Até novembro, letalidade policial sob Tarcísio já superou ano de 2022

Polícias Civil e Militar de SP mataram 446 pessoas nos 11 primeiros meses da gestão, sendo que no ano passado inteiro foram 421 vítimas; aumento é maior nos casos em serviço, que subiu 37% de janeiro a novembro

Mães e mulheres negras da Baixada Santista assumem a posição de porta-vozes das denúncias em protesto | Foto: Ailton Martins

O número de mortes cometidas pelas polícias Civil e Militar de São Paulo já ultrapassou o ano inteiro de 2022 – que contabilizou 421 casos e é o menor índice da série histórica desde 2005. De janeiro a novembro deste ano, foram 446 vítimas sob a gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e do secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite, segundo os dados da pasta divulgados nesta terça-feira (26/12). Os números de dezembro devem sair apenas em janeiro de 2024.

Neste primeiro ano do mandato, a questão da letalidade policial foi pauta desde o início e a Ponte contou histórias de algumas das vítimas: Luiz Carlos Gil de Santana, Swammy Hwygen Araújo de Oliveira, Felipe Vieira Nunes, Willians Santana, Luiz Fernando Alves de Jesus, Rogerio de Andrade Jesus, Fabiano Alexandre Melo e Gabriel Barbosa Silva.

Nos casos de Luiz Fernando e de Fabiano e Gabriel, que aconteceram em janeiro, Derrite defendeu as ações dos policiais da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), a força especial da PM, antes mesmo de qualquer apuração. Como a Ponte revelou, as investigações da Polícia Civil indicam que as vítimas foram executadas.

O secretário também defendeu a tropa ao alegar “presunção de inocência” dias após o Ministério Público estadual denunciar dois PMs da Rota pela morte de Rogério, uma das primeiras vítimas da Operação Escudo, que foi deflagrada em 28 de julho, um dia após o assassinato do soldado Patrick Reis, também da Rota, no Guarujá, no litoral paulista. A reportagem mostrou que, no município, as mortes praticadas pelas polícias foram mais altas do que os homicídios dolosos.

Em 40 dias, a operação deixou 28 mortos na Baixada Santista, com policiais celebrando contagem de corpos logo no início, até o secretário anunciar o encerramento das ações, em 5 de setembro. Após mais um homicídio de um policial, Derrite informou que a operação passaria a ter uma nova edição, mas que até o momento não registrou o mesmo nível de violência.

Na ocasião, os discursos dele e do o governador foram de que as mortes na Operação Escudo eram “efeito colateral”, alegaram que denúncias de violações de direitos humanos são “narrativas”, além de o próprio comandante-geral da PM, coronel Cássio Araújo de Freitas, ter gravado vídeo em que orienta a tropa a não hesitar “em utilizar legítima defesa”. As mortes e as denúncias chamaram a atenção de entidades internacionais como o Mecanismo Internacional Independente de Especialistas para Promover a Justiça Racial e a Igualdade no Contexto da Aplicação da Lei, ligado à Organização das Nações Unidas, que considerou que os discursos “validavam” esses atos e “não houve esforços para investigar essas mortes”.

Considerando apenas os 11 meses, a alta foi de 18,3% nos casos das duas polícias, durante o serviço e na folga. O aumento mais expressivo nesse período foi nas ocorrências em serviço, com 37,2%, contrariando um efeito que o programa de câmeras nas fardas causou em 2021 e 2022, quando as mortes reduziram de forma considerável nessas condições.

Implementado de fato desde 2021, o projeto foi alvo de contestações por parte de Tarcísio e Derrite desde a campanha eleitoral, quando disseram que seria revisto mas recuaram após as críticas. Ao longo de 2023, a Ponte mostrou que o governo deixou de investir R$ 57 milhões, após a diminuição do orçamento previsto, que caiu 37,5%, e quatro cortes ao destinar os recursos para outras áreas da pasta.

Neste mês, o Tribunal de Justiça de São Paulo desobrigou o uso dos equipamentos por policiais que estejam atuando em operações montadas em resposta a policiais assassinados. Em novembro, o UOL mostrou que 11 dos 23 batalhões que participaram da operação no Guarujá não tinham câmeras implementadas e em apenas seis ocorrências as imagens puderam ser analisadas.

A alta da violência policial não surpreende Gabriel Feltran, que é professor do Sciences Po (Instituto de Estudos Políticos de Paris) e diretor de pesquisa no Centro Nacional da Pesquisa Científica da França (CNRS), que não vê uma grande mudança do ano passado para 2023. “O conjunto da sociedade divide a população entre trabalhadores e bandidos. A morte do ‘bandido’ é considerada positiva porque ‘limpa’ a sociedade. Então, as polícias têm tentado se controlar internamente. O próprio advento da câmera é controle interno, não é controle externo: são os grupos mais republicanos das polícias tentando controlar os grupos mais selvagens das polícias. Agora, o que está acontecendo é que esses grupos mais selvagens também se organizam e tentam construir o seu poder”, avalia.

Para ele, as declarações de Derrite e de Tarcísio também reforçam uma liberação para matar, mas, num geral, a abordagem das ações de segurança pública não mudaram e que o papel do Ministério Público de fazer o controle externo é pífio. “É lógico que quando você tem um governo que tolera e estimula a violência policial, como é o caso agora, você vai deixar essa polícia mais liberada. Mas eu defendo há muito tempo que a polícia já está liberada pelo tipo de suporte que ela tem da população”, avalia.

Além disso, Feltran analisa que existem momentos em que a redução ou o aumento da letalidade acabam sendo alvo de dispustas dentro das próprias corporações. “A PM de São Paulo é heterogênea. Na época do Fleury [governador entre 1990-1995], a gente já tinha 1500, 1800 mortes por ano. Depois isso cai bastante na época do PSDB, na tentativa de um modelo de segurança. A gente passa todos os anos 1990 com uma redução importante, depois isso vai subindo de novo na caça ao PCC. E depois você controla de novo, entendeu? E aí, vem esses grupos mais selvagens que agora estão no poder e vão liberar [matar]. Então, a PM trabalha sempre desse modo ambíguo porque os grupos mais republicanos não querem controle externo, eles querem garantir o controle interno sobre a tropa. Os grupos mais selvagens querem se liberar de tudo. Todo mundo luta para não ter controle externo, mas o controle interno é disputado. E agora tem menos controle interno.”

Com isso, ele aponta que apesar da iniciativa de câmeras, sozinha não vai trazer resultados uma vez que “depois vão se achando os mecanismos para poder fazer com que a polícia mate de volta”. Apesar de ter sido instituída uma instância interna chamada de Comissão de Mitigação e Risco dentro da PM, em 2020, para avaliar policiais envolvidos em mortes, a corporação não divulga dados sobre como esse controle administrativo tem sido feito.

Uma das formas que a literatura especializada e pesquisadores utilizam para medir a violência policial e saber se há ou não abusos é comparar com os dados de homicídios dolosos. Estudos do sociólogo Ignacio Cano consideram que a proporção ideal é de no máximo 10% de mortes pelas polícias em relação ao total de homicídios, enquanto o pesquisador Paul Chevigny sugere que índices maiores de 7% seriam considerados abusivos.

De janeiro a novembro, essa proporção foi de 15,4%. No mesmo período de 2022, foi de 12,1%. Outra maneira é a comparação com o número de policiais mortos, mas até a finalização desta reportagem os dados ainda não haviam sido disponibilizados.

Já a redução do número de homicídios dolosos, que caiu 10,9% nos 11 meses e tem diminuído mês a mês, tem uma parte expressiva de responsabilidade do crime organizado, segundo Feltran. “Uma taxa como a de São Paulo em outro país pode significar que o Estado tenha perfeito controle sobre a violência. No nosso caso, está muito longe disso. Nós temos pelo menos dois grupos regulando homicídios: o crime fazendo a regulação fundamental dos espaços de conflitos periféricos ligados a mercados ilegais, em torno desses mercados muito lucrativos da droga, do roubo de veículos, do contrabando, e o Estado fazendo a defesa e a investigação de outros homicídios que não são ligados aos mercados ilegais, aos acertos de contas, etc.”, explica.

O pesquisador sinaliza que a “apuração” dos homicídios ligados aos mercados ilegais são “resolvidos” pelo próprio PCC, já que a investigação desses crimes pela Polícia Civil é muito baixa e que a aposta dos governos ao longo de 40 anos é num modelo de segurança pública que investe recursos no que não funciona.

“A gente tinha um modelo de segurança pública que era feito para caçar delinquentes. Então, a gente tinha uma franja delinquente da sociedade, você ia lá e esmagava essa franja, a sociedade estava em paz. Era o que os justiceiros faziam. Só que depois vem um mercado gigantesco, não tem mais uma franja da sociedade isolada num submundo criminal. Você tem uma máquina de fazer dinheiro entre o mercado legal e o ilegal. Então, não adianta você tirar o menino da esquina e botar na cadeia porque tem outro trabalhando no lugar dele no dia seguinte”, critica.

O que diz o governo

A Ponte procurou a Secretaria de Segurança Pública sobre os dados divulgados e as ações tomadas, mas até a publicação a Fator F, assessoria terceirizada da pasta, enviou a seguinte nota:

A SSP investe permanentemente no treinamento das forças de segurança e em políticas públicas para reduzir as mortes em confronto, com o aprimoramento nos cursos e aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo, entre outras ações voltadas ao efetivo. Uma Comissão de Mitigação e Não Conformidades analisa todas as ocorrências de mortes por intervenção policial e se dedica a ajustar procedimentos e revisar treinamentos.

Os números de mortes decorrente de intervenção policial (MDIP) indicam que a causa não é a atuação da polícia, mas sim a ação dos criminosos que optam pelo confronto, colocando em risco tanto a população quanto os participantes da ação. Todos os casos dessa natureza são rigorosamente investigados, encaminhados para análise do Ministério Público e julgados pelo Poder Judiciário. Vale ressaltar, que o trabalho das forças policiais no Estado, nos onze primeiros meses deste ano, resultou, na detenção de 172.223 infratores, 6,0% a mais que no mesmo período de 2022. No período, ocorreram 339 mortes decorrente de intervenção de policiais em serviço, representando 0,19% do total de prisões realizadas.

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