‘Eles mataram um pai de família e traumatizaram uma criança’

Viúva do migrante da Gâmbia Bubbakar Dukereh vive o drama de criar um filho com sequelas psicológicas pela morte do pai; um mês após o assasinanto, polícia ainda não encerrou inquérito

Fernada Souza Almeida segura celular com a imagem do marido, o gambiano Bubbakar Dukereh, morto pela PM de São Paulo. | Foto: Gil Luiz Mendes / Ponte Jornalismo

Em uma casa de pouco mais de 10 metros quadrados e um único cômodo, nos fundos de uma pensão no bairro da Bela Vista, região central da cidade de São Paulo, há muito espaço para saudade e revolta. Faz um mês que a piauiense Fernanda Souza Almeida, 34 anos, está dividindo a pequena casa de poucos móveis apenas com o seu filho de três anos. Desde o dia 15 de setembro ela não conta mais com o marido, o gambiano Bubbakar Dukereh, de 28 anos, morto pela Polícia Militar de São Paulo, ao ser abordado no bairro rico do Jardins, na zona sul.

Nesta sexta-feira, Fernanda teve que faltar ao trabalho, onde é auxiliar de cozinha em um refeitório de um supermercado, porque o seu filho não parava de chorar ao ser deixado na escola. Ela fala que a reação da criança é essa desde que o pai saiu para correr naquela noite e nunca mais voltou. “Eles mataram um pai de família e traumatizaram uma criança”, afirma.

Fernanda evita conjugar o verbo morrer ou citar as palavras “morte” ou “assassinato” em frente ao garoto ,que presta atenção em tudo que a mãe fala. Ela confessa, deixando transparecer a exaustão, que os últimos trinta dias têm sido os mais difíceis de um ano particularmente atribulado. Desde dezembro de 2021, quando o marido foi mandado embora do último emprego, ela não teve mais sossego.

Bubba, como era conhecido pelos amigos brasileiros, passou a desenvolver distúrbios de personalidade. A viúva atribui a mudança de comportamento do marido a três fatores: depressão, ociosidade e TV. A auxiliar de cozinha já fez tratamento contra a depressão e explica que o marido apresentava os mesmos sintomas.

“Ela passava o dia em casa com o nosso filho enquanto eu ia trabalhar. Ele não tinha mais ânimo para procurar emprego e passava o dia todo assistindo programas policiais na televisão. Pouco tempo depois ele passou a falar sozinho dentro de casa, a dar socos na própria cabeça e simular golpes sozinhos.”

Após essas primeiras mudanças, Bubba passou a andar com pedaços de madeira pela vizinhança como se fosse um cajado para fazer suas caminhadas. “Eu explicava para ele que era perigoso um homem negro como ele caminhar por aí com aquilo e que a polícia podia pegar ele. Em resposta, ele dizia que isso era comum no país dele.”

Segundo a viúva, o transtorno mental fez com que o marido adotasse atitudes que ele dizia serem tradições em sua terra natal, como escovar os dentes com pedaços de gravetos desfiados. Porém, ela garante que mesmo com toda mudança de comportamento do marido, ele nunca teve nenhuma atitude agressiva com as outras pessoas.

“Ele era mulçumano e tinha hábito de rezar todos os dias na hora que o sol se põe. Ele estendia o tapete aqui ao lado da cama e fazia as suas orações. Porém, por tanto assistir esses programas na TV ele passou a falar que ele era da polícia. Falava isso para mim dentro de casa e um amigo afirmou que escutou isso dele também quaando o questionou ao ver que ele estava andando com esse pau pela rua, achando até que ele estaria fazendo serviço de segurança.”

De acordo com Fernanda, Bubba nunca teve nenhum problema com a polícia, inclusive enfatizando que o marido tinha um grande respeito e admiração pela corporação, cumprimentando-os sempre que via uma viatura. “Justamente quem ele gostava tanto, tirou a vida dele.”

Passados 30 dias da morte do marido, Fernando diz que ainda não foi ouvida pelos agentes do Departamento de Proteção à Pessoa (DHPP) que investigam o caso e que não recebeu de volta os pertences que o marido estava portando quando foi morto, nem sequer as roupas que ele estava vestindo na noite de 15 de setembro.

Segundo o boletim de ocorrência, Buba levava na bolsa uma faca, duas estacas de madeira, uma corda, dois relógios – um deles sem funcionar -, e dois currículos de emprego. No documento, os policiais militares Gabriel Scisci e Luis Muller Mazotti dos Santos afirmam que Buba reagiu a abordagem policial os ameaçando com uma faca, e que por isso foi alvejado por um tiro de pistola .40 na região do abdômen dado por Mazotti.

O advogado João Campanini está cuidando da defesa do policial que efetuou o disparo. O defensor alegou que pegou o caso nesta semana e por isso precisaria se inteirar dos fatos para comentar a situação do seu cliente.

Procurada por e-mail, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo respondeu com a seguinte nota:
O caso é investigado por meio de inquérito policial instaurado pela 2ª Delegacia da Divisão de Homicídios do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). A equipe da unidade já realizou a oitiva de testemunhas que possam auxiliar no esclarecimento dos fatos. As diligências prosseguem.

Ausência de imagens

Trecho da avenida Nove de Julho onde Bubbakar Dukereh foi assassinado pela PM | Foto: Gil Luiz Mendes / Ponte Jornalismo

No trecho da avenida Nove de Julho, sentido centro, entre as alamedas Itu e Franca, impera a lei do silêncio. O dono da borracharia que fica bem em frente ao local onde Bubbakar morreu evita falar sobre o que ocorreu um mês atrás. Sem querer entrar em detalhes, informou que deu seu depoimento à polícia dias após o crime afirmando que não viu nada o que aconteceu e só ouviu o barulho de um disparo e se trancou dentro de casa, que fica nos fundos do estabelecimento, com a esposa.

O porteiro de um edifício que fica na mesma calçada e a funcionária de consultório que fica ao lado do local do fato, alegam não terem informações por não estarem trabalhando no horário em que o gambiano foi morto. Eles afirmam que as imagens das câmeras de segurança dos prédios foram entregues à polícia.

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Um morador de um edifício que fica do outro lado da via diz ter visto a cena do crime da janela do seu apartamento momentos depois da morte de Buba. “Eu estava em casa com a minha esposa, quando perto das 21h eu ouvi um estampido seco. Tive certeza que era tiro e fui ver o que tinha acontecido. De cima pude ver o corpo do rapaz estirado no chão e em pouco tempo chegaram várias viaturas e o local foi isolado por fitas. Às 23h o corpo já não estava mais no local”, afirma o homem que prefere não ser identificado, informando que não ouviu nenhum grito ou discussão antes do barulho do disparo.

Fernanda está cada vez mais sozinha. Sem a companhia do marido, ela está com dificuldades de manter o trabalho e a criação de um filho que já carrega as sequelas da ausência do pai. Ela fala que cogita pedir demissão do emprego para poder ficar com a criança, que não consegue mais frequentar escola por conta de crises de choro intermitentes, enquanto procura apoio psicológico para ele. Fernanda não tem Pix, mas deixou à reportagem uma conta corrente para que pessoas que quiserem ajuda-la possam depositar: Banco Itaú, agência 8774, C/C 50157-4

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