40,74%) os presos denunciam uso de armamentos e de instrumentos de tortura, tais como spray de pimenta, bomba de gás, bala de borracha, tonfa, cassetete, fios e entre outros.
“A tortura no Estado é uma realidade cruel e persistente, sem qualquer responsabilização de seus autores. Ressalta-se que o número de violências específicas ultrapassa o número total de casos tendo em vista que um único caso de tortura pode envolver uma ou mais espécies de violência”, explica irmã Petra, membra da Pastoral Carcerária Nacional em entrevista ao JM.
Apesar do elevado número de denúncias, os órgãos responsáveis pela fiscalização e pela apuração resistem e se negam em investigar a fundo, explica irmã Petra. “Os órgãos contribuem para o silenciamento do grito de revolta das vítimas e seus familiares, muitas das “apurações” incluem apenas o pedido de informações para a própria direção da unidade”, afirma.
Dos 27 casos monitorados pela Pastoral Carcerária Nacional em Goiás, em 3 (11,1%) nada foi feito. Em apenas uma houve realização de exame de corpo de delito e em 8 (29,62%) dos casos os presos foram ouvidos e prestaram depoimentos. A inspeção na unidade prisional foi realizada em apenas 11 (40,74%). “Esses números mostram que o Estado simplesmente abandona e descarta as vítimas de tortura, contribuindo para a manutenção da violência, pois sequer está disposto a ir fisicamente na unidade prisional. Ver, sentir e ouvir a realidade torturante sofrida pelas pessoas presas”, relata irmã Petra.
Segundo o relatório de 2019, realizado pelo Mecanismo de Prevenção e Combate À Tortura, 150 estabelecimentos prisionais em Goiás possuem 9.679 vagas. A taxa média de superlotação nas penitenciarias goianas é de 120% da capacidade estimada.
“Constatou-se ao longo das inspeções situações extremas, em que apenas dois servidores terceirizadas estavam responsáveis pela custódia de até 163 pessoas presas. A proporção mínima desejável é de um agente para cinco presos, segundo a resolução nº 1, de 2009, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. O quadro de superlotação e falta de estrutura institucional, faz do estado de Goiás um dos mais violadores do país. Seja para quem trabalha, seja, mais essencialmente para aqueles que estão encarcerados, que padecem da mais completa falta de acesso a direitos básicos de alimentação, educação, trabalho e assistência, e suas famílias”, afirma o documento.
A militarização das unidades de privação de liberdade também está presente no sistema socioeducativo. O Centro de Internação Provisória de adolescentes encontra-se localizado dentro de um batalhão da polícia militar. O documento destaca a falta de atividades e confinamento excessivo como marca pulsante no cotidiano das unidades inspecionadas, além de uma estrutura precária e superlotação das unidades.
O mecanismo manifestou sua preocupação com possíveis rebeliões e mortes nas Unidades, em especial no CIP, onde em maio de 2018 um incêndio matou dez adolescentes.
Caldas Novas
Uma semana após a carta dos detentos entregue por Joacy Fernandes ao Ministério Público de Caldas Novas, Wender Júnior dos Santos saiu da Unidade e gravou um vídeo em que denuncia as torturas. “Wender trouxe um recado do meu filho que era para parar com as denúncias senão ele sofreria muito. Mesmo assim não tive medo. A gente voltou ao MP, fomos ao cartório, e alertamos que se algo acontecer com meu filho a culpa é do diretor”, relata Joacy Fernandes, pai de Gabriel Fernandes Carvalho Vilela que está preso na Unidade Prisional de Caldas Novas.
Segundo os entrevistados, as denúncias seguiram de retaliações: os presos apanham e os familiares recebem ameaças de morte e humilhação.
“Eles se incomodam com as denúncias. Foi isso que a juíza deixou bem claro para mim. Foi aceita a denúncia, mas junto veio a retaliação”, reclama Joacy, pai de detento. A Polícia Civil está investigando as denúncias. No entanto, o diretor do presidio só foi intimado a depor após Joacy entregar a denuncia no MP. “E aí começou o show de tortura”, relata advogada que acompanha o caso. Ela se mantém no anonimato para não piorar as retaliações.
Desde que Ronaldo Caiado (DEM) assumiu o governo do estado, têm sido frequentes trocas de tiro com nenhuma viatura danificada e nem policial atingido, é o que afirma Joacy. Ele é ex-policial militar. “A secretaria de segurança passou para a ROTAM que se pegar algum bandido ou cidadão que tenha passagem, é para cancelar o CPF. O MP e a polícia são coniventes. Aqui em Caldas Novas existe grupos de extermínio dentro da polícia. Com esse novo governo as coisas no estado estão complicadas e a situação piorou”, diz o ex-PM.
“Não quero confrontar ninguém e queremos seguir as regras, mas a policia quer matar as pessoas, não existe mais abordagem com diálogo”, diz Joacy. Ele relata, também, que tem sofrido ameaças de policiais por expor sua opinião. Joacy vive hoje em situação de alerta, com medo. Apesar disso ele não desiste das denúncias.
O atual diretor da unidade de Caldas Novas, Wallisson dos Santos, dirigiu anteriormente o Presídio de Pires do Rio, que é uma unidade estadual de segurança máxima. Segundo o relato da advogada, o diretor tem histórico de punições como proibir banho, escovar os dentes e não ter acesso à roupas e colchão.
“A comida é estragada, então eles emagrecem muito. Eles choram em todas as visitas. Tem muito preso com cadeia vencida. Tem gente que já pagou e continua lá e quando eles saem ainda tem que pagar uma multa”, explica Lauryane Felix dos Santos. “Eu tenho muito medo, ele [Carlos Renato] já tem depressão. Desse jeito ele pode tentar suicídio e não tem nenhum tipo de apoio psicológico, eles sofrem bastante lá”.
Lauryane relata que em setembro viu um rapaz apanhar durante a visita. “Os presos têm que ficar de cabeça baixa e com a mão na cabeça. Esse rapaz mexeu a cabeça um pouco e eles começaram a xingar, humilhar. O preso ficou implorando para não cortar a visita. Eles humilham o preso na frente dos parentes. A gente chega lá eles estão todos assustados, com o olhar de medo pedindo ajuda, mas os policiais escondem os machucados, eles não deixam a gente ver”, denuncia.
E a tortura continua
A tortura no sistema penitenciário brasileiro é uma prática sistemática e recorrente, explica Daniel Melo, perito e pesquisador sobre direitos humanos e ex-membro do Mecanismo de Combate à Tortura. “Não existem programas públicos que protejam as pessoas privadas de liberdade, um programa de proteção aos direitos humanos. A gente tá falando de vítimas de algum grau de violência, que não conseguem ser protegidas do violador. Quem denuncia e os familiares sofrem retaliações de todo o tipo, envolvendo até milícias ou grupos paramilitares”, explica Daniel em entrevista ao Jornal Metamorfose.
“O Ministério Público seria o órgão legítimo para acusar o Estado por essas práticas. Em uma situação como essa poderíamos verificar, teríamos acesso as unidades. Tendo em vista o nível de ocorrências, entrevistaríamos os agentes e presos, além de fiscalizar os protocolos médicos, visitar os espaços para averiguar o isolamento prevenindo a Covid-19, levantar o registro do uso de armamentos e o processo de perícia. Isso é competência do MP”, relata Daniel Melo.
Irmã Petra explica ao JM que após a denúncia, o Estado tende a reagir e a silenciar o grito de dor e de desespero das vítimas. “A tortura é a engrenagem que mantém o funcionamento do cárcere. Não há prisão sem tortura. Ela acontece porque faz parte da função e do objetivo do cárcere produzir dor, doenças e morte nas pessoas selecionadas. O cárcere foi feito para produzir e manter a violência contra as pessoas marginalizadas pelo modo de produção, aterrorizando-as e exterminando-as. É através dessa violência que o Estado capitalista e racista se mantém de pé. Reforçando e ampliando as desigualdades sociais e raciais, permitindo a manutenção da sociedade do jeito que ela esta. Extremamente desigual e sem visão tangível de emancipação”, reforçou Irmã Petra.
* O Jornal Metamorfose entrou em contato com a Unidade Prisional de Caldas Novas, com o gabinete do prefeito Kleber Luiz Marra (Republicanos), com a Secretaria de Segurança Pública do Estado de Goiás, com o Gabinete da Diretoria Geral de Administração Penitenciária do estado de Goiás e não obtivemos resposta até o fim desta reportagem.