Policiais em serviço mataram 40% mais pessoas no primeiro ano do governo Tarcísio

Sob a gestão do governador Tarcísio de Freitas e do secretário Guilherme Derrite, polícias mataram 504 pessoas em 2023, revertendo tendência de queda na letalidade policial dos governos anteriores

O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e o secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite | Foto: Reprodução/Facebook

O primeiro ano de Tarcísio de Freitas (Republicanos) à frente do governo do estado de São Paulo, com Guilherme Derrite no comando da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), foi marcado pelo aumento da violência policial.

O aumento de mortes representou uma virada em relação à tendência de queda na letalidade policial observada entre 2020 e 2022, durante a segunda metade da gestão João Doria e os oito meses do governo Rodrigo Garcia (ambos do PSDB).

Segundo os dados da SSP divulgados ontem (26/1), as Polícias Militar e Civil mataram 504 pessoas em 2023, um aumento de 19,7% em relação às 421 mortes registradas no ano anterior. Quando se olha apenas para as mortes cometidas por policiais em serviço (excluindo aquelas praticadas por agentes de folga), os números saltaram 39,6%, de 275 para 384.

Ao longo do ano passado, a Ponte contou as histórias de algumas dessas vítimas. Entre elas, Luiz Fernando Alves de Jesus, 20, o poeta Swammy Hwygen Araújo de Oliveira, 31, e Rogério de Andrade Jesus, 50, um dos mortos na Operação Escudo, ocorrida na Baixada Santista.

A ação sangrenta no litoral deixou ao menos 28 mortos e foi o símbolo do que especialistas chamam de “operações vingança”, já que foi deflagrada após a morte do policial militar Patrick Reis, 30 anos, da Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota). 

Mesmo diante de denúncias que apontavam violações cometidas pela tropa, Tarcísio e Derrite não arrefeceram. “Não houve hostilidade, não houve excesso. Houve uma atuação profissional, que resultou em prisões”, disse o governador, quando oito mortes já haviam sido registradas.

Quando as mortes já eram 14, Tarcísio disse que não existe combate ao crime “sem efeito colateral”. A interpretação do bolsonarista foi condenada por órgãos internacionais como a Human Rights Watch e o Mecanismo Internacional Independente de Especialistas para Promover a Justiça Racial e a Igualdade no Contexto da Aplicação da Lei, ligado à Organização das Nações Unidas (ONU). “Nenhuma morte civil pode ser vista como dano colateral”, afirmou Juan Méndez, um dos membros da comitiva. 

Derrite não ficou para trás nas demonstrações de apoio à tropa. O secretário defendeu a “presunção de inocência” de dois policiais militares que se tornaram réus pela morte de Rogério de Andrade Jesus. Ele foi assassinado dentro da casa em que vivia com um tiro de fuzil. Segundo o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), o PM Eduardo Araújo disparou contra Rogério e o policial Augusto Oliveira o auxiliou ao “obstruir sua câmera operacional portátil (COP) para que nada fosse filmado e em forjar a existência de uma arma de fogo que estaria na posse da vítima”. 

Policiais em serviço mataram mais

O número de mortos pelas polícias de São Paulo foi maior entre os policiais que estavam em serviço — 384 registros, contra os 120 cometidos por servidores de folga. No total, a maior parte das mortes (91%) foi cometida pela PM.

Ao longo do ano, o aumento mais expressivo nas mortes foi registrado em dezembro, quando 59 óbitos foram contabilizados. O segundo mês mais violento foi julho, com 56 mortes. O mês coincide com a deflagração da Operação Escudo, na Baixada Santista. Em terceiro está agosto, quando houve 50 mortos, com a ação no litoral ainda em vigor.

Apesar das críticas, a SSP deu início a quatro novas operações Escudo. Os novos alvos foram o ABC Paulista, Piracicaba, Guarulhos e a região sul da capital. Isso ocorreu após a morte de dois policiais militares e de outros dois casos de violência envolvendo outros policiais. O governo não esclareceu, contudo, o que há de efetivo nessas novas “Operações Escudo” para além das declarações do secretário de Segurança.

Para a diretora-executiva da ONG Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, a aposta de Tarcísio e Derrite nesse tipo de operação atende apenas à lógica do policiamento ostensivo. “Uma lógica de operação vingança não é baseada em inteligência policial, em investigação, em integração de polícia civil e militar, não envolve Ministério Público, ela é uma resposta rápida a um problema grave que aposta em policiamento ostensivo”, diz. 

Até novembro do ano passado, 20 policiais militares, de folga ou de serviço, foram mortos em São Paulo, conforme dados da Corregedoria da PM publicados no Diário Oficial (os dados de dezembro ainda não estão disponíveis).

Carolina Ricardo avalia que o acréscimo das câmeras ao aparato policial, a partir de 2020, foi positivo e importante para a redução da letalidade. Estudo publicado em parceria pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef, na sigla em inglês) mostrou que o programa de câmeras nas fardas salvou 68 adolescentes de serem mortos pela Polícia Militar de São Paulo

O mesmo estudo, publicado em maio do ano passado, mostrou que, de 2020 a 2022, a letalidade caiu 76,2% quando analisadas as ocorrências de policiais em serviço que passaram a usar os aparelhos. O uso do equipamento também salva a vida de policiais: o número de policiais mortos em 2021 foi o menor em 31 anos.

“Em nenhum momento, o governador Tarcísio reconheceu o programa de câmeras como uma ação que fizesse parte de um programa exitoso, de profissionalização do uso da força pela polícia. Ele lê as câmeras como se elas fossem exclusivamente um controle sobre os policiais e isso é muito ruim, porque elas não são simplesmente um controle sobre os policiais, mas elas são um mecanismo de compliance. Você cria ferramentas para um gestor policial ter uma visão mais completa de uma questão mais delicada, cria formas para você treinar o policial, cria condições de ter provas inclusive em defesa dos próprios policiais, você cria um método de supervisão do trabalho quando as imagens são revistas periodicamente”, afirma Carolina. 

Tarcísio deixou de investir quase R$ 57 milhões no programa das câmeras ao longo do ano passado. Ele também não fez compra de novos equipamentos, atualmente usados por 62 dos 135 batalhões da Polícia Militar.

Em entrevista ao Bom Dia SP, da TV Globo, em dezembro passado, Tarcísio questionou a eficácia do equipamento, afirmando que o uso de câmeras não protege “o cidadão”.

Carolina Ricardo diz que as câmeras são importantes instrumentos numa estratégia de redução do uso de força, mas que a gestão atual não entendeu. “A essência da polícia é usar a força, ela pode inclusive usar a força letal. Se nós trabalharmos bem essa possibilidade de usar a força, profissionalizamos essa possibilidade de usar a força, nós protegemos o policial, aumentamos a eficiência policial e protegemos o cidadão. Me parece que nem o secretário, nem o governador têm essa leitura e não se preocuparam muito com esse programa mais amplo de gestão do uso da força do qual as câmeras são parte e parece que ele foi abandonado, o que é muito ruim”, fala. 

Indicador aponta abusos 

Apesar da queda nos homicídios dolosos (de 10% em 2023 em relação ao ano anterior), a polícia matou mais no mesmo período. Com isso, o braço armado do Estado correspondeu à 15,6% das mortes dolosas cometidas ao longo do ano — no ano anterior, a proporção havia sido de 12,2%. Estudos do sociólogo Ignacio Cano indicam que o ideal é a proporção de 10% de mortes pela polícia em relação ao total de homicídios, e os do pesquisador Paul Chevigny sugerem que índice maior de 7% já seria considerado abusivo.

Já os homicídios dolosos chegaram ao menor patamar registrado no comparativo de 2013 a 2023. No ano passado, foram registrados 2.727 casos, enquanto dez anos antes o número era de 4.739 notificações. 

Outra queda foi registrada no número de roubos, que caiu 9% no comparativo de 2023 e 2022. Apesar disso, outros crimes patrimoniais, como o furto, cresceram no mesmo período. Em 2023, foram registrados 576.278 mil casos. 

Na avaliação de Carolina, os números, mesmo que em queda, não indicam que houve avanço na segurança pública sob chancela de Tarcísio e Derrite. “Não é possível falar que houve um avanço na segurança pública. Os homicídios caíram, os roubos também, embora os furtos tenham aumentado, mas a sensação de segurança no estado de São Paulo ainda é muito ruim, as pessoas ainda têm muito medo. Essa lógica de privilegiar o policiamento ostensivo não é suficiente para lidar com as questões estruturais”, pontua. 

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O que diz o governo 

A Ponte questionou a Secretaria da Segurança Pública sobre os pontos abordados na reportagem. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, enviou a seguinte nota:

A SSP investe continuamente em treinamento e aquisição de equipamentos de menor poder ofensivo para reduzir casos de letalidade. Todos os casos dessa natureza são rigorosamente investigados, encaminhados para análise do Ministério Público e julgados pelo Poder Judiciário.
Uma Comissão de Mitigação e Não Conformidades analisa todas as ocorrências de mortes por intervenção policial e se dedica a ajustar procedimentos e revisar treinamentos.

Em 2023, as polícias paulistas prenderam e apreenderam 187.383 infratores em todo o Estado, um aumento de 6,8% em comparação a 2022, ou seja, o total de infratores mortos nas ações de policiais em serviço representa 0,2% do total de detidos no Estado.

O programa Olho Vivo está mantido pelo Governo do Estado de São Paulo, com contratos ativos e orçamento previsto para 2024 para o funcionamento das 10.125 câmeras, o que corresponde a cerca de 52% do efetivo da corporação.

Além dos equipamentos já existentes, está em andamento a licitação para a compra de 3 mil sistemas de leitores que serão acoplados nas viaturas para ampliar a capacidade de identificação de veículos roubados.

Combate aos crimes patrimoniais

A SSP reforça seu compromisso com o aumento da segurança da população em todo o Estado de São Paulo. O trabalho empenhado pelas Polícias Civil e Militar no ano de 2023, resultou na apreensão de 267,3 toneladas de drogas, na prisão e apreensão de 187.383 infratores, recuperação de 49.528 veículos roubados e furtados e na retirada de 11.754 armas de fogo ilegais das ruas. A queda observada nos indicadores de crimes patrimoniais como os roubos em geral (-6,2%), roubos de veículos (-10,2%) e furtos de veículos (-2,5%) é resultado do empenho das forças de segurança do Estado, que realizam operações como a Impacto, nas principais áreas de incidência de roubos e furtos. As ações seguirão intensificadas para continuidade dos bons resultados, até que eles se reflitam na melhora da percepção de segurança por parte da população.

Reportagem atualizada às 17h41, de 27/1/2024, para incluir resposta da SSP.

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