Direitos em cena | Independentes e debochados

Documentário detalha a trajetória da anárquica banda Joelho de Porco, que revolucionou o rock brasileiro e desafiou a ditadura militar

Eles desmoralizavam tudo. Até mesmo o próprio rock. Suas apresentações não eram somente shows. Eram verdadeiras performances que misturavam música, teatro e muito humor. Usavam maquiagens e aprontavam mil e umas nos palcos. Eles foram pioneiros. Estão entre os primeiros artistas que fizeram seu álbum de estreia de maneira completamente independente. Esse fato chamou a atenção da Polícia Federal do regime militar brasileiro. Ninguém pensava que eles pudessem gravar um LP inteiro sem nenhuma grande gravadora bancando tudo. “Acredito que eles eram tão fora da curva que a ditadura militar não conseguia decifrar ou entender aquilo. Não havia um discurso, mas sim atitudes porque tudo era anárquico”, ressalta Rafael Terpins, diretor do delicioso e inventivo documentário Meu Tio e o Joelho de Porco. 

O longa-metragem conta a trajetória do Joelho de Porco, conjunto paulistano que revolucionou o rock brasileiro com atitudes nada convencionais. Terpins conta que uma vez os integrantes da banda invadiram um show da cantora Rita Lee. O fato chamou a atenção de um delegado que os internou no Juqueri, hospital psiquiátrico em Franco da Rocha (Grande SP). “De manhã, depois que a bola baixou, eles convenceram a autoridade a liberá-los”, conta o cineasta, rindo. Esses são somente alguns dos fatos ligados a banda tachada de punk, que se juntou em 1972 e lançou quatro LPs, entre 1976 e 1988. O realizador conta que decidiu fazer um filme de não-ficção sobre esse inusitado grupo por diversos motivos. Um é por ser sobrinho de Tico Terpins, um dos fundadores do conjunto, que morreu em 1998. “O filme é muito pessoal e o Tico era uma figura muito próxima. Sua influência para mim, tanto afetiva quanto artística, foi muito grande”. Mas o realizador relata que foi o primeiro disco da banda que influenciou o formato do filme: São Paulo 1554-Hoje, lançado em 1976 de maneira independente. “A gravadora Philips lançou o compacto com duas canções, mas não quis dar continuidade com o LP. Achou que não daria lucro. Então, o Tico fez uma vaquinha na família e lançou um dos primeiros discos independentes da história do país.”

Meu Tio e o Joelho de Porco não é um documentário convencional. A produção utiliza animação, desenhos e recursos diferentes. Mas também tem diversos entrevistados que vão revelando diferentes nuances do grupo. O ator Ricardo Petraglia fez parte de uma das formações do grupo e dá um depoimento inusitado. Um dos fundadores, o vocalista, compositor e baterista Próspero Albanese recorda diversas histórias curiosas. Inclusive revela o motivo do seu afastamento da banda após o primeiro LP: a pressão familiar para cursar Direito e tornar-se advogado. 

Um dos momentos mais impagáveis do longa-metragem é quando o próprio diretor aparece conversando com uma animação que seria o Tico Terpins em stop motion, dialogando com o sobrinho e contando suas histórias. “Ele age como aquele diabinho que sopra na orelha dos personagens de animação clássicos”, confessa Rafael Terpins. O resultado é um longa-metragem afetivo, criativo e divertidíssimo. A inventividade faz pensar que 75 minutos é pouco para conhecer mais sobre Tico Terpins e sua inusitada trupe. É a trajetória de um conjunto inovador e iconoclasta, que influenciou diversos nomes que vieram depois. As maiores dificuldades foram a verba e entrevistar pessoas que estavam com uma idade avançada. Encontrar imagens de acervo foi um capítulo à parte para o diretor e a sua equipe técnica. “Ao mesmo tempo, quando você encontra algo que nunca imaginava é um grande prazer e uma vitória”, detalha Terpins. Ele explica que um verdadeiro documento histórico foi encontrado ao acaso na TV Cultura de São Paulo. “Eram imagens inéditas, ainda não digitalizadas do Joelho tocando no teatro Ruth Escobar ainda na formação com o Ricardo Petraglia”.

O Joelho de Porco teve diversas formações e reformulações. Um momento marcante foi quando o argentino Billy Bond entrou no conjunto. Depois, aconteceu um afastamento entre ele e Tico Terpins. O músico argentino não quis dar depoimento para o filme. “Entendo que eles eram duas forças criativas estupendas que criaram, zoaram e um dia colidiram, tudo com muita intensidade”, atesta Rafael Terpins. “Espero que isso tenha transparecido no meu filme, e no final de contas, é isso o que importa”

Outro membro marcante que entrou no Joelho após alguns anos foi o cantor e compositor Zé Rodrix (1947-2009), que criou uma explosiva parceria com Tico Terpins. A dupla esteve à frente de dois álbuns representativos do grupo: Saqueando a Cidade (1983) e 18 Anos Sem Sucesso (1988). “Coube ao Zé Rodrix reformular o Joelho e trazer de volta o Próspero, mas agora a proposta era diferente, com orquestra e coro, dezenas de pessoas no palco”, aponta Rafael Terpins. “Mesmo assim, sempre estiveram na contramão do que se fazia na época”. O realizador conseguiu exorcizar a influência do seu tio e mostrar a arte de toda a geração de artistas irreverentes e que não tinham nenhum tipo de filtro nas suas ações. “Confesso que acabei o filme mais confuso do que comecei.”

Foram cinco anos para que Meu Tio e o Joelho de Porco estivesse pronto nas telonas. O longa-metragem participou de diferentes festivais, como a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o BAFICI na Argentina, o CINE PE em Recife e o INEDIT Brasil. “O filme entrou no circuito de filmes nacionais do Cinemark, mas eram sessões com divulgação tímida, não sei se era o espaço ideal para documentários”. Ele confidencia que a classe artística está tentando se reorganizar após um governo que era bastante contrário a políticas ao audiovisual. “Os cinemas têm menos de 1% dos horários com filmes nacionais e os canais de streaming fazem o que bem entendem, enquanto no resto do mundo eles são obrigados a fomentar a produção local”, denuncia. 

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O cineasta Rafael Terpins tem outros projetos debaixo do braço. Um é sua primeira investida na ficção em parceria com o roteirista Guy Corrêa. Terpins conta que está dirigindo duas séries documentais, uma para o History Channel sobre ciência e tecnologia e outra para o Canal Brasil, que envolve música pop e política. “Pode apostar que em nenhuma delas tem uma estrutura convencional ou acadêmica”, entrega ele, que gosta de mesclar animação e desenhos em suas obras audiovisuais. “O documentário é um formato delicioso, um imenso playground para inovação e criação”, confidencia. “O único problema é que o mercado exibidor é justamente o oposto disso.”

Meu Tio e o Joelho de Porco
Direção: Rafael Terpins  
Brasil, 2018
Duração: 75 minutos
Onde ver: Claro TV, Tim TV e Now

A coluna “Direitos em Cena” é o espaço para o cinema brasileiro contemporâneo na Ponte: seus filmes, seus diretores, seus personagens. Busca ampliar o espaço de narrativas cinematográficas que muitas vezes não recebem atenção da grande mídia, sempre em relação com os direitos humanos. A coluna é escrita por Matheus Trunk, jornalista, escritor, roteirista e mestre em comunicação audiovisual, autor dos livros O Coringa do Cinema (Giostri, 2013), biografia do cineasta Virgílio Roveda, e Dossiê Boca: Personagens e histórias do cinema paulista (Giostri, 2014).

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