Em relatório obtido pela Ponte, Spacecom Monitoramento S/A admite que falha fez equipamento com preso de Iperó apitar durante saída temporária de Natal; outros dois casos suspeitos são investigados
A fabricante de tornozeleiras eletrônicas Spacecom Monitoramento S/A reconheceu falhas de sinal na tornozeleira eletrônica usada por Felipe* durante a saída temporária de Natal do ano passado. Ele é um dos três presos que cumprem pena em regime semiaberto na Penitenciária Odon Ramos Maranhão, localizada na cidade de Iperó, no interior paulista, que havia denunciado problemas nos equipamentos em reportagem da Ponte há duas semanas.
Nesse tipo de regime, o detento pode fazer atividades externas durante o dia, como trabalhar ou estudar, e retorna à noite para unidade prisional. Apenas as pessoas que cumprem o regime semiaberto têm direito às chamadas saidinhas porque leva em consideração o bom comportamento, participação de atividades educativas e a retomada de vínculos familiares.
Os defeitos foram identificados em 21 de fevereiro e o relatório da empresa foi encaminhado ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo na última sexta-feira (25/2) por meio de ofício expedido pelo diretor da unidade prisional Heber Anaor Janei. O diretor, antes de qualquer análise do equipamento, já havia representado pela aplicação de punição por falta grave contra Felipe em 15 de fevereiro, que ainda não foi avaliada pelo juiz da Vara de Execuções Penais. Caso fosse comprovada a falta e o juiz decidisse que houve violação, como apontou a tornozeleira, o preso teria como punição o retorno ao regime fechado por um ano.
A direção da penitenciária de Iperó havia descrito que o sistema de monitoramento apontou que Felipe cometeu violação por ter estado fora de casa no dia 25 de dezembro, das 4h46 até 5h44, e em 27 de dezembro, das 19h às 6h. O preso não pode se ausentar do domicílio no período noturno, entre 19h e 6h. Felipe, no entanto, gravou vídeos em que aparece tentando contato com a penitenciária e registrou boletim de ocorrência declarando que estava dentro da residência. A mãe dele havia dito à reportagem que a tornozeleira apitou até quando o filho já havia retornado a Iperó, no dia 3 de janeiro.
Em todas as datas e horários descritos como violação do perímetro determinado, o relatório obtido pela Ponte conclui que os alarmes foram disparados por falhas de sinal, sendo que o deslocamento apontado permaneceu registrado e gerou o alarme mesmo quando Felipe não estava mais na área indicada. Além disso, o relatório aponta que o erro de sinal e das coordenadas também podem acontecer em “ambientes indoor” (fechados) que “são potencializados em regiões com alta densidade de edifícios, como a região em que o referido monitorado mora”. Na porta da penitenciária, o dispositivo também apitou por considerar como violação o retorno até o local.
A Spacecom é uma das maiores fabricantes no país, já teve contratos anteriores com a administração paulista, e voltou a ser contratada em 2018 para monitorar 7 mil presos do regime semiaberto em situação de trabalho externo e em saídas temporárias ao custo de R$ 28,3 milhões, depois de o governo romper o contrato com a Synergye Tecnologia da Informação, em 2017, por uma série de problemas por mau funcionamento. Em 2020, o contrato foi prorrogado até 2023.
Apesar do reconhecimento da empresa de que forneceu equipamento defeituoso, Felipe não retornou automaticamente ao regime semiaberto, já que o Ministério Público e a defesa ainda não se manifestaram para que o juiz Emerson Tadeu Pires de Camargo tome uma decisão. Felipe e os outros dois presos tiveram o regime semiaberto suspenso de forma cautelar (provisória) em janeiro para que as supostas violações fossem apuradas. Para a professora de Direito Penal da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) Maíra Zapater, ouvida pela Ponte, a suspensão pode ser considerada “arbitrária e ilegal” porque deveria ocorrer apenas se a falta fosse comprovada.
Nos casos de Márcio* e Gabriel*, cujas famílias foram ouvidas pela Ponte, a SAP (Secretaria de Administração Penitenciária) ainda não enviou à Vara de Execuções Penais as sindicâncias que investigam se houve ou não falhas das tornozeleiras. Elas também disseram que souberam durante as visitas que ao menos 150 tornozeleiras teriam sido recolhidas da unidade prisional.
O que diz a Secretaria de Administração Penitenciária
A reportagem procurou a pasta sobre o reconhecimento da falha no dispositivo usado por Felipe e questionou sobre os casos de Marcio e Gabriel.
Em nota, a pasta informou que “dos três processos de sindicância disciplinar abertos em desfavor de presos da Penitenciária de Iperó, a unidade optou pela absolvição e arquivamento de dois deles após constatar problemas técnicos nos aparelhos que não foram ocasionados pelos sentenciados”. E que no terceiro, a Spacecom “requisitou a remessa do aparelho para avaliação”.
A assessoria não quis detalhar a condição de cada detento, mas a Ponte apurou que os absolvidos na sindicância foram Felipe* e Gabriel*. Já Marcio é o que teve a tornozeleira remetida para apuração.
Sobre suposto recolhimento dos aparelhos da unidade, a pasta disse que “remanejou” para outros presídios da região “para atender reeducandos que têm trabalhado externamente desde dezembro. No caso de Iperó, não há atividades laborterápicas fora da unidade”. A assessoria não quis informar quantidade de equipamentos nem confirmou se encontrou falhas.
Questionamos se a Penitenciária de Iperó continuará utilizando as tornozeleiras em saídas temporárias e sobre a remessa das sindicâncias ao Tribunal de Justiça. A SAP confirmou que “haverá o monitoramento eletrônico de presos daquela unidade” na próxima saída temporária, mas não confirmou prazo para o envio das sindicâncias para que o juiz determine o retorno dos detentos ao semiaberto.
*Os nomes foram trocados a pedido dos familiares que temem represálias.
**Incluímos a informação de remanejamento das tornozeleiras e resposta da SAP às 18h42, de 3/3/2022.