Em 60% dos casos, a única prova de processos por reconhecimento são fotos exibidas na imprensa

Pesquisa do IDDD, Cebrap e CNJ analisou 474 notícias sobre criminalidade, segurança pública e encarceramento, além de 681 sentenças que mencionavam a imprensa entre 2017 e 2018

Ilustração: Antônio Junião / Ponte Jornalismo

De 681 sentenças judiciais de 2017 e 2018 analisadas pela pesquisa Mídia, Sistema de Justiça Criminal e Encarceramento: narrativas compartilhadas e influências recíprocas, feita pelo IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) em parceria com o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e financiada pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), 227 mencionam que as pessoas apontadas como autoras de crimes foram reconhecidas a partir da exibição de suas imagens na imprensa. Dessas decisões por reconhecimento, 136, o que equivale a 60%, tinham como única prova a divulgação dessas fotos e em 86% desses casos ocorreram condenações. Ou seja, são processos que se iniciaram e terminaram em condenações com base em reconhecimento irregular.

Para Flavia Rahal, presidente do conselho do IDDD, esse dado mostra um “problema crônico” no sistema de justiça em não seguir os procedimentos previstos no artigo 226 do Código de Processo Penal sobre o reconhecimento, além de parcela de responsabilidade da cobertura jornalística que dá mais visibilidade ao lado da acusação do que da defesa, com uma busca por punição mais acentuada e que têm influência sobre o Judiciário, com pouca contextualização ou problematização dos atores envolvidos. “Esse descumprimento dos dispositivos legais é muito desrespeitado e o reconhecimento mal feito acaba sendo a principal causa de condenações equivocadas, principalmente em casos de crimes patrimoniais, como o roubo, a palavra da vítima é tida como única prova suficiente”, explica.

Ela destaca que, além de ser necessário que o reconhecimento seja feito conforme as regras para evitar erros, outros tipos de prova devem ser comparados, sendo que uma exposição premeditada pode culpabilizar alguém mesmo sem a conclusão do processo, tendo em vista que a Constituição Federal estabelece a presunção de inocência até uma decisão da Justiça. “A memória humana é falível, não é como uma máquina fotográfica, então a tendência é preencher as lacunas da memória com aquilo que se acha possível. Somando a isso uma exposição que uma pessoa teve na imprensa, uma foto ou uma imagem, esse tipo de erro acaba ficando mais fácil de acontecer porque é natural imaginar que uma vítima ou testemunha tenha vivenciado aquele momento emocionalmente difícil e, ao ver uma pessoa já apontada como responsável por determinado fato, ela introjeta a percepção de que aquela foi a pessoa que roubou, abusou ou cometeu algum outro crime.”

O relatório analisou, além das sentenças, 474 notícias sobre criminalidade, segurança pública e encarceramento provenientes de 63 veículos espalhados em 12 estados nas cinco regiões do país. A Ponte é um dos veículos avaliados. Também foram entrevistados 26 membros do sistema de justiça criminal, entre juízes, promotores, defensores públicos e assessorias de imprensa dos órgãos.

O estudo identificou que duas em cada três notícias sobre crime, ou seja, 75%, o lado da acusação é o único ouvido pela imprensa, seja esse o Ministério Público ou a polícia, o que demonstra uma desconstrução da tese de imparcialidade da cobertura jornalística. Além disso, detectaram que as polícias foram elogiadas em 48,2% das matérias que enalteciam alguma instituição. Por outro lado, as reportagens que fizeram problematizações sobre o trabalho dos atores do sistema de justiça mencionaram não só o Judiciário (19,7%), mas também o Executivo (40,1%) e o Legislativo (24,3%).

Para Rahal, o pedido de “outro lado” acaba sendo uma solicitação mais “burocrática” nesses casos em que o viés acusatório é mais preponderante do que contextualizar e respeitar os olhares para um mesmo fato. “É uma tônica que influencia na percepção das pessoas sobre uma investigação, sobre um processo, e que também se reflete em uma realidade concreta no que se tem como fazer justiça”. Um dos tópicos, por exemplo, que é feito no levantamento é o apagamento de discussões sobre encarceramento em massa, racismo e questões de gênero, sem contestar a situação social daquela pessoa tida como suspeita em um processo criminal e como ela é retratada.

Ao mesmo tempo em que o rosto de uma pessoa é superexposto, ela também tem seus direitos apagados nas sentenças analisadas, como na falta de investigação de casos de tortura ou violência policial. Além disso, pautas como as das “saidinhas”, apesar de previstas pela Lei de Execuções Penais para reeducandos do regime semiaberto, atacam erroneamente o direito, retratado como “privilégio” ou estimulante para a ocorrência de crimes.

O estudo estabelece uma série de recomendações tanto para os atores do sistema de justiça quanto para os veículos jornalísticos. Para Flavia Rahal, “a imprensa precisa ter a percepção de que quando está divulgando um caso, ela está gerando um elemento que pode ser usado como prova em um processo, porque é bastante frequente que essa matéria vai ser analisada pelo juiz, usada pelo Ministério Público ou até mesmo pela defesa”.

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A presidente do conselho do IDDD também enfatiza que o objetivo não é censurar a imprensa, mas gerar uma conscientização do seu impacto. “O segundo ponto é a compreensão do trabalho da imprensa e dos operadores do sistema de justiça, que têm influência recíproca, são trabalhos muito distintos em demanda de tempo e de resposta que precisam dar, então ter um diálogo interdisciplinar para que se estabeleçam parâmetros de construção melhores do que temos hoje”.

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