Lucas Carvente e Hendryll Luiz, militantes da UP, teriam agredido PMs. Tentativa de delegada enquadrar manifestantes por “associação criminosa” é “grave” e tentativa de criminalizar movimentos sociais, afirma especialista
Dos quatro militantes da UP que foram detidos na noite desta quarta-feira (6/12) por protestarem dentro da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) contra a privatização da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), dois permaneceram presos após a audiência de custódia realizada nesta quinta-feira (7/12): o professor Lucas Carvente e o estudante Hendryll Luiz, diz uma nota publicada pela UP em suas redes sociais.
A votação que acabou aprovando a privatização da Sabesp na Alesp foi permeada por manifestações acaloradas, repressão da Polícia Militar, agressões e feridos, além das quatro detenções.
Elaborado pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), o projeto de lei enviado aos parlamentares em outubro e tramitou em regime de urgência, o que foi alvo de contestação por parte de movimentos sociais e partidos políticos durante as sessões, por entenderem que faltou debate com a sociedade civil.
Militantes da UP disseram que a Polícia Militar intensificou as revistas no decorrer das sessões e que os PMs questionavam o teor dos cartazes que levavam para se manifestar dentro da assembleia.
As discussões geraram até empurra-empurra entre deputados, enquanto militantes cantavam palavras de ordem contra a privatização. O clima ficou mais tenso quando manifestantes que ocupavam a galeria passaram a pressionar e bater no muro de acrílico que divide os assentos do público com o plenário. O presidente da Alesp, André do Prado (PL), pediu para reforçar o policiamento no plenário e depois determinou que a galeria fosse esvaziada, assim como a sala de imprensa, ao dizer que a segurança estava comprometida.
Na gravação da sessão, é possível ver que antes mesmo de o presidente determinar o esvaziamento da galeria, deputados aparecem tossindo, já que os policiais haviam entrado na galeria para formar um cordão e afastar os manifestantes do muro de acrílico, utilizando jatos de spray de pimenta, embora não não seja recomendado o emprego desse tipo de armamento menos letal em ambiente fechado. A intensidade do gás fez os próprios parlamentares saírem do plenário, enquanto os PMs batiam no manifestantes com cassetetes
Um dos feridos foi o estudante de Letras e militante da UP Michael Rocha, que foi atingido na cabeça e precisou tomar ponto. Ele disse que estava na parte de cima, longe do muro de acrílico, mas desceu para ajudar os colegas a subirem com segurança. “A ordem era de recuo e nisso foi jogado gás de pimenta várias e várias vezes. Pessoas asmáticas dizendo ‘não, eu sou asmático’. Clamando mesmo, para que parassem, para que pudessem respirar”, afirma.
Ele denuncia que foi agredido quando a galeria já estava quase vazia. “A gente estava acatando a ordem de retirada. Junto na galeria estavam inclusive alguns parlamentares tentando mediar, mas sem muito efeito, porque a polícia não estava ouvindo nem os próprios deputados. E foi nessa hora de recuar, a cerca de dois metros da saída que eu levei o golpe na cabeça. Eu não encostei em ninguém e mesmo assim fui agredido”, denuncia.
Rocha diz que chegou a cair no chão, “a visão escureceu” e ficou um pouco atordoado, mas conseguiu sair. Uma foto mostra seu rosto ensanguentando no corredor, quando conseguiu sair do local, e foi guiado por outras pessoas que o levaram a uma enfermaria da assembleia. Como a Ponte já mostrou, apesar de ser uma arma menos letal, cassetetes não podem ser usados em partes letais do corpo por risco de lesões graves ou até morte.
Alguns vídeos feitos por militantes da UP e do jornal A Verdade mostram também policiais espirrando gás e agredindo militantes com cassetete. A presidente estadual do partido, Vivian Mendes, aparece em uma das filmagens gritando que foi agredida no estômago e é contida por PMs. Um deles fala “pode prender”.
Um outro vídeo, que foi divulgado em perfis de deputados da Bancada da Bala, mostram um rapaz branco de camiseta vermelha jogando um tripé, ferindo um dos policiais na cabeça. Ele seria o professor e militante da UP Lucas Carvente, que também aparece em fotos sendo agredido e contido por policiais.
Os quatro detidos foram, além de Vivian Mendes, o metroviário Ricardo Senese, o professor Lucas Carvente e o estudante Hendryll Luiz, todos militantes da UP que foram levados ao 27º DP (Campo Belo).
De acordo com o boletim de ocorrência obtido pela Ponte, os policiais disseram que foram prensados contra o vidro da galeria pelos manifestantes, que teriam desobedecido a ordem para esvaziar o local.
Eles afirmam que Vivian “foi uma das primeiras a desobedecer o isolamento e a romper a linha de policiais militares enquanto gritava para que os outros avançassem e atacassem o vidro”. Ricardo também teria incentivado os demais a avançarem contra os policiais e teria batido no vidro.
Os PMs disseram que intensificaram a ação com uso de tonfas (que é um tipo de cassetete) a fim de evitar que o vidro fosse rompido e que eles e os manifestantes caíssem. Quando as pessoas foram recuando, detiveram Vivian que, segundo eles, tentou resistir, bem como Ricardo tentou impedir que ela fosse retirada.
Em outro ponto da Alesp, Lucas foi detido pois teria jogado um tripé de uma câmera contra o soldado Marcos Antonio Martins Piovan. Os policiais relataram que um homem desconhecido ainda teria espirrado um jato de um extintor de incêndio contra eles.
Na versão dos policiais, Hendryll teria lançado um objeto semelhante a uma tábua de madeira que atingiu o soldado Lucas Montalvão Ban de Souza, “resultando em lesões em sua cabeça”.
Parlamentares também foram ouvidos na delegacia. Gil Diniz (PL) e Lucas Bove (PL) confirmaram as agressões contra os policiais. Mônica Seixas (PSOL) relatou que os manifestantes foram provocados por outros deputados e que o tumulto começou no início da votação, momento em que a polícia agiu com violência e gás de pimenta.
Além de Michael, outras duas pessoas também relataram na delegacia terem sido agredidas, mas são identificadas no documento como testemunhas e não como vítimas. Apenas os policiais e a administração pública são classificadas no boletim de ocorrência como “vítimas”.
A delegada Fabiola Miyashiro Lee entendeu que Lucas e Hendryll cometeram crime de lesão corporal dolosa em face de policial no exercício da função (pena de três meses a um ano de detenção) e que os quatro detidos praticaram os crimes de desobediência (não acatar ordem da polícia para esvaziar a galeria; pena de 15 dias a seis meses de detenção e multa), resistência (resistir ao recuo da polícia com violência; pena de dois meses a a dois anos de detenção) e associação criminosa (quando três pessoas ou mais se unem a fim de cometer crimes de forma consciente porque desobedeceram e resistiram a ordem; a pena é de um a três anos de reclusão).
Já o dano qualificado ao patrimônio público a autoria não foi definida.
A delegada manteve os quatro presos e não arbitrou fiança porque a soma das penas dos crimes pelos quais eles foram indiciados é superior a quatro anos de prisão. Quanto a Michael e as outras três pessoas que denunciaram ter sido agredidas, Miyashiro descreveu que eles têm até seis meses para representar formalmente uma queixa-crime.
À Ponte, o advogado dos detidos, Jorge Ferreira, questionou a condução da polícia, especialmente o indiciamento por associação criminosa, e avalia que a corporação agiu com truculência e de forma desproporcional. “A delegada deixou bastante claro que estava acompanhando muito anteriormente a questão da Unidade Popular (UP), que é um partido político. E ela, na prática, não demonstra qual teria sido o momento que essas pessoas se uniram conscientemente para praticar algum crime, porque é isso que é associação criminosa: você precisa planejar, precisa ter uma estabilidade, precisa ter uma unidade de desígnios, ou seja, de vontade. Como ela não demonstrou isso, ela está na prática criminalizando a organização política, o partido político”, afirma.
Integrante do diretório municipal da UP e irmã de Vivian, Ligia Mendes aponta que ela apenas tentou se defender das agressões e repudiou postagens como a do deputado Capitão Telhada (PP) que chegou a dizer que os manifestantes agredidos usaram “sangue falso”. “Isso é o que eles vão fazer. É a base da mentira. Para os deputados que estão apoiando esse projeto, não existe ciência, não existe dado, não existe provas, não existe evidências de que esse projeto é um crime”, declarou, em entrevista à Ponte.
“Eu mesma tô roxa. Caí, a polícia me empurrou mais de uma vez. Não deixavam a gente pegar os nossos materiais, a nossa mochila pra poder sair dali. Muita violência. Isso realmente não me surpreende. Me indigna. Dá mais vontade de lutar. Se acham que nos intimidam, não. A gente tá muito fortalecido na certeza de que a gente tá do lado certo defendendo o que é justo pra classe trabalhadora do nosso estado, denunciando os interesses fascistas, privatistas, entreguistas que tanto esse governador quanto a sua base aliada tem. Vamos enfrentar essa truculência e vamos continuar denunciando na rua, organizando o povo pra termos o direito de participar da política e continuar enfrentando esse projeto.”
Coordenadora do Programa de Proteção e Participação da ONG Artigo 19, Maria Tranjan avalia que a subjetividade dos crimes de de desobediência, resistência e associação criminosa colocam em xeque o direito de protesto. “Quando a gente está falando de crimes de menor potencial ofensivo, que são profundamente subjetivos e que dependem do testemunho dessa autoridade pública e dessa autoridade pública que tem na trajetória da sua função, na trajetória da organização que faz parte, que no caso é a Polícia Militar do Estado de São Paulo, um caráter autoritário, um caráter persecutório a quem defende direitos humanos, todo esse caldo engrossa”, avalia.
Isso porque, analisa ela, a associação criminosa não pode ser usada a fim de criminalizar uma manifestação política e que, neste caso, tornou gravoso crimes frágeis. “O crime de associação criminosa é comumente usado contra pessoas que estão exercendo o direito de protesto ou exercendo o direito de reunião, de reunião pacífica. Você se juntar com a finalidade de protestar não é você cometer um crime. Então, isso já seria ruim. Mas você falar que essas pessoas se juntaram naquele momento quente, em que já havia um atrito entre os deputados, entre as forças policiais, e falar que essas pessoas, de alguma forma, se associaram para o crime em questão de segundos para praticar crimes de resistência e de desobediência, que são crimes de menor potencial ofensivo, me parece bastante grave”, aponta.