‘Dois de novembro era Finados. Eu parei em frente ao São Luís do outro lado’

    Símbolo da violência contra a juventude negra, o Cemitério São Luís voltou a receber neste ano a Caminhada Pela Vida e Paz, que desta vez lembrou também os mortos pela Covid-19

    Cruzes relembravam as vítimas da violência | Foto: Jeniffer Estevam

    A entrada do cemitério São Luís, na zona sul da cidade de São Paulo, o maior e mais antigo da região, estava lotada na manhã desta segunda-feira, 2 de novembro, Dia de Finados. Carros e pessoas dividiam espaço com barracas de flores. Dentro, homenagens aos que se foram.

    Um grupo específico de aproximadamente 60 pessoas ocupava um descampado. Cercados por 25 cruzes com mais de dois metros e cheias de nomes, estavam ali pelo 25º ano consecutivo na Caminhada Pela Vida e Paz. Desde 1996, o São Luís recebe este ato mutirreligioso.

    Leia também: Nas periferias, campanha Vida Viva pede o fim de políticas violentas

    Neste ano, porém, não houve caminhada por conta da pandemia de coronavírus. A quantidade de pessoas também diminuiu. “Perguntaram para mim se não tinha pouca gente. Eu disse que a ideia era essa por tudo que estamos vivendo”, comenta o padre Jaime Crowe, um dos criadores da Caminhada.

    Nomes de mortos pela violência em São Paulo | Foto: Jeniffer Estevam

    Em sua origem, a mobilização clama pela diminuição da violência na periferia. Surgiu como uma resposta aos índices alarmantes de mortalidade na década de 1990, quando a ONU (Organização das Nações Unidas) considerou o distrito do Jardim Ângela a região mais violenta do mundo.

    O cemitério São Luís, principal destino das vítimas da violência na região, virou um símbolo do massacre da juventude negra, tema de inúmeras reportagens e de raps, como Fórmula Mágica da Paz, dos Racionais: “Dois de novembro era Finados/ Eu parei em frente ao São Luís do outro lado/ E durante uma meia hora olhei um por um/ E o que todas as senhoras tinham em comum/ A roupa humilde, a pele escura/ O rosto abatido pela vida dura/ Colocando flores sobre a sepultura/ Podia ser a minha mãe, que loucura”.

    Ato de 2020 incluiu homenagem aos mortos pela pandemia | Foto: Jeniffer Estevam

    “Os números em 1996 era de 120 assassinatos por 100 mil habitantes. Hoje, calculamos em torno de 25 por [100 mil]. Ainda é muito”, analisou Jaime em conversa com a Ponte. Ele não é o único a lutar para continuar a diminuir as estatísticas.

    Além do Fórum de Defesa da Vida, responsável pelo nascimento da caminhada, 25 instituições contribuíram para a realização do ato neste ano. Entre elas, as Mães de Maio, a Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, Amparar, Pastoral Carcerária, Comissão Arns, Sou da Paz.

    Ato ecumênico contou com diversas representações, como a monja Heishin Gangra | Foto: Jeniffer Estevam

    “Nós estávamos indignados sem saber como enfrentar uma situação tão alarmante”, relembra Lucila Pisani, 62 anos, uma das fundadoras da caminhada. Moradora do Jardim Ângela desde 1982, viu na ida às ruas a única forma de denunciar e fazer pressão para que a realidade mudasse.

    Pandemia modifica o ato

    Por 2020 ser um ano eleitoral, o Fórum publicou uma carta em que cobra dos candidatos à prefeito e vereador de São Paulo uma lista de ações voltadas para a segurança cidadã, moradia digna, saúde, cultura, educação e renda cidadã.

    Tradicionalmente antes do trajeto da caminhada, um ato ecumênico homenageia os que se foram vítimas de violência, sejam mortos por criminosos ou por policiais.

    Familiares levam flores aos que já se foram | Foto: Jeniffer Estevam

    Há uma atenção clara para o genocídio da população negra, a principal vítima de mortes intencionais, perfil comprovado pelo Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O estudo mostra que um negro tem três vezes mais chances de ser morto violentamente do que um branco.

    “[Aqui no São Luís] Estão milhares de pessoas enterradas, vítimas das mais variadas formas de violência, de desgoverno”, declarou Padre Nicolau Bakker, um dos organizadores. “Para que surja vida plena, é preciso muita luta, engajamento, esforço conjunto para enfrentar as forças da maldade”.

    Leia também: Homicídios de pessoas negras aumentaram 11,5% em onze anos; os dos demais caíram 13%

    Além dos padres, integrantes de outras religiões estiveram presentes, como do budismo, candomblé e evangélicos. A monja Heishin Gangra alertou para o compromisso de todos com a dor do mundo, dizendo que a “violência não surge de graça”. “Que atuemos juntos para nossa vida ter grande significado”, pediu.

    Caminhada surgiu em 1996 para combater a morte da juventude negra | Foto: Jeniffer Estevam

    Representante do candomblé e das religiões de matrizes africanas, Yawô Dofona de Oxum recitou a Fórmula Mágica da Paz. “Quando perguntamos onde existe humanidade, temos esse lugar. As mães pretas, que seus filhos foram deixados aqui no São Luís”, explicou Dofona. “Que possamos juntos e juntas dizer não ao racismo, ao genocídio, à perseguição religiosa.”

    O padre Luciano Borges, pároco da Favela de Paraisópolis, também na zona sul paulistana, lembrou dos nove mortos pisoteados durante ação da PM em um baile funk no dia 1º de dezembro de 2019. “Não faz um ano, e muitos já querem esquecer”, lamentou.

    Manifestante com frase dita por Douglas, morto pela PM em 2013 | Foto: Jeniffer Estevam

    A 25º edição teve um adicional: para além dos mortos pela violência, as lembranças e pedidos por ação do poder público foram para a saúde. Os mais de 160 mil mortos pelo coronavírus tiveram espaço nos cânticos e orações.

    “Olhar para a periferia é olhar para uma parte esquecida da nação”, define o padre Luciano. “Bem aventurados aqueles que promovem a paz. Aqueles que tiveram as vidas ceifadas não fiquem no esquecimento.”

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    Os manifestantes esticaram fitas em direção às cruzes com os nomes das vítimas. Levavam frases desejando esperança e ressurreição. Ao mesmo tempo, plantaram uma árvore.

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    […] de São Paulo. O padre, da paróquia Santos Mártires, no Jardim Ângela, é um dos criadores da Caminhada pela Vida e Paz, que em todo dia 2 de novembro, feriado de Finados, relembra os que se foram, vitimados pela violência. À Ponte, Jaime vê avanços desde o início […]

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