Tarcísio mostra ‘virada extrema’ para a violência policial ao rejeitar investir em câmeras, dizem especialistas

Governador troca política de controle de letalidade policial dos anos anteriores pelo ‘liberal geral’, afirma Rafael Rocha, do Sou da Paz; em nota, entidades criticam decisão e alertam para possível fim do programa de câmeras nas fardas

O governador de de São Paulo, Tarcisio de Freitas, durante evento em 11/12/23 | Foto: Francisco Cepeda/GESP

Ignorando dados sobre a redução de letalidade policial e de queda das mortes de policiais em serviço, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) disse que as câmeras corporais não oferecem segurança e que não irá investir na compra de novos equipamentos, atualmente usados por 62 dos 135 batalhões da Polícia Militar.

A posição evidencia a “virada extrema” na política de segurança pública em relação às políticas adotadas nos últimos três anos, segundo especialistas ouvidos pela Ponte. A guinada de Tarcísio preocupa também por apontar para uma possível destativação do programa Olho Vivo, que coordena o uso das câmeras nas fardas. 

A declaração de Tarcísio foi dada na terça-feira (2/1) em entrevista ao programa Bom Dia São Paulo, da TV Globo. Ao ser perguntado sobre as câmeras corporais, Tarcísio questionou a eficácia do equipamento implementado em 2021, ainda na gestão de João Dória (PSDB), afirmando que o uso de câmeras não protege “o cidadão”.

“A gente não descontinuou nenhum contrato. Os contratos permanecem. Mas qual a efetividade das câmeras corporais na segurança do cidadão? Nenhuma”, disse Tarcísio. O governador afirma que “o cidadão hoje está sofrendo com perda patrimonial, com roubo de celular” e promete aumentar o policiamento ostentivo, investindo em tecnologia de monitoramento e não em câmeras corparais. “Preciso investir pesado em monitoramento. Isso custa muito dinheiro. É a melhor aplicação do recurso que a gente está buscando para proteger o cidadão”.

A afirmação de Tarcísio sobre a falta de efetivade das câmeras na proteção do cidadão contraria os dados disponíveis sobre o assunto, já que estudos apontam justamente o contrário. O programa de câmeras nas fardas salvou 68 adolescentes de serem mortos pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, de acordo com estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

O mesmo estudo, publicado em maio do ano passado, mostrou que, de 2020 a 2022, a letalidade caiu 76,2% quando analisadas as ocorrências de policiais em serviço que passaram a usar os aparelhos. O uso do equipamento também salva a vida de policiais: o número de policiais mortos em 2021 foi o menor em 31 anos.

Outro estudo, feito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), mostrou redução em 57% no número de mortes decorrentes de intervenção policial nas áreas das unidades policiais que utilizavam câmeras. O aspecto positivo da pesquisa chegou a ser destacado na página da própria Secretaria de Segurança Pública e, até esta quarta-feira (3/1), ainda estava no ar

Governo de São Paulo divulga em site oficial estudo sobre efetividade das câmeras | Foto: Reprodução

O ataque de Tarcísio às câmeras coroa as ações adotadas pelo governador ao longo do primeiro ano de mandato, define Rafael Rocha, coordenador de projetos do Instituto Sou da Paz. “O que passa para a tropa é a ideia de que se fez uma virada extrema. A política até 2022 tinha a letalidade policial, o controle do uso da força como uma prioridade do Estado e, agora, estamos na lógica do liberou geral”, diz.

O especialista afirma que Tarcísio cria uma falsa oposição entre investir em câmeras na farda ou investir em tecnologia contra o crime. “O governador coloca o controle do uso da força das polícias por meio do programa Olho Vivo e a atuação ostensiva da polícia como coisas opostas, como se o Estado de São Paulo não pudesse fazer as duas coisas, como fez até 2022”, defende.

Coletiva de imprensa do governo do estado em 10/02/2021, quando a compra das câmeras corporais foi anunciada | Foto: Governo do Estado de SP/Divulgação

Para Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a política de implantação das câmeras é uma aliada importante no controle do uso de força. Em sua análise, a mensagem transmitida por Tarcísio é de não se importar com esse indicador de violência.

“Se essa declaração em si não é um liberou geral, de algum modo, quando ele fala que as câmeras não ajudam o cidadão em nada, não têm nenhuma efetividade, ele está dizendo não se preocupar com o controle do uso da força”, afirma Samira. 

Samira Bueno também afirma que não há oposição entre uso de câmeras e combate ao crime, como sugere Tarcísio. “Quando ele fala de mais tecnologia, que tecnologia é essa? O governador tem usado esse tipo de argumento para justificar o fracasso que é sua política de segurança. O primeiro ano da gestão dele e do Derrite [Guilherme Derrite, secretário de Segurança Pública] mostraram que tudo piorou”, questiona. 

O primeiro ano do bolsonarista à frente do governo terminou com índices preocupantes na segurança pública. Até novembro, o número de mortes cometidas pelas polícias Civil e Militar de São Paulo já tinha ultrapassado o ano inteiro de 2022 — 446 pessoas foram vítimas.

Deflagrada em julho, a Operação Escudo foi o ápice da violência policial sob Tarcísio e o secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite. Definida como “operação vingança” por especialistas, a ação ocorreu após o assassinato do soldado da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) Patrick Reis, 30 anos, no Guarujá. Em 40 dias, a operação deixou pelo menos 28 mortos na Baixada Santista.

Derrite defendeu a atuação da tropa e chegou a dizer em live que os críticos da Operação Escudo tinham parentesco ou idolatria aos mortos, tidos por ele como criminosos. Já o governador, mesmo diante de denúncias de abusos policiais, afirmou que não existe combate ao crime “sem efeito colateral”, ao se referir às mortes.

As denúncias de violações levaram a Defensoria Pública do Estado de São Paulo e a ONG Conectas a impetrar uma ação civil exigindo a obrigatoriedade do uso de câmeras aos policiais que participem de operações em “resposta à ataques praticados contra policiais militares”. O pedido chegou a ser acatado de forma liminar ainda durante o andamento da ação policial na Baixada Santista, mas acabou derrubado em dezembro. 

Ao negar o pedido, o presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, desembargador Ricardo Mair Anafe, afirmou que a ação demandaria altos custos aos cofres públicos. E sequer destacou em sua decisão o ponto trazido pela Defensoria e pela Conectas de que as imagens ajudariam a coibir excessos dos policiais.

A negativa também veio do ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF). Na decisão em que avaliou um recurso para obrigar a implantação do uso de câmeras em todos os batalhões, Barroso reconheceu a importância das câmeras. chamando a implantação de “constitucionalmente legítima e socialmente desejável”. O magistrado, contudo, negou o pedido, alegando que o caso deveria tramitar nas cortes inferiores.

Desmonte no programa de câmeras

A decisão arremata um movimento que o governo estadual adotou ao longo do ano em relação às câmeras corporais. Foram quatro cortes promovidos no programa que, no total, deixou de receber investimento de R$ 58,6 milhões

A previsão inicial era que o programa tivesse disponível para ser aplicado no ano passado R$ 152 milhões. Os valores foram redirecionados ao longo do ano para custear outras áreas da pasta. O primeiro corte ocorreu em agosto (R$ 11,1 milhões), o segundo em outubro (R$ 15,2 milhões) e o terceiro em novembro (R$ 8,5 milhões) e o último em dezembro (R$ 2,8 milhões). Com isso, nesses quatro meses, o governador retirou do programa de câmeras R$ 37,3 milhões.

No projeto de lei Orçamentária para 2024, a verba para o programa não foi mencionada pelo Executivo. Aprovada no começo de dezembro, a Lei Orçamentária Anual (LOA) prevê orçamento de R$ 18,2 bilhões para a Secretaria da Segurança Pública — um dos maiores entre as pastas — sem prever despesas para o Programa Olho Vivo ou forma direta para compra de câmeras corporais. 

As câmeras corporais passaram a ser usadas pela Polícia Militar de São Paulo em 2021, por meio do programa Olho Vivo. O equipamento é acoplado ao uniforme e grava a rotina dos agentes de segurança. O contrato feito por João Dória com a empresa Avante/Axon foi firmado pelo valor de R$ 2,5 milhões por um prazo de 30 meses, período que se encerra ainda neste ano

A estratégia hoje é adotada por outros estados do país. Segundo o Monitor da Violência do g1, policiais militares de sete estados do Brasil usam o equipamento e outros 10 estudam a adoção do modelo. Enquanto São Paulo retrocede, a política das câmeras avança. No Rio de Janeiro, a partir da próxima segunda-feira (8/1), o Batalhão de Operações Especiais (BOPE) vai passar a usar o equipamento. 

“O programa Olho Vivo serviu de modelo para o estado de Minas Gerais, Santa Catarina e também para o Ministério da Justiça e Segurança Pública do governo federal. Era um case de sucesso e agora, por uma questão puramente ideológica, para acatar a base bolsonarista que acha que a polícia tem que agir de forma violenta, descontrolada e sem transparência, o governador começa a evidenciar o que já estava sendo sucateado. Agora, eu acho que ele começa a preparar o terreno para o fim do programa, uma não renovação”, afirma Rafael Rocha, do Sou da Paz.

Em nota conjunta divulgada nesta quarta-feira (3/1), o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Sou da Paz, a Conectas Direitos Humanos, o Instituto Igarapé, o JUSTA e o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, demonstraram preocupação com a interrupção dos investimentos no programa e com a proximidade do fim do contrato.

“Sua entrevista sinaliza para a possibilidade real de o governo paulista estar construindo a narrativa política para a não renovação do contrato, não obstante todas as evidências científicas que demonstram a efetividade das câmeras”, pontuam.

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As entidades afirmam que as câmeras não têm o potencial de sozinha resolverem os problemas enfrentados pela violência em São Paulo, mas são ferramentas importantes de mitigação.

“Acreditamos que as melhorias na segurança pública de São Paulo devem se dar a partir do aprimoramento do uso das câmeras corporais e não a despeito destas. O retrocesso em uma prática que se mostra solidamente benéfica para a população e para as corporações policiais seria uma perda enorme e a decisão deve ser reconsiderada”, pedem as entidades. 

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