“Era uma vez após a cura (Deus é amor)” conta a história de Fábio, um menino gay, negro, periférico e evangélico, que busca se encontrar no mundo depois de topar com a Parada LGBT+ em São Paulo
Misturando documentário com ficção, o curta-metragem “Era uma vez após a cura (Deus é amor)“, escrito e dirigido pelo jornalista e fotógrafo Roniel Felipe, 41 anos, pretende desmistificar a religião e mostrar que a “cura gay” vai muito além de ideias conservadoras de igrejas neopentecostais.
Em entrevista à Ponte Roniel, que é morador de Castelo Branco, bairro periférico de Campinas (interior do estado de SP) conta que a ideia inicial surgiu em 2018, quando ele estava na capital paulista no fim de semana da Parada LGBT+ da cidade.
“Eu estava passando ali perto da República [bairro do centro de São Paulo], vi um monte de vans e ônibus de localidades diferentes. Era final de Parada LGBT+, a cidade estava lotada, aquela efervescência, alegria e falação. Fiquei imaginando como deveria ser para alguém que tivesse ali naquele bolo, mas estivesse incerto?”, lembra.
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Para compor o enredo do filme, detalha Roniel, veio a ideia de adicionar o fator da religiosidade. “Vejo muitas pessoas que crescem dentro da igreja, principalmente da vertente neopentecostal, e vivem esse drama: se Deus ama todo mundo, por que o pastor disse que eu vou para o inferno? Por ser um cara preto e de periferia, pensei que seria legal ter um personagem preto, periférico, gay e inserido nessa dualidade”.
Aí surgiu a ideia do curta que traz a vida de Fábio (interpretado por Fabiano Araújo), um homem negro, gay e periférico, que acredita ser doente e que foi “curado” pelo pastor de sua igreja. Mas quando Fábio desembarca em São Paulo justamente no momento de Parada LGBT+, começa a enxergar muita coisa.
O curta é dividido em dois: além da trama ficional, o filme conta com uma parte documental, que, para Roniel, “não teria tanta força se não tivessem essas duas pessoas incríveis”. As entrevistas foram feitas de maneira bem simples, com a câmera parada colhendo os relatos.
A pastora Tina Pantosi, da Igreja Cidade de Refúgio, localizada na Santa Cecília, (também no centro de SP), e que tem como linha a teologia inclusiva, conta como foi ser expulsa da igreja por se relacionar com mulheres.
O outro entrevistado é o psicólogo Fer Battaglia, pessoa transmasculina não-binária (quem não se encaixa na binaridade dos sexos — homem ou mulher, mas que reivindica o gênero masculino), que atua no Hospital Universitário da USP (Universidade de São Paulo) e é membro da LGBTClínica. Em seu depoimento, Fer mostra como a psicologia também pode atuar para a “cura gay”.
“É importante falar de religião, mas também temos que falar da psicologia, porque ela está envolta nisso. Existe tratamento psicológico que tenta ‘reverter’, com remédios, com porrada. A gente vive em um país que é presidido por um cara que fala que, se tiver um filho gay, vai corrigir na porrada. É muito importante ter esse debate”, aponta Roniel, lembrando dos discursos LGBTfóbicos do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Para colocar o filme na rua, ou melhor, nas plataformas digitais, a equipe precisa da sua ajuda: por meio da campanha de financiamento coletivo pelo Catarse Roniel busca atingir 15 mil reais para finalizar a montagem do curta.
“A ideia é encerrar esse financiamento, lançar o vídeo para as pessoas, de forma online, mandar para os festivais e futuramente fazer debates nas periferias. O que é hiper importante. Eu sempre digo que o legado é maior do que a própria pessoa. É um filme para todo mundo, pode ser do candomblé, da umbanda, pode ser católico ou evangélico. É um recado pras pessoas LGBTs aguentarem firme”, explica.
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Uma das ideias centrais do curta, argumenta Roniel, é mostrar que existem evangélicos diferentes. “Estamos caindo para um fundamentalismo que é perigoso e vai contra tudo aquilo que a religião acredita. Uma coisa que a pastora disse, que eu não esqueço, é que eles recebem ameaças, cartas embaixo da porta falando que vão colocar uma bomba ali. Isso em meio de igrejas. Esse tipo de igreja está captando um público”.
Quer um spoiler? O diretor conta um pouquinho do que está por vir nesse curta: “A mãe do Fábio está toda feliz, falando que o pastor afirmou que o Fabinho tá se curando. Ele realmente acredita que é doente e está se curando. Ela dá um celular para ele, menino periférico né? Ela fala que o filho de não sei quem tá indo pra SP e que vai dar uma carona pra ele”.
“Ele coloca uma camiseta escrito FÉ e vai. Mas, no mesmo fim de semana que tem a Parada LGBT+, tem a Marcha para Jesus. Ele vai para SP e se perde, acaba dormindo na Avenida Paulista e no dia seguinte é a Parada LGBT+. Ele começa a ver tudo aquilo e passa um mundo e informações na cabeça dele. É um cara preto, periférico, gay, curado, que cai em SP e anda na Rua Augusta e vê as pessoas LGBTs se pegando”.
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Para Roniel, que não se enxerga como um cineasta e sim como um contador de histórias, “se a gente puder fazer a arte ser libertadora, ainda mais nesse momento, é essencial”. “Eu tenho os meus privilégios enquanto homem hétero, mas eu sou um homem negro, então sei que o negócio não é fácil. A vivência que eu tive e a vivência das pessoas que eu gosto eu levo para o filme”.
“O que tem de mim nesse filme é essa necessidade e essa obrigação de fazer alguma coisa pelos pretos e pela galera que é minoria. Essas pautas são necessárias e urgentes”, conta.
Se pudesse dar um recado para a população LGBT+, afirma Roniel, seria para que elas procurassem pessoas como a pastora e o psicólogo de seu filme. “Lá fora, existem pessoas que passaram por isso e que lutam diariamente, que olham para elas de forma muito especial. Embora haja muita gente má a gente não pode definir uma religião”.
“Quem faz essas coisas erradas são os homens, existem pessoas boas que estão dispostas a te mostrar outros caminhos. Não é sobre religião, é sobre pessoas. Nesse momento é essencial você ter uma pessoa que te estenda a mão e diga que você não é doente, não é anormal”, conclui.