Márcio e Fernanda foram presos e condenados por tráfico de drogas quando levavam óleo para paciente; médico destaca uso eficiente para doenças neurológicas e emocionais
A educadora ambiental Fernanda Redondo Peixoto, 40 anos, conheceu a cannabis medicinal em 2003, quando seu filho, então com um ano de vida, nascido com taquicardia supraventricular, tinha convulsões sempre que tinha febre. Os médicos avisaram a mãe que, se isso não fosse controlado, o bebê poderia morrer. À época, Fernanda morava fora do Brasil e um desses médicos receitou o tratamento com cannabis medicinal. “Em questão de oito a nove segundos parava a convulsão do meu filho”, lembra.
O que se mostrava como um caminho de salvação, anos mais tarde, seria também a razão para a prisão e condenação dela e do marido, Márcio Roberto Pereira, 39 anos. Mas a gente vai falar disso daqui a pouco.
Fernanda passou a cultivar cannabis de maneira legal para o tratamento do filho durante oito anos, período que morou no Canadá e nos EUA. O menino só parou de fazer o tratamento aos 14 anos, quando, após uma cirurgia no coração, se curou. “Bastou duas gotinhas, em segundos, para eu perceber que a cannabis estava longe de ser uma droga. Não é que a cannabis é uma opção, em muitos casos é a única solução para salvar aquela vida”.
Em 2014, Fernanda voltou para o Brasil e passou a morar na região rural de Marília, interior do estado de São Paulo, onde abriu uma escola ambiental e passou a criar gado com o marido, que trabalhava como torneiro em uma fabricante de máquinas e implementos agrícolas.
Quatro anos depois, Fernanda se deparou com dois familiares adoecidos. Sua cunhada, aos 35 anos, tinha linfoma (câncer no sistema linfático, que faz parte do sistema imunológico) em estágio agressivo. Sua avó foi diagnosticada com a doença de Parkinson. Com cannabis, o tratamento das duas poderia ser mais eficaz.
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Na mesma época, leu em jornais locais a história de duas mães que tinham conseguido na Justiça que o Estado fornecesse o remédio à base de cannabis para os filhos delas. Mas, há um ano, o medicamento parou de ser fornecido. O custo médio era de R$ 3 mil mensais. As duas crianças tinham cerca de 80 convulsões diárias.
“Aquilo, no meu coração, falou mais alto. Eu sabia fazer o que salvaria as vidas daquelas crianças”, confessou Fernanda, que procurou as mães para falar que poderia ajudar. Cláudia e Nayara, mães de Matheus e Letícia, toparam. Fernanda foi ao Chile atrás das sementes medicinais e fizeram, juntas, o primeiro plantio, ainda de forma ilegal.
O medicamento importado, feito de CBD (canabidiol), explica Fernanda, baixou o nível das duas crianças de 80 para 40 convulsões diárias. “Então apresentei o uso da cannabis artesanal, o medicamento integral. Baseado nisso, procuramos espécies que fizessem efeito para o que elas precisavam e plantamos”, conta.
Após o tratamento com a cannabis medicinal, a avó de Fernanda melhorou significativamente. Sua cunhada, após seis meses combinando a cannabis com a quimioterapia, se curou do câncer. As duas crianças, em três dias de tratamento, tiveram as convulsões zeradas.
“O Matheus, por ter feito uma cirurgia no cérebro não consegue andar, mas voltou a sentar, sorrir, pegar as coisas. A Letícia voltou a andar”, comemora Fernanda. “Como o resultado foi muito bom, começamos a lutar aqui na cidade para ter informação, disseminação e legalização do plantio para as mães”, afirma.
A prisão e condenação
Em dezembro de 2018, Fernanda e Márcio viajaram de carro para o Acre para passar o fim do ano. Levaram consigo óleo de cannabis medicinal para dar ao padrinho de sua filha mais nova, de 11 anos, para o tratamento de câncer de próstata. Ele já tinha receita médica, mas não tinha condições de comprar o medicamento.
O casal foi preso antes de chegar no destino, na manhã do dia 28 de dezembro de 2018, por tráfico de drogas. Eles foram parados pela Polícia Rodoviária Federal de Rondônia na rodovia BR 364, Km 599, zona rural de Itapuã do Oeste, com porções de 926 gramas de maconha.
Foram levados para a delegacia, onde dormiram naquela noite. No dia seguinte, Márcio foi transferido para o presídio masculino e Fernanda para o feminino. Na audiência de custódia, em 7 de janeiro de 2019, a Justiça de Rondônia decidiu que Fernanda teria prisão domiciliar por ter uma filha menor de 12 anos, mas Márcio ficaria preso. Ele cumpre pena na Penitenciária Jorge Thiago Aguiar Afonso, de segurança máxima, em Porto Velho.
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O casal foi preso com sete vidros de medicamento que serviria para quatro meses de tratamento. “Era um óleo diluído a 5% de cannabis integral e 95% de azeite. Cada vidrinho continha 1 ml de extrato para 19 ml de azeite”, conta Fernanda. Além disso, o casal levava 150 gramas de cannabis embaladas a vácuo também para uso medicinal. Para consumo próprio, levavam 20 gramas.
“A Polícia Federal encontrou essa quantia na minha bolsa, fez a gente descer e encontraram os remédios. Aí eles pesaram os medicamentos no vidro, com azeite e com tudo, o que deu 700 e tantas gramas de maconha líquida. Eles somaram e deu quase 1kg de maconha”, detalha a educadora.
A condenação de Márcio e Fernanda saiu sete meses depois, em 10 de outubro de 2019: o juiz Glodner Luiz Pauletto, da 1ª Vara de Delitos de Tóxicos, do Tribunal de Justiça de Rondônia, condenou o casal a 8 anos por tráfico de drogas.
Uma medicina milenar
Em entrevista à Ponte, Daniel Pereira da Silva Mendes, médico clínico-geral pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, explica importância da cannabis como “medicina milenar usada por muitos povos e culturas”.
“A cannabis é uma medicina sagrada e natural, tem um potencial enorme para muitos usos terapêuticos e medicinais”, aponta. “Por conta do sistema endocanabinóide, que é o maior sistema receptor do corpo humano, a cannabis é muito eficaz nas questões neurológicas, psíquicas e emocionais”.
Por possuir “mais de 500 mil substâncias e todas atuando em conjunto de forma medicinal”, explica Mendes, a cannabis pode ser usadas em diversas doenças, como: epilepsia, mal de Parkinson, Alzheimer, esclerose múltipla, demência, ansiedade, depressão, glaucoma, asma, diabetes, pressão alta, câncer, artrite e artrose.
“Além disso ela age em inflamações e dores crônicas para pacientes que tomam remédios que causam muito prejuízos e efeitos colaterais quando são usados cronicamente, principalmente quem tem problemas cardiovasculares e renais”, pontua.
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O médico cita a forma com que Israel usa a cannabis medicinal para essas doenças e começou, durante a pandemia, a testar a planta para uma possível vacina contra o coronavírus. “As pesquisas, em países onde é legalizada e regulamentada, estão cada vez mais claras”.
Não é só a medicina que pode se beneficiar da cannabis. “Quanto mais essa causa for regulamentada e legalizada maiores serão os benefícios para a sociedade, seja no ponto de vista da medicina ou para geração de renda e economia”, argumenta Mendes.
O médico destaca que existe um mercado muito grande e que é possível supri-lo de forma sustentável e inteligente. “A cannabis entra na questão da violência, do tráfico de drogas. Legalizando podemos diminuir muito esse impacto”, explica. “Quantos garotos que trabalham para o tráfico não poderiam trabalhar em uma plantação e ajudar a produzir medicamentos que salvam vidas?”, indaga o médico.
Liberdade para Márcio
Embora Fernanda cumpra pena domiciliar, ela e o companheiro, que segue preso, lutam na Justiça pela absolvição de ambos e liberdade de Márcio.
Atualmente, o caso aguarda a votação do recurso, em segunda instância. A desembargadora relatora do caso Marialva Henriques Daldegan Bueno, vice-presidente do TJ-RO, negou o pedido e disse que é o juiz em primeira instância que deveria cuidar da questão.
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A defesa do casal, feita pelos advogados Maurício Sullivan Balhe Guedes e Antônio Klecio Lima de Sousa, aguarda a decisão desde então. “Estou em liberdade, mas ainda estou respondendo. Após a apelação, se continuar essa sentença, eu vou presa”, lamenta Fernanda.
Um abaixo-assinado, pedindo a liberdade de Márcio, reúne 1.700 assinaturas. Família e amigos também criaram um Instagram para fortalecer a corrente pela liberdade do terapeuta. Neste período preso, Márcio pegou malária três vezes.
“Entramos com pedido para que ele possa responder em liberdade por conta da doença”, explica Fernanda. “Não acreditamos que ele pegou a doença três vezes e, sim, que ela reincidiu, porque não houve o tratamento correto. Não tem receita médica e ele só tem um exame. É muita ironia a gente salvar vidas e ele não conseguir fazer um exame médico decente”, critica.
Bandeira política conservadora
Para o advogado criminalista Cristiano Maronna, doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo e conselheiro do IBCCRIM, a proibição da cannabis “é uma bandeira política que os conservadores usam e dá muito voto”.
Apesar de ter brechas na lei de drogas para fins medicinais ou científicos, explica Maronna, a questão medicinal da cannabis ainda é muito travada, mesmo com quase cem autorizações para pessoas produzirem e duas para empresas: Abrace (Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança) e Apepi (Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal).
“O combate da chamada guerra às drogas permite que exista a Bancada da Bala, que fala em combate às drogas e é feita por gente que se apresenta como guerreiros contra o crime e contra as drogas e com isso conseguem manipular o eleitorado”, critica o advogado.
“Apesar dessas dificuldades todas, temos um movimento muito forte que surgiu, principalmente, a partir de familiares de pacientes com doenças graves que começaram a se tratar com cannabis e passaram a perceber os benefícios em doenças neurológicas que produzem convulsões que não reagem aos tratamentos convencionais”, aponta Maronna.
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O discurso proibicionista, avalia o advogado, vai mudando a medida que as evidências científicas vão se tornando irrefutáveis. “Hoje os proibicionistas já não negam totalmente a possibilidade do uso da cannabis nos tratamentos, mas tentam fazer a diferenciação da cannabis pura, o THC, que é a droga, e o CDB, que é uma molécula encontrada na maconha que produz efeitos muito positivos para tratamento da epilepsia”.
A limitação da maconha medicinal no Brasil, explica Maronna, se restringe à possibilidade de cultivo e de consumo, de acesso aos medicamentos, para as pessoas portadoras que podem ser tratadas com a cannabis. Mas ele alerta que, mesmo com autorização para produzir, a pessoa pode ser enquadrada no tráfico de drogas. “Isso é totalmente irracional porque ignora o aspecto medicinal e que se doa gratuitamente, sem lucro”.
Maronna afirma que a legalização da maconha tem que estar no centro do debate num país racista e com tantas mazelas sociais. “Quando a gente fala em desencarceramento, o primeiro ponto é a política de drogas que é aplicada de uma forma disfuncional, com uma presunção de tráfico. A Justiça não é neutra e a questão das drogas permite abusos. Quando a gente observa o sistema prisional, temos maioria não branca”, avalia.
No caso de Márcio e Fernanda, o advogado avalia que a quantidade de maconha encontrada com o casal não deveria ser considerada como tráfico de drogas, “além de ser para natureza medicinal”. “A questão da quantidade é o ponto central da política contra as drogas. É justamente a falta de um critério que gera todo esse problema que abre espaço para os abusos”, conclui.
A luta pelo uso da maconha medicinal
Apesar da condenação por tráfico, Fernanda não desistiu de tornar a maconha medicinal uma bandeira de luta. Em fevereiro de 2019, ela fundou a Associação Maléli, ao lado das duas mães que ela e Márcio ajudaram em 2018.
O trabalho consiste em acolher familiares e explicar os benefícios da cannabis, além de encaminhar para outras associações que possuem autorização para o plantio associativo, como Flor da Vida e Abrace.
“Somos uma rede de pacientes que nunca comercializou a cannabis. Ensinamos os pacientes e eu, que conheço as espécies, os ajudo nas dosagens e a fazer a documentação que eles não conhecem”, explica Fernanda.
Desde a prisão do marido e a condenação de ambos, avalia a educadora ambiental, “já passei por tudo aqui fora”. “O preconceito de pessoas envolvidas na causa, que te olham de forma desconfiada, então é um processo longo de auto aprendizado, de ter força para entender que a Justiça é divina e não da Terra, então tenho que lutar pelo que é certo”, frisa.
Apesar da distância de mais de 3 mil quilômetros do marido, Fernanda conta que seus filhos e os pacientes têm dado força para seguir. “É o que o Márcio diz: já tinha valido a pena já que a Maléli tem mais de cem pacientes, mas já teria valido a pena pelas duas crianças primeiras que voltaram a viver”.
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