Em 9 meses, polícias mataram mais que no 1º ano inteiro da gestão Tarcísio

De janeiro a setembro, polícias Civil e Militar mataram 580 pessoas — duas por dia — em São Paulo. Para pesquisador, governo legitima mortes ao apostar em modelo repressivo: “Estamos caminhando para onde a gente estava 35 anos atrás”

Movimento Negro Unificado (MNU) se manifestou contra a violência policial em março de 2024 durante ato do Dia da Mulher | Foto: Daniel Arroyo / Ponte

Em nove meses, as polícias Civil e Militar do estado de São Paulo mataram 580 pessoas, ultrapassando o número de mortes cometidas pelas duas corporações em 2023 inteiro — no primeiro ano da gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e do secretário da Segurança Pública Guilherme Derrite, que tinha contabilizado 504 vítimas. Os dados foram divulgados pela Secretaria da Segurança Pública (SSP) nesta quinta-feira (31/10).

O período de janeiro a setembro deste ano também já superou as mortes praticadas em 2022, que somou 421 vítimas, e em 2021, com 578 mortes — anos que tiveram recordes de queda da letalidade policial após o início da implementação do programa de câmeras nas fardas da PM paulista e outros mecanismos de controle do uso da força.

É o décimo aumento consecutivo desse indicador durante o governo atual. De janeiro a setembro, a alta da violência policial foi de 55%, considerando as duas polícias, em casos durante o serviço e na folga. É como se as polícias tivessem matado duas pessoas por dia em 2024.

Apenas o mês de setembro subiu de 47 para 70 mortes — aumento de 48,9% a mais na comparação entre 2023 e 2024. É o pior indicador para este mês desde 2018, quando houve 74 vítimas.

Este também foi o segundo pior número para o terceiro trimestre, com 207 pessoas alvo do braço armado do Estado, desde o ano de 2018 (com 210 mortos).

Além disso, enquanto as mortes praticadas em serviço cresceram 75,2% — de 283 para 496 —, as ocorridas durante a folga caíram 7,6% — de 91 para 84. A comparação acende um alerta, pois as ocorrências em serviço são as que, em tese, o Estado tem como controlar.

A atual gestão teve como marca duas operações extremamente letais na Baixada Santista, vistas como vingança após assassinatos de policiais: a Escudo, entre julho e setembro de 2023, que deixou 28 vítimas, e a Verão, entre janeiro e março de 2024, com 56 vítimas. Esses são os números indicados pela Secretaria da Segurança Pública (SSP) como decorrentes dessas operações. Na região, no entanto, as mortes pelas polícias foram muito maiores em cada período, como Ponte mostrou.

‘O grupo matador ganhou’

Para Gabriel Feltran, diretor de pesquisa no Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS, na sigla em francês), e professor titular da Sciences Po na França, há um respaldo institucional que incentiva essas mortes. “A ideia é matar. O próprio Derrite foi investigado, pelo menos oficialmente, por 16 homicídios”, enfatiza. “Esse grupo com a ideologia de matar bandido sempre esteve nas polícias de São Paulo, mas estava um pouco controlado nos últimos anos.”

O pesquisador cita como exemplo o fato de que a iniciativa do programa de câmeras corporais na PM partiu da própria corporação, que estudava implementação da medida desde 2014 e a concretizou a partir de 2021. “Existia um grupo na polícia preocupado em, pelo menos, manter uma imagem, com dados mais baixos de letalidade policial. Não tem mais, né? No braço de ferro interno, o grupo matador ganhou e está exercendo suas políticas abertamente.”

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Em 2023, o governador Tarcísio deixou de investir de R$ 57 milhões ao programa de câmeras nas fardas e transferiu a verba para outras ações, como o pagamento de diárias de policiais. Em maio deste ano, a gestão Tarcísio anunciou um novo contrato para substituir as 10 mil câmeras existentes por outras 12 mil. Na época, durante um evento em Campinas (SP) o governador afirmou: “Queremos uma população segura, e não um policial vigiado.”

Porém, tanto o edital quanto o contrato homologado foram alvo de críticas por retirar o recurso de gravação ininterrupta por uma manual, em que o PM escolhe quando começa a gravar a ocorrência — o que, na prática, inviabiliza o controle e o registro das ações policiais.

Gabriel Feltran pontua ainda que falta maior controle externo da atividade policial por parte do Ministério Público e que também há a legitimidade atribuída por parte da população a esse tipo de perfil na polícia. Ele cita a candidatura do coronel Ricardo Mello Araújo, vice-prefeito na chapa que elegeu o prefeito Ricardo Nunes (MDB), como exemplo.

De acordo com o jornal O Estado de S. Paulo, o ex-comandante da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), a tropa mais letal da PM, já foi investigado por oito homicídios quando estava na ativa. É dele a frase de que a polícia deve atuar de forma diferente na periferia e nos Jardins, bairro rico da capital paulista, em entrevista ao UOL em 2017.

“No nível do governo estadual você tem um policial investigado por homicídios ocupando a secretaria de segurança. No nível municipal, vai ter a força da PM na vice-prefeitura. Nos dois casos, são policiais com esse histórico e com essa lógica de pensar o policiamento como ostensividade pura e, sobretudo, com essa ideologia de matar bandido”, afirma.

Uma das formas de de medir o excesso da letalidade policial é comparar esse índice com o número de vítimas de homicídios dolosos. De janeiro a setembro, essa proporção ficou em 22,9%. No mesmo período do ano passado, era 15,6%.

Estudos do sociólogo Ignacio Cano indicam que a proporção ideal é de 10% de mortes pela polícia em relação ao total de homicídios. Os do pesquisador Paul Chevigny sugerem que um índice maior que 7% já seria considerado abusivo.

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Outra possibilidade é a comparação com o número de policiais mortos. Os mesmos estudiosos entendem que se as mortes de civis for 10 ou 15 vezes superior a de policiais, já é um indicativo de abuso. Se considerarmos apenas os casos em serviço, é como se quase 42 pessoas tivessem sido mortas para cada policial assassinado de janeiro a setembro deste ano.

Além disso, os homicídios de policiais civis e militares subiu de 22 para 27, o que equivale a um aumento de 22,7%. A maioria das vítimas estava fora de serviço (15 agentes ante a 11 em 2023).

Para o especialista, uma hipótese para os casos na folga é a precarização do trabalho do policial que acaba atuando como segurança em “bicos” — o que é proibido pela corporação. “Para cada mercado ilegal você tem um mercado de proteção associado, que é basicamente corrupção policial”, explica. “É um mercado que vai comprando a proteção para as atividades ilegais. Essa proteção é comprada pela corrupção. Então, muitas vezes essas mortes de policiais, sobretudo quando estão fora de serviço, estão ligadas a conflitos nesse mercado de proteção, ligados à corrupção também.”

Gabriel Feltran afirma que a lógica do enfrentamento é prejudicial para a sociedade como todo. “Ela não é boa para a segurança pública, não é boa para a polícia, não é boa para a comunidade, não é boa para as famílias dos policiais. Esses policiais que estão na ponta matando estão ideologizados e achando que são super-heróis. Eles são insuflados pela corporação a se verem como heróis, a verem os pares que morreram como heróis”, critica.

“É parte de uma ideologia que constrói esses indivíduos como guerreiros, e não como funcionários que têm que fazer política pública. Então é lamentável que isso provoque um nível alto de mortes de policiais, seja por suicídio, que é maior do que os policiais que são assassinados, seja por homicídio.”

‘A história se repetindo’

O pesquisador entende que o governador e o secretário estão apostando em um modelo que já não deu certo nos entre os anos 1980 e 1990. “Quanto mais você matava, mais liberava espaços no mercado para que outros ocupassem. Então você sai da lógica anterior, que era a lógica de delinquência, que não tinha um mercado por trás da delinquência. Os justiceiros matavam e funcionava porque eram poucos os delinquentes de nível local, sem um mercado por trás”, explica. “A partir dos anos 80, com a chegada do mercado forte de droga, em escala industrial, transnacional, muita gente vai para o crime e a polícia continua fazendo exatamente o que ela fazia antes, que era espancar e matar”.

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Esse modelo, segundo diz, culminou no Massacre do Carandiru, em 1992, e na formação do Primeiro Comando da Capital (PCC), facção paulista que surge dentro dos presídios no ano seguinte. “Tem uma reforma toda da segurança pública lá no começo dos anos 90, que é instrumentalizada pelo crime, pelo próprio PCC, que cresce muito. São Paulo não só não resolve o problema da segurança, como passa a exportar facção para os outros estados e até outros países.”

Outra ideia equivocada, segundo o pesquisador, é a de que, para combater o crime organizado, o poder público precisa ano a ano investir mais recursos na repressão. “Como que vai resolver? Fazendo exatamente aquilo que a gente fez lá atrás e nunca resolveu? Matando, acabando com a vida de famílias trabalhadoras, que tem os filhos trabalhando também em mercados ilegais? Porque essas mortes são muito focadas em quem está operando o mercado ilegal de drogas, de roubos, de assaltos, de crimes violentos, que evidentemente tem que ser responsabilizados e punidos”, pondera.

“Agora a gente está caminhando de novo para onde a gente estava há 35 anos atrás e vê a história se repetindo.”

O que diz o governo estadual

A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública sobre os indicadores de letalidade e vitimização policiais. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, enviou a seguinte resposta:

A SSP reitera seu compromisso em garantir a segurança dos agentes de segurança e investe em treinamentos constantes para que as técnicas de abordagem sejam aperfeiçoadas e o risco para o policial, diminuído. As mortes são investigadas pela Polícia Civil e por uma divisão especializada da Corregedoria da PM, a “Divisão de PM Vítima”, responsável por acompanhar e atuar para o esclarecimento dos crimes. A pasta também tem intensificado o policiamento preventivo e ostensivo, investindo em inteligência e tecnologia para combater a criminalidade em todas as regiões.

Já as Mortes em Decorrência de Intervenção Policial, são resultado da reação de suspeitos à ação da polícia. Todos os casos de MDIP que ocorrem em São Paulo são rigorosamente investigados pelas polícias Civil e Militar, com acompanhamento das respectivas corregedorias, Ministério Público e Poder Judiciário. Para reduzir a letalidade, a SSP-SP investe continuamente na capacitação do efetivo, aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo e em políticas públicas. Além disso, os cursos ao efetivo são constantemente aprimorados e comissões direcionadas à análise dos procedimentos revisam e aprimoram os treinamentos, bem como as estruturas investigativas.

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