‘Operação de vingança’, diz especialista sobre massacre da PM no Guarujá

Ouvidoria fala em pelo menos 10 mortos em três dias da Operação Escudo, deflagrada após a morte de soldado da Rota no litoral paulista; governador Tarcísio de Freitas diz estar “extremamente satisfeito” com ação da PM

O governador Tarcísio de Freitas e o secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite (terceiro da esq. para direita) participaram de coletiva nesta segunda-feira (31/7) | Foto: Geraldo Jr, SSP-SP

Pelo menos 10 pessoas foram mortas após o início da Operação Escudo no Guarujá, litoral de São Paulo, diz a Ouvidoria das Polícias, que recebeu outras duas denúncias de óbitos ainda sem registro oficial. O órgão ouviu relatos de moradores que descreveram execuções, tortura e ameaças na ação da Polícia Militar paulista, que ocorre desde sexta-feira (28/7). Mesmo com esse cenário aterrorizante, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), disse que não houve excessos por parte dos policiais, e classificou o trabalho como “profissional”. Especialistas criticam postura e fazem relação da atuação com operação por vingança. 

“Não houve hostilidade, não houve excesso, houve uma atuação profissional e que resultou em prisões”, disse Tarcísio de Freitas (Republicanos) em entrevista coletiva concedida na manhã desta segunda-feira (31/7), no Palácio dos Bandeirantes, longe do Guarujá onde a polícia age com o aval do Estado há quatro dias. A ação foi deflagrada após a morte do soldado das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota) Patrick Bastos Reis, 30 anos, na noite de quinta-feira (27/7). 

Patrick e um colega foram baleados próximo ao túnel da comunidade Vila Zilda, no Guarujá. Segundo divulgado pela Secretaria de Segurança Pública (SSP-SP), a dupla fazia patrulhamento quando foi atingida. O outro soldado teve ferimento na mão esquerda e foi encaminhado para um hospital. Já o PM morto chegou a ser socorrido, mas não resistiu.

“É inadmissível que um soldado da polícia no serviço seja atacado. É inadmissível que o crime ataque o policial. É inadmissível que a gente perca gente em serviço. Há de se ter o respeito com a instituição, com a polícia. Eu sempre disse que sem ordem a gente nunca vai ter progresso”, disse o governador.

Durante a coletiva, houve uma discrepância entre os dados divulgados pela Ouvidoria e pelo governo na Operação Escudo. Para a Secretaria de Segurança Pública, oito óbitos foram registrados até esta segunda (31), todas as pessoas que teriam morrido em confronto com a polícia. 

O governador também afirmou que 10 prisões de suspeitos foram concretizadas, entre elas a do homem que foi apontado como autor do disparo. Erickson David da Silva teve a prisão temporária confirmada após passar por audiência de custódia nesta segunda (31). 

Em entrevista à TV Tribuna, o advogado de Erickson, Wilton Felix, disse que ele era inocente e estava na comunidade da Vila Zilda, em Guarujá, para comprar drogas. Ainda de acordo com o advogado, ele fugiu da cidade ao ver que imagens divulgadas pela SSP o apontavam como suspeito. 

Na coletiva, Guilherme Derrite, secretário de Segurança Pública de São Paulo, afirmou que o suspeito foi identificado ao ser delatado por outra presa por suspeita de participação na morte. 

“Foi um trabalho fantástico de integração entre as polícias Civil e Militar, que deram uma pronta resposta ao crime. As primeiras 24h são fundamentais em qualquer crime. No local da ocorrência os investigadores encontraram uma nota fiscal de um estabelecimento, conseguiram refazer o trajeto e identificar, pelas câmeras de segurança, uma mulher que estava com os criminosos. Ao ser presa, ela apontou a participação dos comparsas.”, disse o secretário.

Operação vai durar mais 30 dias

Durante toda a coletiva, Tarcísio e Guilherme Derrite apoiaram a atuação policial. O governo confirmou que a operação vai continuar por pelo menos mais 30 dias, mesmo com a prisão de quatro suspeitos de envolvimento na morte do PM, o que contrapõe o objetivo inicialmente divulgado para a atuação no Guarujá. 

“Nós confiamos muito na polícia, que é treinada. A Polícia Militar é uma polícia praticamente bicentenária, uma polícia que é profissional, que age com profissionalismo e deu uma grande demonstração de profissionalismo nessas operações. Nós não vamos deixar passar impune agressão a policial”, disse Tarcísio. 

Já Derrite disse que os relatos de tortura e execuções recebidos pela Ouvidoria são “narrativas” e que não chegou ao conhecimento da SSP nenhuma denúncia neste sentido. 

“É uma estratégia do crime organizado para que moradores falem isso ou aquilo, e depois no inquérito fica provado que nada disso aconteceu. Essa versão de que um indivíduo foi torturado não passa de narrativa. Não chegou nada para nós de que tenha havido algo assim. O que chegou foi que alguns criminosos optaram por continuar enfrentando as forças policiais e os policiais tiveram que reagir a estas atitudes.”

A informação é rebatida pelo ouvidor das Polícias, Claudio Aparecido da Silva. Segundo o gestor, familiares de mortos e moradores relataram que nenhum deles tinha envolvimento com crimes. Claudio disse à Ponte que mensagens foram enviadas dizendo que a PM só estava matando trabalhadores. 

“Nós vamos continuar buscando mais informações sobre esses relatos. A gente não acha comum morrer 10 pessoas em três dias, especialmente em uma  cidade que esse tipo de morte decorrente de intervenção policial não passa historicamente de 30 por ano. A gente não acha que isso é normal”, afirma o ouvidor das polícias. 

Aqui também há uma contradição nas informações da SSP e da Ouvidoria, já que durante a coletiva o governo afirmou que parte dos mortos tinha passagem policial. Em nota, a Ouvidoria informou que seguirá atuando para garantir que haja investigação sobre as mortes e preservação dos direitos dos moradores das comunidades do Guarujá.

“A morte violenta do soldado PM e dos civis são inaceitáveis. Nada, nenhuma assimetria se justifica quando se clama por justiça e segurança para todos. Oportuno salientar que a responsabilização dos envolvidos é necessária, como medida de justiça, nos termos da legislação brasileira”, disse texto assinado pelo ouvidor. 

Operação de vingança

A postura de Tarcísio e Derrite é vista com preocupação por especialistas em segurança pública. Para o coordenador de projetos do Instituto Sou da Paz, Rafael Rocha, as falas dos gestores minimizam as mortes registradas até aqui. 

“A atuação que nós vimos hoje do governador e do secretário foram falas extremamente alarmantes e que geram preocupação no sentido de pensar para onde está caminhando a polícia de São Paulo, em especial a Polícia Militar”, diz Rocha. 

Ele critica aponta que as falas dos gestores acabam por legitimar o trabalho dos policiais, que neste caso já resultou em 10 mortes, segundo a Ouvidoria. “É uma legitimação de uma atuação extremamente violenta nesses últimos três dias, que é aterrorizante e me parece uma escolha completamente desacertada”, criticou o pesquisador. 

“Uma polícia profissional, séria, tinha que ter feito investigação, ido atrás obviamente dos envolvidos nessa morte do policial. Uma morte policial não pode passar em branco ou desaparecida, isso é óbvio. Agora tinha que ter havido uma investigação, uma atuação séria e precisa para que essa pessoa fosse então capturada, presa e, enfim, eventualmente, julgada e condenada ou não. O que se tem é uma uma matança generalizada com tortura, com violências que geram medo na população”, afirma Rafael Rocha. 

A socióloga e coordenadora de pesquisa do Instituto Fogo Cruzado, Terine Husek, classifica a ação no Guarujá como uma clássica operação por vingança. Ela pesquisou no doutorado esse tipo de situação, que resultou na tese “MEDINDO FORÇAS: a vitimização policial no Rio de Janeiro”. 

“Isso é uma realidade do Brasil”, diz Terine. Ela aponta que há uma comoção natural com a morte do colega de trabalho, como no caso do Guarujá, e que na história do país e até de São Paulo houve situações de resposta de forças paralelas. Um dos exemplos citados pela pesquisadora ocorreu em maio de 2006 no estado de São Paulo. 

Os Crimes de Maio, como ficaram conhecidos, ocorreram em retaliação a morte de policiais. Naquele ano, a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) de São Paulo decidiu transferir mais de 700 presos para uma unidade prisional de segurança máxima em Presidente Venceslau, no interior do estado, após escutas telefônicas terem revelado que organizações criminosas estariam planejando uma rebelião no Dia das Mães. Antes disso, o Primeiro Comando da Capital (PCC) já estava em polvorosa após o enteado de Marcos Williams Camacho, o Marcola, principal líder da facção, ter sido sequestrado por um grupo de policiais civis de São Paulo numa tentativa de extorsão.

Em resposta, foram registrados ataques da facção criminosa PCC (Primeiro Comando do Capital) que resultaram na morte de 59 agentes de forças de segurança pública. Delegacias, postos policiais e viaturas foram atacadas.

A contrapartida veio em uma série de ataques a civis realizados por policiais e grupos de extermínio com indício de relação com agentes de segurança, que resultaram em 505 mortes e mais de 100 feridos naquele maio de 2006.

A situação é diferente da que ocorre agora, explica Terine, já que o aparato do Estado é usado e as ações com violência são chamadas de operações. “Isso é muito mais agravado quando é feito com o aparato do Estado. Essas operações que estão acontecendo são a estratégia de atuação das forças de segurança no Brasil”, comenta. 

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Ela também vê com preocupação a legitimação da atuação da polícia pelo governo de São Paulo e das consequências que isso causa na população e na tropa. “Existem vários exemplos que mostram que, quando os governadores falam assim, a polícia mata mais”, diz. 

A visão da pesquisadora é a mesma de Rafael Rocha do Sou da Paz. “Nos parece, sim, que é um uma típica operação de vingança, algo que fazia algum tempo que a gente não via no estado de São Paulo”, comenta.

Sem denúncias, diz MP

Em um primeiro momento, questionado pela Ponte, o Ministério Público de São Paulo (MPSP) respondeu que “até o momento não há investigações a respeito do caso” ao referir as 10 mortes e as denúncias de tortura divulgadas pela Ouvidoria. 

Mais tarde, o MPSP emitiu nota sobre o caso dizendo que designou três promotores por meio do Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial (Gaesp) para analisar as ações da Polícia Militar.

“O trabalho conjunto dos promotores levará a investigação a bom termo, esclarecendo se as forças de segurança cometeram delitos na resposta à morte do policial”, diz a nota do MPSP.

O Gaesp foi criado em agosto do ano passado com missão institucional de controle externo da atividade policial. Esse grupo foi efetivado após pressão de movimentos sociais. A intenção era de que a partir dele, fossem feitos o planejamento, proposição, fiscalização e monitoramento das políticas de segurança pública. 

*A matéria foi atualizada às 20h25min de 31 de julho de 2023 para incluir a nova posição do Ministério Público de São Paulo.

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