Especialistas classificam proposta como ‘populista’, além de incentivar os policiais a matar; em 2017, SP registrou ano com maior letalidade ao longo de duas décadas
Eleito governador de São Paulo para o mandato de 2019 a 2022, João Doria (PSDB) prometeu, logo após a vitória sobre Márcio França (PSB), assistência jurídica particular aos policiais militares envolvidos em ações que resultem em mortes. Doria pretende “contratar os melhores advogados” para defendê-los, medida que nem a ditadura militar cogitou, segundo especialista ouvido pela Ponte.
Ao lado do deputado estadual Coronel Telhada, membro da chamada “bancada da bala”, Doria explicou a proposta. Segundo ele, não será a Defensoria Pública responsável pela defesa dos PMs, conforme lei decretada por França neste mandato. O governador eleito apontou que o Estado tem “que defender o direito dos policiais que defendem as nossas vidas”.
“Vamos acrescentar assistência jurídica. Me constrange saber que um policial militar, independentemente da sua graduação, está defendendo a população na rua, mata um bandido, tem uma situação qualquer que ele se defendeu e defendeu a população, e ele, depois, num processo, ainda tem que pagar o advogado para lhe defender”, declarou Doria, dizendo que “não é advogado de graça” e que serão “os melhores”.
O tucano não detalhou a implementação da proposta, se seriam feitas licitações para contratar escritórios de advogacia ou algum outro formato. O novo governador não apontou se a ideia conflita com a lei 16.786/2018, sancionada por Márcio França, que deixa a cargo da Defensoria Pública a assistência jurídica aos policiais processados – sejam eles militares ou civis. Questionada, a assessoria de imprensa de Doria não respondeu até a publicação desta reportagem.
Durante a campanha eleitoral, o então candidato prometeu uma PM linha-dura contra o crime e, também, letal. “Não façam enfrentamento com a Polícia Militar nem a Civil. Porque, a partir de 1º de janeiro, ou se rendem ou vão para o chão. Se fizer o enfrentamento com a polícia e atirar, a polícia atira. E atira para matar”, declarou, em entrevista à Rádio Bandeirantes.
De acordo com Pedro Estevam Serrano, professor de direito constitucional da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo, a medida está dentro da lei, apesar de não ser uma responsabilidade do Estado defender seus agentes que respondam por crimes cometidos em serviço. Contudo, é uma ação que nem a ditadura militar cogitou tomar.
“Tradicionalmente, a defesa de policiais é feita pelas associações. O policial tem confrontos e, na parte jurídica, não vejo problema se houver a aprovação de uma lei que entenda o PM como mais exposto a inquéritos criminais”, argumenta Serrano. “Mesmo que seja de forma legítima e aja em legítima defesa matando ou ferindo, tendo nítida a razão, ainda assim há um inquérito. Não é justo que o PM fique arcando. Um mecanismo desde a época da ditadura são as associações, nem o governo ditador cogitou esta medida [proposta por Doria]”, aponta.
O professor explica que, apesar de dentro da legalidade, existem outros métodos mais sofisticados a serem adotados pelo Estado a fim de garantir assistência jurídica a seus membros. E ações que não se restringem exclusivamente a policiais militares.
“As empresas usam o formato de seguro: se aciona o seguro quando há o processo e ele paga os custos, se o profissional for condenado no fim, o seguro cobra dele. Aí não é uma festa que o PM sairá matando e obtém defesa de graça do Estado em um ato ilegal. O custo seria muito menor no final, além do desestímulo que o policial procure auxílio quando seja, de fato, culpado”, explica Pedro.
O advogado e conselheiro do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana) Ariel de Castro considera a medida prometida por Doria como uma espécie de “licença para matar” dada aos policiais. O especialista classifica a ação como “irresponsável”.
“Um governador afirmar que vai contratar os melhores advogados para defendê-los, subliminarmente pode se entender o recado: ‘Matem a vontade que garantiremos que não serão punidos’. Por isso é um
estímulo à violência”, critica Castro. “Os índices de violência e de homicídios praticados por policiais já são crescentes, com esse estímulo de assistência judiciária gratuita serão amplificados ainda mais”, continua.
São Paulo registrou o ano com maior letalidade policial em 2017, com 939 mortos pelas polícias Civil e Militar, desde o início da contagem, feita pela SSP (Secretaria da Segurança Pública) desde 1996. O crescimento é de 171% comparado aos 347 mortos em ações policiais ocorridos no primeiro ano da contagem, que apresenta crescimento contínuo nos últimos quatro anos. Ao longo de duas décadas, as polícias paulistas mataram um total de 12.247 pessoas.
“O papel do estado é punir e responsabilizar os policiais que cometem excessos, abusos e, principalmente, assassinatos, e não estimulá-los com promessas de premiações ou de assistência judiciária subsidiada pelo Estado. É uma espécie de licença para matar subsidiada pelo Estado”, aponta Ariel.
Questionada pela reportagem, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo respondeu, em nota, que “a fala do governador eleito João Doria, segundo relatada pela imprensa, não menciona ou aborda a Defensoria Pública”. “Adicionalmente, esclarecemos que a Defensoria Pública é responsável pela defesa em processos criminais de qualquer pessoa que não contrate advogado privado, em qualquer tipo de crime, independentemente de sua qualificação profissional – seja policial ou não”, explica o órgão.
[…] a partir de 1º de janeiro, ou se rendem ou vão para o chão”, afirmou. Chegou a falar em contratar “os melhores advogados” para defender policiais envolvidos em ações que resultem em mortes. “Vamos […]