Por que a violência policial explodiu na Bahia mesmo com 15 anos de PT no poder

Em 2020, estado comandado por Rui Costa alcançou 1.137 mortes pelas polícias, o maior número da série histórica desde 2008; perpetuação de modelo de “guerra às drogas” e falta de transparência são causas para índice elevado, dizem pesquisadores

Protesto de moradores na Avenida do Contorno, na região da Gamboa, em 1º de março de 2022 | Foto: Felipe Iruatã

“Eu tentei, pedi, implorei, mas apontaram a arma para minha cabeça. Tive medo. Cheguei a ouvir meu filho dizer: ‘Socorro, vão me matar”. Foi assim que a dona de casa Silvana dos Santos, 48, descreveu a ação da Polícia Militar da Bahia, comandada pelo governador Rui Castro (PT), que tirou a vida de seu filho Alexandre dos Santos, 20, e dos amigos Cleverson Guimarães Cruz, 22, e Patrick Souza Sapucaia, 16, na madrugada de terça-feira, 1º de março, na comunidade Solar do Unhão, que fica na região da Gamboa, em Salvador. Foram os gritos e os protestos de familiares e moradores que deram rosto e voz às vítimas, que poderiam ter passado esquecidas uma vez que a Secretaria de Segurança Pública não divulga informações claras de quantas pessoas o braço armado do Estado matou.

O apagamento dessas vidas também aconteceu ao serem criminalizadas inclusive por um repórter da Rede Bahia, afiliada da TV Globo, que questionou a uma mulher durante uma manifestação de moradores se as vítimas “tinham envolvimento” com o tráfico de drogas. A pergunta foi rebatida: “Oh, moço! Não importa isso agora no momento, sabe por quê? Porque se eles [policiais] pegaram [os rapazes] em algum erro, a obrigação dos policiais é levar preso, não matar à queima-roupa. Eles atiraram à queima-roupa”.

Enquanto as mães velavam seus filhos na quarta-feira (2/3), Rui Costa anunciava, pela sua conta no Twitter, a construção de “centenas de novas sedes para a Polícia Militar e a Polícia Civil na Bahia inteira”. Nenhuma palavra sobre a operação policial, que já é chamada de chacina. Os nomes e a quantidade de policiais envolvidos também não foram divulgados, apenas que a PM abriu inquérito e que não houve afastamento das atividades dos que integraram a ação.

De acordo com a 15ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 1.137 pessoas foram mortas pelas polícias na Bahia em 2020. Em 2019, foram 773, um aumento de 46,5% em pleno ano pandêmico. O índice é o maior da série histórica desde 2008, quando o Fórum Brasileiro de Segurança Pública passou a incluir estatísticas de letalidade policial nos anuários. A Ponte solicitou dados à assessoria da Secretaria de Segurança Pública do estado e perguntou o motivo de essas informações não estarem disponíveis, mas a pasta não respondeu.

Em 15 anosàa frente do Poder Executivo estadual, os governadores do PT nunca priorizaram a pauta da violência policial, de acordo com pesquisadores ouvidos pela reportagem. O hoje senador Jaques Wagner assumiu em 2007 e permaneceu por dois mandatos, quebrando uma tradição de gestores do extinto PFL (que passou de DEM para União Brasil, ao se fundir com o PSL) ligados ao grupo político do ex-governador e ex-senador Antônio Carlos Peixoto de Magalhães, conhecido como ACM, que faleceu naquele ano. Em 2015, Wagner passou a cadeira para o sucessor Rui Costa, que também está em seu segundo mandato.

“De 2007 para cá, não existe no governo do Wagner e no do Rui Costa uma mudança política muito significativa, nem na segurança pública”, aponta Felipe Freitas, professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e pesquisador do Núcleo Justiça Racial e Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP). “Apesar de a gente ter assistido nesses anos um fortalecimento das instâncias de direitos humanos, com a possibilidade de um diálogo maior com as organizações, não há a produção de um novo modelo de polícia, não há, sobretudo desde a Chacina do Cabula, uma condenação pública do governador às práticas de violência policial e não há um instrumento de governança, ou seja, uma Corregedoria de Polícia que tenha oferecido resposta a esses casos emblemáticos”, analisa.

A Chacina do Cabula é como ficou conhecido o massacre de 12 jovens negros na Vila Moisés, comunidade pobre situada na região de Cabula, em Salvador, por poPMs das Rondas Especiais (Rondesp), em 6 de fevereiro de 2015, e que segue sem solução. Nove policiais foram denunciados pelo Ministério Público e acabaram absolvidos. Houve recurso em 2018 e o Superior Tribunal de Justiça negou a federalização do caso, que retornou ao Tribunal de Justiça Estadual, onde o processo segue em sigilo. Na época, empossado há 35 dias, Rui Costa declarou que as mortes foram como a jogada “de um artilheiro em frente ao gol”.

Outro episódio que teve muita repercussão foi o assassinato de Joel da Conceição Castro, então com 10 anos, em 21 de novembro de 2010, quando foi baleado no rosto, dentro do quarto de casa, durante uma ação policial no Nordeste de Amaralina, em Salvador. Nove policiais militares foram denunciados por homicídio doloso triplamente qualificado, a acusação foi aceita pelo Tribunal de Justiça, mas apenas dois foram pronunciados, em 2018. Eles tentam recorrer dessa decisão para que não sejam julgados por um júri popular. O menino ficou conhecido por ter participado de uma propaganda do governo sobre turismo naquele mesmo ano falando sobre capoeira.

Em julho do ano passado, oito ciganos da família Matos foram mortos em supostos confrontos após a execução de dois policiais militares em Vitória da Conquista que atuavam no setor de inteligência. Entidades de ciganos denunciaram perseguição e violação de direitos humanos contra moradores após as duas mortes. Além disso, como a Ponte revelou, dois PMs do Pelotão de Anagé foram homenageados pelo comando do 79ª CIPM depois de uma ação que acabou com as mortes de dois irmãos dessa família. O perfil no Instagram da corporação apagou a foto que celebrava a entrega do certificado e disse não comemorar mortes quando foi questionado pela reportagem.

Desde 2014, a coordenadora do Movimento Mães de Maio no Nordeste Rute Fiuza cobra respostas do Estado pelo desaparecimento forçado de seu filho Davi, então com 16 anos, após abordagem policial em Salvador. O Ministério Público Estadual denunciou sete policiais militares por sequestro e cárcere privado, mas não por homicídio, diferentemente da conclusão do inquérito da Polícia Civil que havia apontado dois tenentes, dois sargentos e 13 alunos do curso de formação da PM como suspeitos do sumiço e morte do adolescente. Segundo a investigação, “os policiais participavam de um curso de nivelamento realizado pela 49ª CIPM e pelo Pelotão Especial Tático Operacional (Peto) com prática de incursão nas localidades do Cassange, Planeta dos Macacos, Vila Verde, dentre outras”. As audiências do caso, que está na Justiça Militar, deveriam ter acontecido em 2020. Com a pandemia, porém, não há data prevista.

Davi era o único filho de Rute, mãe de outras três filhas | Foto: Arquivo pessoal

Coordenador da Rede de Observatórios da Segurança na Bahia, Dudu Ribeiro destaca que o tema sempre foi tratado como um vespeiro que garantiu a perpetuação da violência. “Desde a Constituição de 1988, não foi um dos grandes pontos do campo progressista a mudança da lógica da segurança pública e isso permitiu a continuidade não só dos agentes e das instituições na organização da segurança pública, mas também de uma lógica única da segurança que pense apenas a partir da atuação das polícias, que não seja ampla e não passe por outros setores da sociedade, com uma nova perspectiva como uma reforma na política de drogas, um dos temas centrais para superar um modelo racialmente desigual de distribuição de oportunidades no Brasil que nunca esteve de fato no centro do debate da esquerda e do campo progressista em geral”.

“Está errada a direita quando diz que o problema da criminalidade é das facções, com o estímulo à guerra às drogas, que só vai se resolver quando a gente descriminalizá-las, mas também está errada a esquerda que trabalha como se o problema fosse a violência policial só em operação. Isso no discurso, porque nem na prática os governos de esquerda estão combatendo [a violência]”, complementa Freitas.

Somado a isso, o governador também coleciona declarações que vão na contramão dos direitos humanos. Em março de 2020, com a divulgação dos dados do Monitor da Violência que apontou que a Bahia liderava a taxa de assassinatos no país a cada 100 mil habitantes (3,53), quando foram computados 525 crimes violentos letais intencionais, um aumento de 18,5% em relação ao mesmo período de 2019. Rui Costa atribuiu o resultado, sem mostrar provas, de que a soltura de presos aumentou a criminalidade. Na época, o Conselho Nacional de Justiça havia emitido recomendação para soltar detentos que estivessem no grupo de risco, como grávidas e pessoas com comorbidades, e não tivessem cometido crimes violentos. “A Secretaria de Segurança tinha uma expectativa de que iria aumentar, porque muitos líderes de facções criminosas, grandes lideranças do mal, que comandam assassinatos, foram soltos por diversas instâncias judiciais em nosso país, que atuam na Bahia”, afirmou o governador ao Jornal Bahia Meio Dia.

Em 2018, Costa também criminalizou as audiências de custódia, aquelas que acontecem quando a pessoa presa em flagrante é levada a um juiz em até 24 horas para que ele decida a real necessidade da manutenção da prisão e também verifique se houve algum tipo de violação ou tortura cometida contra ela. “Virou um ciclo de prende e solta e tem muita gente ganhando dinheiro com isso, os advogados gostam desse negócio. Eu não consigo entender essa lógica da Justiça e da lei brasileira”, disse em uma entrevista à Rádio Metrópole, atraindo o repúdio de organizações como a OAB-BA (Ordem dos Advogados do Brasil). O mecanismo, no entanto, aumentou o número de prisões convertidas em preventiva (sem tempo determinado), como a Ponte explicou em 2019.

O governador expandiu, em 2021, o investimento em tecnologias para reconhecimento facial com discurso de combate à violência. Um estudo da Rede de Observatórios da Segurança, em 2019, apontou que 51,7% dos abordados com essa técnica eram pessoas negras.

Grupamentos especializados

Tanto as mortes na região da Gamboa neste ano quanto as da Chacina do Cabula foram cometidas por policiais militares das Rondas Especiais (Rondesp). Inicialmente, essas rondas eram operações de apoio feitas por integrantes de Batalhões de Choque e Companhias Especiais da PM da Bahia. Depois, em 2009, transformaram-se de fato em uma espécie de batalhão próprio, mas com uma capacidade territorial menor do que um batalhão comum, com a criação de Companhias Independentes de Policiamento Tático, em que as Rondas Especiais passaram a fazer parte (CIPT-Rondesp). O próprio blog do site da PMBA descreveu que, naquela época, “chegou-se a fazer estudos junto a Rota da PMESP e o Bope da PMERJ, para formar a nova doutrina da Unidade valor Batalhão”. Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) e Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) são as tropas mais letais, respectivamente, das PMs de São Paulo e do Rio de Janeiro. Em 2014, o governo baiano criou também um BOPE para chamar de seu.

À Ponte, um morador da comunidade Solar da União, na Gamboa, relatou que é praxe ações truculentas da Rondesp: “Aqui, eles só chegam atirando”.

Essa organização da estrutura da PM baiana por meio de companhias independentes vem de 1995, tendo sido criadas formalmente a partir de 1998. De acordo com a dissertação Atucaiados pelo Estado – As políticas de segurança pública implementadas nos bairros populares de Salvador e suas Representações (1991-2001), da socióloga Vilma Reis, esse modelo, que integrou o Projeto Polícia Cidadã, foi uma tentativa de “ruptura com a militarização para um modelo comunitário” cuja demanda era oriunda da própria sociedade civil após o comando ter encomendado uma pesquisa sobre a imagem da corporação.

A criação das CIPM, que são geridas por um Batalhão Gestor, previa essa ocupação do território de forma descentralizada para aproximar os policiais da comunidade e realizar policiamento ostensivo, com participação da população por meio de conselhos comunitários, cujos projetos pilotos começaram em bairros considerados violentos em Salvador. Depois, vieram as unidades de policiamento especializado, como a Rondesp. No caso da morte do menino Joel, os policiais eram lotados na 40ª CIPM (Nordeste de Amaralina).

Para Felipe Freitas, da FGV, essa “hiperespecialização” contribuiu para o aumento da violência policial. “Os grupamentos especializados deixaram de ser apenas o desenvolvimento do conjunto de técnicas específicas e passaram a ter certa autonomia em relação ao comando, como se fosse uma outra polícia”, explica. “Não é incomum você ouvir, por exemplo, dentro de uma comunidade popular alguém dizer que a Polícia da Caatinga [Companhia Independente de Policiamento Especializado – Caatinga (CIPE/Caatinga)], que é o nome de um dos grupamentos especializados, vem aí. Ou seja, a Polícia da Caatinga parece ser uma outra polícia e é de fato porque, de certo modo, não fica submetida ao mesmo regramento dos outros policiais, isso chega até a ser ilegal, mas é o que acontece”.

Segundo a Lei Estadual 13.201/2014, há 99 CIPMs (Companhias Independentes de Polícia Militar), 11 CIPEs (Companhias Independentes de Policiamento Especializado) e 10 CIPTs (Companhias Independentes de Policiamento Tático), sem contar os batalhões. Em 2003, eram 65 CIPMs e 1 CIPE. Em 2005, passaram para 100 CIPMs e 3 CIPEs. Em 2009, 70 CIPMs, 8 CIPEs e 4 CIPTs.

Reprodução de unidades da PMBA, conforme a Lei Estadual 13.201/2014

Pacto pela vida

Outro ponto que os pesquisadores chamam a atenção é o programa Pacto Pela Vida (PPV), que foi lançado em 2011 pelo governador Jaques Wagner, durante seu segundo mandato. Inspirado na ação de mesmo nome em Pernambuco, o objetivo era reduzir os índices de crimes contra a vida, em especial os casos de homicídios. Felipe Freitas é autor da dissertação Discursos e práticas das políticas de controle de homicídios: uma análise do “Pacto pela Vida” do estado da Bahia (2011 – 2014), na qual analisou a efetividade do programa, destacando que a pauta se tornou central nas eleições de 2010 devido ao aumento de homicídios, cuja taxa para cada 100 mil habitantes no estado cresceu, de 2007 até aquele ano, de 25,7 para 40,4.

Para ele, a iniciativa, apesar de “legítima”, não gerou os resultados esperados, já que apostou em um modelo de “guerra às drogas”, o que aumenta a disputa por controle territorial, principalmente nas periferias, e, em consequência, a tensão, a ação repressiva do Estado e a violência, atreladas à ausência de políticas voltadas ao sistema prisional e contra o domínio de facções. “O Pacto Pela Vida foi uma tentativa importante, mas como a maioria das outras tentativas estaduais, como o Pacto pela Vida em Pernambuco, no Distrito Federal, no Espírito Santo, as UPPs [Unidades de Polícia Pacificadora] no Rio, esbarrou no fato de que não reformou as polícias, de que não modernizou as instâncias de controle, não produziu instrumentos de participação social e transparência pública e tudo isso fez com que o problema não se resolvesse. Além disso, há uma nova organização geopolítica do comércio de drogas, o que também não pode ser desconsiderado porque existem novas rotas do tráfico nacional e internacional que foram sendo construídas pelo Norte e Nordeste do país, e essas rotas alcançaram a Bahia nos últimos 10 anos”, explica.

Dudu Ribeiro concorda. “A falta de participação da sociedade civil, dos setores interessados como as universidades, no comitê gestor para pensar outros caminhos e outras propostas, e o privilégio quase exclusivo dos agentes de segurança na elaboração da política fizeram com que a gente chegasse nesse momento em que nós não temos mais a política sendo o carro-chefe da segurança na Bahia, ainda que possa aparecer em alguns programas como o ‘Corra para o abraço’, que é voltado à proteção de pessoas que fazem uso de drogas e estão em situação de rua, ou outras iniciativas comunitárias com pouca capacidade de refletir um compromisso real pela vida das pessoas na Bahia”.

Outra questão que os pesquisadores levantam é a baixa qualidade de dados e da transparência por parte do governo baiano, sem a exposição de metodologia de coleta nem os itens considerados no cálculo do Prêmio por Desempenho Policial (PDP), que é uma bonificação criada no âmbito do Pacto Pela Vida na qual os policiais recebem quando batem metas na redução dos índices criminais – em setembro de 2021, foram pagos R$ 10,3 milhões a 11,8 mil policiais por redução de crimes violentos letais intencionais em determinadas áreas no primeiro semestre daquele ano em comparação com o mesmo período de 2020. O Monitor da Violência apontou no total que houve aumento de 7,1% dos assassinatos ao comparar o primeiro semestre de 2021 e de 2020.

Na própria dissertação sobre o Pacto pela Vida, Freitas aponta que os dados de mortes violentas na Bahia computadas pelo Ministério da Saúde entre 2011 e 2012 não coincidiam com os divulgados pela Secretaria de Segurança do estado. “Se analisarmos apenas a cidade de Salvador – onde as ações do PPV estariam mais concentradas no primeiro ano – verificamos que houve no mesmo período uma ligeira queda de 1,4 na taxa de homicídios segundo os dados da saúde (de 62 em 2011 para 60,6 mortes por 100 mil habitantes em 2012). Os documentos da segurança pública, contudo, falavam em reduções entre 50% e 80% nos bairros prioritários do PPV em Salvador”, escreveu o pesquisador.

Outros estudos também apontaram divergências ao comparar homicídios (SSP) e mortes com intenção indeterminada (Datasus). Na terceira edição do levantamento Onde Mora a Impunidade?, que busca padronizar um indicador nacional de esclarecimento de homicídios, o Instituto Sou da Paz apontou a Bahia como um dos estados com “dados incompletos e sem a qualidade necessária para realizar o cálculo” (que leva em consideração a divisão entre ocorrências de homicídio doloso consumado que geraram denúncias criminais pelo total de homicídios dolosos consumados).

Apesar de a metodologia ser diferente para compilar homicídios (na SSP, a Polícia Judiciária/Civil que faz o registro e, no Ministério da Saúde, a fonte primária é o médico), a convergência dos dados se centraliza no número de vítimas. Desde 2015, o Protocolo de Bogotá estabelece que a diferença de dados de homicídios de fontes de segurança pública e da saúde na América Latina e o Caribe não devem superar 20% – que inclusive é usado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

“Se o governo não abre os dados, não abre para o debate público, a sociedade tem o direito de desconfiar”, diz Felipe Freitas. Ele também aponta que esse tipo de gratificação por resultado precariza ainda mais o trabalho dos policiais, que recebem baixos salários.

Controle externo

Na segunda-feira (7/2), a Defensoria Pública da Bahia solicitou novas informações ao governo sobre a aquisição de câmeras acopladas às fardas dos policiais, cujo anúncio foi feito em junho de 2021, após a divulgação de resultados positivos da iniciativa em São Paulo. Foi montado um grupo de trabalho na época, mas ainda não ocorreu a aquisição dos equipamentos.

O pesquisador Felipe Freitas avalia que a medida é positiva, porém, como outros especialistas entrevistados pela Ponte sobre o tema, merece cautela, com cobrança por fiscalização, transparência e construção de uma política pública. “Se a câmera for usada para colher a imagem só quando houver denúncia de abuso, o efeito disso vai ser mínimo”, critica.

Ele aponta que é necessário que o governo do estado e o comando da PM sinalizem claramente a condenação à violência policial, com a transparência dos dados e responsabilização, mas também que os órgãos de controle externo sejam proativos. “É de responsabilidade do Ministério Público e do Tribunal de Justiça do Estado que, no cotidiano das ações policiais, abram procedimentos investigativos quando há indícios de tortura e maus tratos nos casos de prisão, que são muito lentos nos casos de execução, de desaparecimento e de morte decorrente de intervenção policial. Essas mortes são celebradas com a conivência do Ministério Público da Bahia”, pondera.

A Ponte perguntou ao MP-BA quantas investigações de crimes contra a vida envolvendo policiais o órgão havia realizado. “Fora a atuação contra as milícias, foram cadastrados no sistema interno de informações do MP (Idea) 42 inquéritos policiais acusando PMs por crimes contra a vida, de 2019 até março deste ano. Deste total, 15 (35,7%) inquéritos resultaram em denúncias”, respondeu a assessoria em nota.

Um ponto importante e pouco explorado, segundo Freitas, é atuação de grupos de extermínio no estado. Segundo reportagem do Correio 24h, em 2020, uma força-tarefa com a Corregedoria Geral da Secretaria de Segurança Pública prendeu 58 policiais que teriam envolvimento com esses grupos. “Tem facção, tem violência policial, mas também tem grupo de extermínio que é outra dinâmica, matadores que cobram para vários fins, desde uma traição até adversário político. Há múltiplas camadas nos homicídios que a gente não consegue, com os dados que nós temos, abrir”, analisa.

Para ele, é uma atuação que não teve um olhar mais direcionado de combate, mesmo após a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Grupos de Extermínio do Nordeste, aberta em 2003 e encerrada em 2005 na Câmara dos Deputados. A Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa da Bahia, baseada em matérias jornalísticas, havia levantado 872 homicídios atribuídos a grupos de extermínio entre 2000 e 2003. “É importante reconhecer que, a partir da segunda metade dos anos 2000, temos a produção de um discurso de direitos humanos, um fortalecimento das instâncias de direitos humanos no governo do estado, mas isso não foi capaz de combater a violência policial, diferentemente do que se vivia no carlismo quando tínhamos o sucateamento das próprias estruturas de direitos humanos e uma defesa pública das ações desses grupos, como a gente assistiu na CPI dos Grupos de Extermínio do Nordeste”.

Ajude a Ponte!

“O que está acontecendo é uma reorganização desses grupos”, pontua Dudu Ribeiro, da Rede de Observatórios. “Ainda é incipiente, mas a forma como os agentes da segurança pública, a mídia, tratam como milícias no Sudeste, esses grupos também atuam na Bahia, mas está sendo muito pouco explorado, estudado e comentado, e é necessário que a gente dê nomes e coloque como tema sensível na segurança pública da Bahia hoje”.

O que diz o governo

A Ponte questionou a Secretaria de Segurança Pública sobre os dados, a metodologia, as ações do programa Pacto pela Vida bem como a atuação contra a violência policial, mas não houve resposta.

O que diz o Ministério Público

Além dos dados de inquéritos contra policiais por crimes contra a vida, questionamos ao órgão sobre as ações de controle externo.

O órgão disse que “acompanha e vê com preocupação a existência de números elevados relativos às mortes decorrentes de intervenção policial e vem adotando diversas medidas para diminuir a letalidade das ações policiais e propiciar uma melhor apuração dos fatos”. Elencou a atuação do Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas e Investigação Criminal (Gaeco) contra a existência de milícias, a reformulação do Grupo de Atuação Especializada do Controle Externo da Atividade Policial (Gacep) que virou Grupo de Atuação Especial Operacional de Segurança Pública (Geosp), bem como a criação de “seis Promotorias de Justiça na capital, com a atribuição exclusiva no controle externo da atividade policial”.

Além de ter implementado, no ano passado, o programa Vítima Acolhida, “que fornece oacompanhamento aos familiares desde a oitiva na Delegacia de Polícia, passando pela instrução processual e pelo plenário do júri, até a execução penal”, e capacitado promotores de justiça sobre o uso da força nas abordagens policiais.

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