‘Nenhuma morte de civil pode ser dano colateral’, diz especialista da ONU sobre Operação Escudo

Integrantes de comitiva apresentaram principais destaques, nesta sexta (8/12), sobre visitas a cinco capitais do país nas duas últimas semanas a fim de verificar ações do governo brasileiro para combater racismo e coibir violência policial

Tracie Keesee e Juan Méndez, membros do Mecanismo Internacional Independente de Especialistas para Promover a Justiça Racial e a Igualdade no Contexto da Aplicação da Lei (EMLER, na sigla em inglês), em coletiva virtual nesta sexta-feira (8/12) | Foto: Reprodução/Zoom

Especialistas independentes da Organização das Nações Unidas (ONU) consideraram preocupante o cenário de violência policial no Brasil durante entrevista coletiva realizada nesta sexta-feira (8/12). Os membros do Mecanismo Internacional Independente de Especialistas para Promover a Justiça Racial e a Igualdade no Contexto da Aplicação da Lei (EMLER, na sigla em inglês), visitaram cinco capitais durante os dias 27 de novembro a 8 de dezembro para verificar como o país combate o racismo e o uso excessivo da força policial.

Alguns dos destaques foram casos referentes às operações policiais na favela do Jacarezinho (maio de 2021, com 28 mortos) e na Vila Cruzeiro (maio de 2022, que deixou 23 mortos, e agosto de 2023, com 10 mortos), no estado do Rio de Janeiro; a Operação Escudo na Baixada Santista, no estado de São Paulo (agosto-setembro de 2023, que deixou 28 mortos) e a operação em Salvador, no estado da Bahia. com participação de forças federais após o assassinato de um policial federal (julho-setembro de 2023, com mais de 70 vítimas).

“Nenhuma morte de civil pode ser vista como dano colateral”, declarou Juan Méndez, um dos membros da comitiva sobre as declarações do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos). Em agosto, ele minimizou as mortes ao dizer que “não existe combate ao crime sem efeito colateral”.

Méndez apontou que esse tipo de declaração “valida” esses atos e “não houve esforços para investigar essas mortes”, cuja apuração requer transparência. “Nós acreditamos que o governo tem obrigação de investigar e condenar essas pessoas, mas também é preciso ser transparente. Precisamos ser transparentes sobre como essas investigações estão sendo feitas, porque estamos preocupados em algumas declarações que parecem validar esses atos, dizendo que a perda da vida civil é um dano colateral”, disse.

“Nós não concordamos com esta perspectiva porque as leis humanitárias, as leis de guerra têm que ser aplicadas neste caso, no uso da força da lei, nas operações policiais. Se alguém morre em uma operação policial, a responsabilidade do Estado é mostrar, comparecer perante essa morte e responder, porque em qualquer Estado democrático isso não deveria acontecer”, criticou.

A Ponte mostrou que o número de mortes cometidas pelas polícias Civil e Militar foi maior do que o de homicídios dolosos que aconteceram no Guarujá, cidade do litoral paulista, nos 10 primeiros meses de gestão do governador e do secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite.

O índice foi puxado especialmente por conta das 13 mortes cometidas pelas polícias em julho deste ano no Guarujá, num intervalo de quatro dias, logo depois que o governo Tarcísio deflagrou a Operação Escudo, em 28 de julho, em represália ao assassinato do soldado da PM Patrick Reis, da Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota). Na Baixada Santista, a operação deixou ao todo 28 mortos em 40 dias até o secretário anunciar o encerramento das ações, em 5 de setembro. Após mais um homicídio de um policial, Derrite informou que a operação passaria a ter uma nova edição, mas que até o momento não registrou o mesmo nível de violência.

A falta de responsabilização de agentes públicos envolvidos em mortes e a luta de familiares de vítimas também chamou a atenção dos especialistas. Um dos exemplos foi a Chacina do Curió, ocorrida na periferia de Fortaleza em 2015 e que deixou 11 mortos, cujo processo ainda tem julgamentos pendentes. Contudo, dos três que já aconteceram, em dois deles cinco policiais militares foram absolvidos pelas mortes e outros oito por omissão, em setembro deste ano. Quatro foram condenados a 275 anos de prisão, em junho.

“Ouvimos falar de casos que não estavam sendo investigados, de autores não processados e de casos encerrados sem responsabilização. Ouvimos falar da desconfiança geral no sistema de justiça. No caso de Ceará, este ano houve pessoas que não foram condenadas pelo massacre à força policial e entendemos é um exemplo de impunidade”, declarou Tracie Keesee, membro do EMLER. “A impunidade que estamos falando é generalizada no sistema criminal. As comunidades têm medo de apresentar suas reclamações, com medo de retaliação, inclusive nos próprios mecanismos públicos e também nas instituições forenses”, prosseguiu.

Méndez apontou que essas famílias e movimentos foram ouvidos e denunciaram tentativas de intimidação. “O mecanismo ouviu sobre técnicas de retaliação e intimidação por parte das autoridades responsáveis pela aplicação da lei. Isso tem a ver com a questão da estigmatização das famílias que enfrentam muitas represálias pela sua atuação quando elas precisam do apoio do Estado. Estes membros da família são na sua maioria mulheres negras. Durante a visita observamos uma cultura policial baseada na repressão, na violência, numa masculinidade tóxica, com a eliminação do inimigo público identificado como uma criminoso. Vítimas das operações policiais são vistos como criminosos”, criticou.

Ele também apelou para que o governo brasileiro siga as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos relativas à ação policial em favelas.

Os especialistas destacaram um “racismo sistêmico” que promove a desigualdade e que está presente desde a falta de representatividade de pessoas negras em cargos de poder, a propagação de discurso de ódio, de uso excessivo da força policial, do encarceramento da população negra e a impunidade sobre os crimes cometidos contra essa população.

Por outro lado, destacaram como iniciativas positivas a criação do Ministério da Igualdade Racial (MIR), no âmbito do governo federal, a prorrogação da política de cotas raciais, o incentivo ao uso de câmeras nas fardas das polícias e o reconhecimento do racismo na sociedade, embora os esforços ainda não sejam suficientes.

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“O Brasil precisa adotar uma abordagem de policiamento e segurança pública baseada em padrões de direitos humanos e com a participação segura, inclusiva e significativa de pessoas afrodescendentes”, pontuou Keese.

A perspectiva é de que o relatório final com as conclusões e recomendações seja divulgado na 57ª sessão do Conselho de Direitos Humanos, em setembro de 2024. O Mecanismo visitou as cidades de Brasília (DF), Fortaleza (CE), Salvador (BA), São Paulo (SP) e Rio de Janeiro (RJ).

Outro lado

A Ponte buscou a assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública do estado de Sâo Paulo (SSP-SP), feita pela empresa terceirizada Fator F, para comentar as declarações feitas pela equipe da ONU, mas não obteve resposta até a publicação deste texto.

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