Relatório denuncia agressões, homofobia e discriminação religiosa na penitenciária Osvaldo Florentino Leite Ferreira, de Sinop. Tortura incluía queimaduras, pau de arara e balas de borracha
Situações de espancamentos com cassetetes, tortura com velas quentes, disparo de spray de pimenta nos olhos e restrições às visitas de familiares são comuns na penitenciária Osvaldo Florentino Leite Ferreira, conhecida como Ferrugem, localizada em Sinop, no estado de Mato Grosso, governado por Mauro Mendes (DEM). A unidade prisional que tem capacidade para 326 pessoas, mas possui 877 presos.
A conclusão é de um relatório de inspeção produzido em dezembro de 2020 pela Corregedoria-Geral da Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso.
Mais de 70 relatos de presos e funcionários foram coletados em três dias de inspeção, também foram realizados exames de corpo de delito nos presos que mostraram hematomas e cicatrizes causadas por agressões físicas cometidas por profissionais do presídio. Além das agressões físicas, o documento revela violações psicológicas, como homofobia, segregação religiosa, ameaças e agressão verbal.
Agressões físicas e tortura
Um relato incluído no documento revela uma das formas de violência vividas pelos presos em Sinop. Além dessas já mencionadas, a força-tarefa encontrou outros métodos de tortura considerados até mesmo medievais.
“Em dezembro de 2019, no raio laranja em que estava, houve muita agressão, mostrando em seu corpo cicatrizes na cabeça e joelho, que, segundo alega, foram ocasionados por lesões manejadas [por agentes do local]. Relatou golpes e a utilização de um instrumento que chamam de ‘garfo do capeta’, que é composto de velas que queimam e pingam na pele e que exala um gás como pimenta”, disse um dos presos no relatório.
Um deles é o pau de arara, tortura utilizada durante o período de escravidão e na ditadura militar no Brasil (1964-1985). Ademais os presos relataram a realização de um espancamento anual realizado no final do ano, considerado uma “tradição” no presídio.
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Outra prática citada foi um procedimento conhecido como “arrebatamento”. Nele os presos são retirados da cela com tiros de bala de borracha, agressões e bombas de gás lacrimogêneo. Depois, com os detentos na quadra, os agentes acendiam de cinco a seis velas para passar nos presos.
Violações aos direitos LGBT+
A população LGBT+ sofre preconceitos e violações específicas no presídio. Uma das questões registradas no relatório é negação do direito de ala específica, a medida vai em sentido contrário ao determinado na Resolução nº 348 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que estabelece, o direito à permanência em cela destinada a pessoas da comunidade, manutenção de aparência feminina, nos casos de mulheres transexuais, entre outras coisas.
Também era negado ao grupo e o acesso a direitos que possam garantir remição da pena, como o estudo ou o trabalho. A medida também viola a Resolução nº 348 do CNJ. “Isso é muito preocupante, porque de certa forma você está alongando a prisão dessa pessoa, com base em uma discriminação e isso é muito violento. O relatório mostra que uma mulher trans dentro da unidade prisional teve que raspar o seu cabelo e isso é uma agressão a sua identidade de gênero, mesmo apresentando seu processo de troca de nome”, expõe o assessor jurídico da Pastoral Carcerária Nacional, Lucas Gonçalves.
Em um dos casos, os detidos denunciaram que alguns servidores entravam nas celas sem qualquer motivo, utilizando termos homofóbicos e já partindo para a agressão.
Discriminação religiosa
A segregação entre grupos evangélicos e não evangélicos também é exposta no relatório. De acordo com o documento, a ala dos presos vinculados à igreja evangélica Assembleia de Deus foi reformada e é organizada de maneira limpa e preserva a garantia de direitos, tais como o acesso à educação e ao trabalho. Em outras, os direitos são violados.
“Os direitos previstos na lei de execução penal eram garantidos somente aos evangélicos. Dessa forma, a unidade prisional acaba por demonstrar um procedimento de hierarquização que consequentemente produz e reproduz violência dentro do cárcere”, diz Lucas.
Estrutura precária e superlotação
Operando em 269% acima da sua capacidade, a penitenciária de Sinop também conserva problemas estruturais em relação a suas condições materiais, incluindo racionamento de água, que leva os presos a reservarem a água em baldes plásticos.
“A falta de higiene nas celas, inclusive com a propagação de insetos, pragas e transmissores de doenças. As instalações dos banheiros são precárias e a estrutura do prédio como um todo está danificada”, diz o relatório.
A falta de acesso à saúde também é exposta no documento. Um dos detidos relatou que sofre de diversas doenças, como pressão alta, diabetes e asma. Ele também disse que lhe negam o acesso a medicamentos.
Em geral, cada raio tem duas celas, com oito camas de concretos e dois banheiros para abrigar em torno de 50 a 70 presos, que sofrem dificuldades até para dormir por falta de espaço.
Lucas Gonçalves, assessor jurídico da Pastoral Carcerária Nacional, explica que o relatório partiu de denúncias enviadas à Pastoral em novembro de 2020, quando receberam várias denúncias dos presos de Sinop.
A partir daí, a Pastoral Carcerária encaminhou a denúncia para os órgãos de justiça criminal, como a Defensoria Pública, o Ministério Público e o Tribunal de Justiça. “Com isso, a Corregedoria Geral de Justiça do estado designou a realização de uma força tarefa dentro da unidade prisional em conjunto com a Defensoria para realizar uma inspeção e detectar presencialmente as diversas violações que lá ocorrem”, apontou Lucas Gonçalves.
A inspeção contou com a presença de três defensores públicos, dois juízes, a Força Tática da Polícia Militar, além de um fotógrafo da Defensoria Pública. Devido ao sigilo feito pelos profissionais durante a inspeção, os presos apontaram diretamente quem eram os envolvidos nas violações, inclusive o diretor Roni de Souza, o vice-diretor Clemir e o chefe de disciplina Marcelo Sales, que foram afastados pela Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp), junto a outros 12 agentes do presídio acusados de maus-tratos.
Em entrevista à Ponte, Érico Ricardo da Silveira, defensor público que participou da inspeção, afirmou que “as condições materiais da unidade prisional de Sinop não destoam da realidade do Sistema Penitenciário brasileiro”.
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Ele ainda aponta que a situação encontrada é inconstitucional. “Já foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como um sistema que vive um Estado de Coisas Inconstitucional (ADPF 347) diante do quadro reiterado de desrespeito aos direitos humanos e garantias constitucionais e convencionais. Verificou-se a ausência de condições básicas de higiene, como a escassez de acesso à água, energia, materiais de limpeza e higiene pessoal, com sabonetes, creme dental, papel higiênico e etc. Dificuldades de acesso a equipe médica e assistência social e psicológica”.
Questionado se a Defensoria Pública pretende judicializar as demandas para garatir os direitos das pessoas presas, Érico afirmou que deverá avaliar as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis. “A Defensoria Pública, através do Grupo de Atuação Estratégica em Direitos Individuais e Coletivos – Sistema Prisional (Gaedic), irá comunicar os órgãos de controle para a devida apuração dos fatos verificados com base no relatório e documentos apresentados, além de avaliar as medidas judiciais e extrajudiciais mais adequadas para concretizar os direitos e garantias das pessoas privadas de liberdade naquela unidade e nas demais após as inspeções que ocorrerão durante o ano”.
Segundo ele, já há um calendário homologado para várias inspeções neste ano em unidades prisionais por todo o estado. “Começando agora em março, sendo que especificamente no caso de Sinop, diante da última realizada, o Gaedic irá sugerir uma vistoria por outra equipe de defensores para analisar como ficou a situação após apuração verificada no final de 2020”, comunicou o defensor público.
Procurados pela Ponte, o Ministério Público e o Tribunal de Justiça do estado não responderam às questões solicitadas. A Secretaria Adjunta de Administração Penitenciária (Sesp) disse que o Secretário Adjunto de Administração Penitenciária, Jean Carlos Gonçalves estava afastado por motivos de saúde e que retornará na próxima semana.
Em nota, a Sesp afirmou que “Enquanto é apurada a veracidade das denúncias na Penitenciária Osvaldo Florentino, em Sinop, preventivamente a Secretaria Adjunta de Administração Penitenciária afastou os servidores citados e trocou a direção. A unidade vem passando por reformas nos últimos meses e ainda permanece em obras. Quanto à superlotação, há previsão de criação de novas vagas no Sistema Penitenciário em Mato Grosso, o que pode aliviar a quantidade de pessoas privadas de liberdade na unidade”.