Direito de pessoas presas, saídas temporárias viram palanque para figurões da extrema-direita

Recém aprovado na Comissão de Segurança, PL 2.253/2022, que propõe extinção do benefício, é alvo de pressão para que avance no Senado. Especialistas defendem medida como importante para ressocialização

Ilustração: Antônio Junião/Ponte

Faltando quatro dias para o Natal de 2023, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) foi às redes sociais para inflamar sua base. O alvo da vez foram as saídas temporárias, direito previsto pela Lei de Execução Penal (LEP). Flávio, que é relator do projeto de lei 2.253/2022 na comissão de Segurança Pública, deu parecer favorável ao PL, aprovado nesta terça-feira (6/2) pelos membros e que agora vai para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). A proposta quer acabar o mecanismo tido por especialistas como fundamental para o processo de ressocialização.

Ainda na discussão da Comissão de Segurança, os senadores aprovaram um requerimento de urgência para a votação da matéria no Plenário do Senado. Se aprovado, o PL não passará pela CCJ e vai direto para análise dos senadores.

“A revogação desse benefício é uma medida mais do que necessária e vai contribuir e muito para reduzir a criminalidade”, disse Flávio, destacando dados divulgados pelo portal O Antagonista, que replicavam uma reportagem do G1. O título que ganhou destaque no vídeo de 50 segundos dizia que “42% dos presos no Rio de Janeiro não voltam após ‘saidão de Natal’”. A matéria publicada em 2022 complementava a informação dizendo que dos 1.240 presos que saíram, 522 não voltaram. 

Além de não evidenciar que a maioria (58%) dos presos retornou após a saída, o texto de três parágrafos deixou de fora informações importantes sobre o direito — uma estratégia que vem sendo adotada por muitos políticos e militantes contrários à medida. Por vezes, o posicionamento é acompanhado de lacunas de informação e dados apresentados de forma parcial.

O debate sobre o tema ganhou força no começo de janeiro com a morte do policial militar Roger Dias da Cunha, 29 anos, em Minas Gerais. Cunha foi baleado na cabeça durante um confronto. O autor do disparo, segundo a PM-MG, era um foragido que não retornou da saída temporária de Natal.

Ancorados na indignação natural em torno da morte, defensores do fim das saídas temporárias começaram uma mobilização que alcançou o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

Criticado por Flávio Bolsonaro e por outros políticos pela falta de celeridade na aprovação do PL, Pacheco rebateu negando inércia na condução do tema. Em redes sociais, o parlamentar também se mostrou favorável à retirada do direito, o que deve colocar a discussão entre as pautas do primeiro semestre deste 2024. 

A pressão também veio de outros nomes ligados à direita. O trio formado pelos governadores Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP), Romeu Zema (Novo-MG) e Ronaldo Caiado (União-GO) prometeu pressionar o Senado na volta do recesso para aprovação do PL 2.253/2022. 

Após a morte do PM, Zema foi às redes cobrar alteração no que chamou de “leis ultrapassadas”. Já Caiado descreveu o direito como “aberração”, segundo reportagem publicada pelo Estadão.

O secretário da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), Guilherme Derrite, também entoou o coro de críticos. “O fim das saídas temporárias é um dos fatores que começarão a virar o jogo da impunidade no Brasil”, escreveu no X (antigo Twitter). Quando era deputado federal, o ex-capitão da PM relatou o projeto que hoje tramita no Senado.

Derrite foi o responsável pela alteração substancial do PL original apresentado pelo deputado federal Pedro Paulo (à época no PMDB-RJ e atualmente no PSD-RJ). O projeto original se limitava a propor o monitoramento com geolocalização (como tornozeleiras) para os presos em saída temporária e até reconhecia, na justificativa, a importância deste direito. 

“No que tange à ressocialização do preso, tal metodologia permite ao condenado a manutenção de seus laços sociais e familiares. Ainda mais relevante é o afastamento que tal medida permite, aos presos menos perigosos ou já em estágio avançado do cumprimento de suas penas, de um sistema prisional que muitas vezes contribui para sua degradação”, dizia a justificativa do texto apresentado por Pedro Paulo.

Foi sob a tutela de Derrite, na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania da Câmara (CCJ), que tudo mudou em agosto de 2022. Apensado a outros 16 projetos correlatos, o mote principal passou a ser a extinção das saídas temporárias. 

No relatório favorável, o então deputado citou Suzane von Richthofen e Lázaro Barbosa para criticar o direito que aos dois foi concedido. Contudo, ficou de fora do texto de Derrite que, desde 2019, com a aprovação da lei 13.964/2019, condenados por crimes hediondos com mortes, não podem mais deixar as unidades prisionais por meio das saídas temporárias.

Ainda na justificativa que altera a lei penal, Derrite apresentou apenas um dado e de forma incompleta sobre São Paulo. “A título exemplificativo, a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) de São Paulo informou que, na passagem de 2021 para 2022, 1.628 presos que deixaram as penitenciárias do estado, durante a chamada ‘saidinha temporária de fim de ano’, não retornaram ao sistema prisional paulista”, diz o texto. O que fica fora é que, naquela saída de Natal, cerca de 37 mil presos deixaram as unidades prisionais no estado. Assim, o percentual dos que não voltaram ficou em 4%.

O cenário da saída de Natal 2021 não é uma exceção. No ano passado, segundo dados da Secretaria de Administração Prisional de São Paulo (SAP-SP), em todos os quatro períodos de saída, o número de presos que não voltaram representou menos de 4% do total dos que voltaram. 

O texto também aprova o uso de equipamentos como tornozeleiras eletrônicas para, por exemplo, penas em regime aberto. Há ainda uma condição da progressão da pena apenas para condenados que forem aprovados em exame criminológico, “de modo que a aptidão social possa ser aferida antes que o apenado regresse ao convívio comunitário”. 

O PL deixou a Câmara em agosto de 2022 e seguiu a tramitação no Senado. A comissão conta com nomes ligados à direita, como o ex-vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos-RS), e também com dois integrantes do PT, os senadores Fabiano Contarato (ES) e Rogério Carvalho (SE).

Vice-presidente da Comissão, o senador Jorge Kajuru (PSB-GO) propôs a volta das saídas temporárias para a proposta com a realização de avaliação multidisciplinar que determine se o preso pode ou não deixar a unidade. Flávio Bolsonaro, relator do PL, rejeitou a emenda.

LEP e as saídas temporárias

As saídas temporárias são regulamentadas pela LEP e não se aplicam a todos os presos. A legislação estabelece que serão concedidas por no máximo quatro vezes por ano, saídas com prazo máximo de sete dias. Pela lei, apenas quem está em regime semi-aberto pode obter autorização para deixar os estabelecimentos penais justificadas por três motivações:

  • visita à família;
  • freqüência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do 2º grau ou superior, na Comarca do Juízo da Execução;
  • participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social.

Mas estes não são os únicos critérios. A autorização para a saída tem que passar pelo crivo da administração da unidade prisional e do Ministério Público. Após posicionamento de ambos, o juiz de execução penal autoriza ou não. Esse aval das instituições obedece aos seguintes parâmetros: 

  • comportamento adequado;
  • cumprimento mínimo de 1/6 (um sexto) da pena, se o condenado for primário, e 1/4 (um quarto), se reincidente;
  • compatibilidade do benefício com os objetivos da pena.

Ao conceder a saída, o juiz tem que impor as seguintes condições impostas pela lei (além de outras que entender compatíveis): 

  • fornecimento do endereço onde reside a família a ser visitada ou onde poderá ser encontrado durante o gozo do benefício;
  • recolhimento à residência visitada, no período noturno;
  • proibição de frequentar bares, casas noturnas e estabelecimentos congêneres.

O direito à saída temporária é automaticamente revogado, conforme prevê a LEP, se o condenado praticar “praticar fato definido como crime doloso, for punido por falta grave, desatendendo às condições impostas na autorização”. 

Essa medida na Lei Penal não é uma exclusividade do Brasil. No Reino Unido, por exemplo, também existe previsão para as saídas. Segundo o governo britânico, o condenado sai por curtos períodos no final da pena motivada por frequência em aulas, trabalho e a manutenção de vínculos com os familiares. 

Para o presidente do IDDD, Guilherme Carnelós, as saídas têm papel fundamental na ressocialização dos condenados. “As saídas temporárias são fundamentais para que a gente dê efetividade ao que a lei programa como progressão de regime. A ressocialização do preso, no final das contas, é mais do que isso. O que a lei promove, mas as autoridades ainda não conseguem dar efetividade, é que a vida continue. Tem que existir vida pós-cárcere. Se essa vida é possível, as chances de reincidência são muito menores”, diz. 

Diego Polachini, membro do Núcleo Especializado em Situação Carcerária (NESC), concorda.“[A saída temporária] é uma forma da pessoa ter um convívio social, se preparar para ter esse convívio social. Ao se afastar desse convívio por anos, fica uma situação muito difícil para você tirar documento, trabalhar. As pessoas que foram presas há cinco, seis anos não sabiam mexer em um celular, nem existia Uber naquela época. Nós vivemos em outra sociedade”, destaca. 

Polachini destaca que o sistema prisional brasileiro vive um “estado de coisas inconstitucionais” reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em outubro do ano passado no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347. Os ministros deram prazo de seis meses para que o governo federal elabore um plano de ação para a área. 

“Essa população carcerária de quase 1 milhão de pessoas é formada, por norma, por jovens pretos e pobres. Você falar que essa política precisa ser aumentada, que não existe isso, você está praticamente pedindo para se prender mais jovem preto pobre”, diz Polachini.

Gabriel Sampaio, diretor de Litigância e Incidência da Conectas Direitos Humanos, vê as saídas temporárias como uma medida importante e assertiva. “Quando nós analisamos os dados, eles demonstram, de forma absoluta, que a efetivação e aplicação desse direito têm consequências importantes. Ela revela que é uma medida acertada da legislação, porque os casos de descumprimento da saída temporária são, de fato, excepcionais e trazem consequências sérias para a pessoa presa até o fato dela estar sob cumprimento de pena, faz com que o Estado tenha, inclusive, condições mais efetivas de exercer o controle sobre ela”, fala. 

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Na análise de Carnelós, os ataques a esse direito têm um plano de fundo neste ano. O timing das eleições se aproximando ajuda a inflamar discursos com viés eleitoreiro.“Existe uma bravata para atender um interesse eleitoreiro que é absolutamente sem propósito, porque o mundo mostra e as pesquisas mostram que o regime integralmente fechado não beneficia ninguém. Ele não só não beneficia quem está no cárcere, ele não beneficia a sociedade, porque quando eu impeço que uma pessoa que está presa se reinsira de forma saudável na sociedade, essa pessoa vai voltar para o crime”, afirma. 

Gabriel corrobora com a análise. “Em geral, parte dessas autoridades que criticam direitos garantidos pela Constituição e pela legislação, além de ser absolutamente inadequado que uma autoridade pública que deve cumprir a lei, que precisa ser exemplo para a sociedade na garantia da aplicação da legislação, a critique. Além disso ser lamentável, muitas vezes isso tem como pano de fundo a sua tentativa de se desresponsabilizar em relação àquilo que são as suas atribuições para garantir a aplicação da lei. As autoridades públicas precisam garantir que a execução penal esteja conforme a legislação e responder por falhas estruturais do sistema prisional antes de questionar a aplicação dos direitos, especialmente porque no rol da garantia dos direitos essas autoridades falham e falham muito”, comenta.

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