‘Enfrentei o pior dos racismos religiosos’, diz mãe ao recuperar filha retirada dela após ritual de candomblé

    “Foram 17 dias que pareceram 17 anos”, resume Kate Ane Belintani, adepta da religião há 10 anos, após Justiça determinar devolução da guarda da adolescente de 12 anos em Araçatuba (SP)

    Ritual de iniciação do qual a filha de Kate participava foi usado como alegação para retirada da guarda | Foto: Pedro Ribeiro Nogueira e Arquivo/Ponte

    A manicure Kate Ane Belintani, 41 anos, viveu os 17 dias mais longos de sua vida entre 28 de julho e sexta-feira (14/8). Esse foi o período em que ela ficou longe de sua filha, uma adolescente de 12 anos, depois que a Justiça retirou a guarda dela por conta de um ritual de candomblé realizado em Araçatuba, no interior de São Paulo.

    “Foi difícil, hein?! Foram 17 dias que pareceram 17 anos”, resume, à Ponte, Kate Ane, em conversa neste sábado. O histórico de preconceito religioso, conta ela, existia, quando sempre ouvia piadas. A maior surpresa neste caso é o fato de a própria família lutar na Justiça contra a religião.

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    A ação foi tomada pela própria mãe de Kate, a avó da criança, Maria de Lourdes Vanzelli, que era contra o ritual de batismo da criança. É um processo dura 21 dias, em que a pessoa iniciada no candomblé permanece dentro do terreiro para se conectar com as entidades.

    Em um primeiro momento, o Conselho Tutelar da cidade acolheu a denúncia de maus-tratos e abuso sexual feitas pela avó da menina, que é evangélica. Mesmo após passar por perícia e negar qualquer tipo de abuso, a adolescente foi retirada da mãe. O Conselho Tutelar foi ao terreiro com a Polícia Militar no dia 23 de julho, dia da iniciação.

    Policiais armados entraram no Centro Cultural Ilê Axé Egbá Araketu Odê Igbô e levaram a garota. A manicure ficou sem entender nada, já que não existia nenhuma denúncia anterior. “Nunca teve nenhuma situação que eu pudesse perder a guarda dela e, com isso, foi um ‘agora basta’. Nem pude me defender”, lamenta a mulher.

    A decisão mudou na última sexta-feira. O juiz Danilo Brait, da 2ª Vara Criminal e Anexo da Infância e da Juventude de Araçatuba restabeleceu a guarda à Kate Ane. Segundo informado pela mulher, o juiz apontou que nada levantado no processo configura maus-tratos.

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    “Lembre-se que o direito à liberdade religiosa não é absoluto, não podendo usurpar da adolescente o direito à dignidade e à saúde […] E, nos autos, até o momento, não se constatou violação de direitos da adolescente”, define o magistrado.

    Ele analisou exames de corpo de delito e a declaração da jovem, que explicou ter feito o ritual por decisão própria. “Não vislumbro, por ora, qualquer motivo relevante apto a questionar ou infirmar a capacidade da genitora [Kate Ane] para o exercício do poder familiar em relação à adolescente”, prosseguiu.

    Kate explica ter sido uma decisão da própria filha passar pelo batismo. “De jeito nenhum [impus a religião]. Ela que quis fazer. Já frequentávamos, partiu dela”, explica. A mãe conta ter sido mais rápido “retirar do que devolver” a guarda.

    Na sexta-feira, as duas voltaram a se encontrar. O choro estava presente nos dois rostos. “Ela queria ir embora para a casa dela”, diz a manicure. A jovem estava na casa da avó, também em Araçatuba.

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    Apesar da vitória na Justiça, a mulher sabe que o preconceito contra o candomblé não está encerrado, apenas uma parte do processo. “O Brasil é um país muito cabeça fechada. É laico, mas não tem nada disso ainda. Vamos lutar muito contra isso”, afirma, dizendo ter enfrentado “o pior dos racismos religiosos”.

    “Não que seja menos pior, mas ser xingada, ser taxada de macumbeira, tudo bem. Agora, tirar a guarda é o extremo mesmo”, define antes de criticar a própria mãe, a avó que retirou a criança dela temporariamente. “Quem falhou foi minha mãe, que era para proteger e não me protegeu”.

    Segundo a pastora Eliad Dias dos Santos, fundadora do movimento Bancada Evangélica Popular, idealizada por pastores e presbíteros no estado de São Paulo, tudo o que é relacionado à África ou à religiosidade africana é considerado demoníaco.

    “As pessoas nas igrejas [evangélicas] entendem que isso está ligado a ser possuído por demônios, sendo que nas igrejas neopentecostais, especialmente, tem a questão de falar outras línguas, em que a pessoa fica em um estado de transe”, define. “Mas como isso é ‘cristão’ é tranquilo e quando é ligado à questão afro é coisa do demônio”, critica, à Ponte

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    A visão é compartilhada pela ialorixá Batia Jello. “O candomblé nunca foi aceito pela cultura europeia, sempre foi demonizado. A nossa sociedade sempre endossou isso. Mesmo o nosso país sendo laico, o culto do candomblé sempre foi demonizado”, explica.

    “Nunca teve respeito por ser um culto preto, mas o demônio não veio do meu culto, veio do europeu para criar a cultura do medo. Infelizmente grande parte da sociedade apoia essa atitude”, continua.

    Procurado por telefone no dia 7 de agosto, o Conselho Tutelar de Araçatuba informou que “como o caso está sendo acompanhado pelo Judiciário, não irá se pronunciar”. A Ponte tentou falar com os plantonistas do Conselho, mas não teve êxito.

    A reportagem também tentou junto ao TJ a íntegra da decisão, mas, até o momento, não houve retorno.

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