Direitos em Cena | ‘Sem descanso’: a busca que virou filme

O desaparecimento de um jovem negro em Salvador é o ponto de partida de um documentário sobre a violência policial

Um rapaz de moto é detido na periferia de Salvador. Seu crime: andar em sua motocicleta sem capacete e sem documento. Uma simples averiguação que deveria ser breve. Mas o rapaz simplesmente desaparece, deixando seus amigos e familiares aflitos. A mobilização de seu pai chamou a atenção do Correio, jornal diário da capital baiana. Foi pelas reportagens dessa publicação que o cineasta Bernard Attal conheceu de perto a história do jovem Geovane Mascarenhas. “Até pessoas com quem eu costumava trabalhar não quiseram participar desse filme provavelmente por medo das consequências”, afirma o realizador.

Em 24 de agosto de 2014, Geovane Mascarenhas sumiu com sua moto no bairro da Liberdade, em Salvador, após sofrer um enquadro da Polícia Militar. O documentário de longa-metragem Sem Descanso acompanha as buscas incessantes do pai Jurandy de Santana tentando achar seu filho. “O processo de filmagem foi bastante doloroso. Especialmente ao Jurandy porque trouxeram lembranças muito difíceis e ele sabia que estava sendo vigiado pelos policiais. Foi um caso em que a realidade superou a ficção”, analisa Attal.

O realizador parte dos familiares do jovem tentando reconstituir o sumiço de um jovem negro periférico da maior capital do Nordeste. O cineasta também faz um paralelo da trajetória de Geovane com a do homicídio do jovem norte-americano Michael Brown, que aconteceu no mesmo mês, em agosto de 2014. “Estava acompanhando as duas tragédias e fiquei muito interessado de ver como duas sociedades reagem de forma diferente com a violência policial”.

Jornalistas, sociólogos e estudiosos sobre a violência dão amplos depoimentos sobre a realidade de como a atividade policial é realizada no cotidiano das periferias. Attal lembra que o Brasil é o país com a mais taxa de letalidade policial do Mundo. “Mas isso acontece em todos os estados e de forma aguda no Rio de Janeiro, Bahia e em São Paulo. São quase 7 mil homicídios por ano sendo que a grande maioria nem sequer são julgados”, afirma.

A produção de Sem Descanso buscou ouvir o outro lado. Mas ninguém do Ministério Público e nem da Secretaria de Segurança da Bahia quis dar entrevista. “Alguns até marcaram e desistiram em cima da hora. Não queríamos personalizar a responsabilidade como o comando das autoridades costuma fazer. Pelo contrário: queríamos mostrar que a violência policial é um problema da sociedade toda.”

Attal, diretor: “O processo de filmagem foi muito doloroso” | Foto: Divulgação

Sem Descanso é uma produção que analisa um crime brutal realizado pelas autoridades policiais de Salvador. Mas é o tipo de bestialidade que poderia ser realizada em qualquer grande centro brasileiro. Bem produzido, o filme torna-se angustiante quando descobrimos o que aconteceu com o jovem Geovane e como seus algozes continuam impunes. O diretor Bernard Attal acredita que existe um apartheid não oficial contra os jovens pobres e negros. “Se você é negro, é perigoso ir em determinados lugares ou é de fato proibido. Cerca de 75% das vítimas da violência policial são negras e mais de 90% são homens jovens das periferias.”

O documentário de longa-metragem Sem Descanso venceu quatro prêmios de melhor filme em festivais internacionais e foi lançado em circuito comercial no final de 2020. O longa-metragem está disponível na TV fechada e nas plataformas VOD. “A próxima etapa é realizar uma distribuição de impacto para levar o filme até as comunidades, escolas e até nos quartéis de polícia para fomentar um debate real sobre o assunto da letalidade policial”, planeja o diretor.

Sem descanso
Direção: Bernard Attal
Bahia, Brasil, 2019
Duração: 78 minutos
Onde assistir: Claro TV, Vivo Play

A coluna “Direitos em Cena” é o espaço para o cinema brasileiro contemporâneo na Ponte: seus filmes, seus diretores, seus personagens. Busca ampliar o espaço de narrativas cinematográficas que muitas vezes não recebem atenção da grande mídia, sempre em relação com os direitos humanos. A coluna é escrita por Matheus Trunk, jornalista, escritor, roteirista e mestre em comunicação audiovisual, autor dos livros O Coringa do Cinema (Giostri, 2013), biografia do cineasta Virgílio Roveda, e Dossiê Boca: Personagens e histórias do cinema paulista (Giostri, 2014).

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