Entidade pede volta de grupo do MP que investigava violência policial no RJ

    Human Rights Watch enviou carta ao procurador-geral de Justiça do Rio exigindo a restauração do Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública, que investiga abusos da polícia

    Policiais militares foram filmados em ação policial no longa no Complexo do Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro | Foto: Pablo Baião/Divulgação

    O Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (Gaesp), que trabalha na prevenção, investigação e responsabilização de abusos policiais no Rio de Janeiro foi oficialmente extinto pelo Procurador-Geral de Justiça do estado, Luciano Mattos. Em uma nova decisão publicada nesta semana, o procurador cria a CGSP (Coordenadoria-Geral de Segurança Pública) que será responsável por combater o tráfico e a milícia em diversas áreas do Estado, mas não terá promotores especializados no combate a violência policial. 

    A Human Rights Watch (HRW), entidade de apoio aos direitos humanos, enviou nesta sexta-feira (16/4) uma carta ao procurador-geral de Justiça do RJ requisitando a restauração do Gaesp, bem como a sua ampliação. 

    Na visão de César Muñoz, pesquisador sênior da HRW, o fim do Gaesp, criado em 2015, deve intensificar a impunidade a policiais que cometem abusos nas comunidades do Rio. “Essa decisão só beneficia o policial abusivo, violento, criminoso e corrupto, que estava sendo investigado pelo Gaesp. Quem será prejudicado pela decisão somos todos nós. É a sociedade, é a segurança pública e é também o bom policial que quer fazer o trabalho direito”, argumenta. 

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    De acordo com o documento da organização de direitos humanos, em março, o Gaesp tinha sob sua responsabilidade mais de 700 investigações de abusos policiais e havia apresentado 24 denúncias em casos de homicídios cometidos por policiais desde 2019. “Incluindo casos com grande repercussão, como o homicídio de Ágatha Vitória Sales Felix, de 8 anos, no Complexo do Alemão em 2019”, aponta.

    Com a extinção do grupo, os inquéritos envolvendo policiais serão destinados aos promotores criminais dos locais em que os crimes aconteceram. No entanto, esses profissionais também são encarregados de conduzir casos ligados a todos os tipos de crimes, como roubos e crimes ligados ao tráfico de drogas e à milícia. 

    Essa sobrecarga de trabalho deve prejudicar a elucidação de crimes cometidos por policiais, no olhar de César. “O Ministério Público tem um papel fundamental, ele tem a missão e atribuição constitucional de fazer o controle externo da PM, isso significa garantir que a polícia não cometa abusos, quando isso acontece eles garantem que a Polícia Civil faça investigações adequadas, para isso deve ter um órgão do MP com especialização, com expertise e olhar focado neste grande problema”. 

    Além disso, a entidade pontua que os promotores naturais da jurisdição dos casos podem temer riscos de retaliação ao assinarem sozinhos uma denúncia contra esses policiais, como também “optar por não realizar suas próprias investigações sobre abusos policiais e, em vez disso, confiar apenas nas conclusões das investigações da Polícia Civil”, diz a carta.  

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    Deste modo, a imparcialidade das investigações pode ser contaminada, uma vez que a Polícia Civil estará investigando seus próprios integrantes, ou policiais militares. 

    Outra crítica levantada pela HRW é a falta de competência da CGSP para investigar e oferecer denúncias em casos individuais de abuso policial, o que para César Munhoz esvazia boa parte do trabalho que o Gaesp vinha fazendo. “Não fica nada claro o que essa coordenadoria vai fazer de fato, eles não podem nem abrir inquéritos civis. O Gaesp tinha essa autoridade, junto com o promotor natural”.  

    Shyrlei Rosendo, representante da Redes da Maré, avalia que o Gaesp era um setor muito importante. “O Gaesp tinha suas limitações, mas ligadas às procuradorias gerais. A perda desse novo espaço é um equívoco na nossa opinião. Infelizmente perdemos esse espaço e vamos ter que recriar agora com essa nova composição. Foi um grupo em que houve a conquista do diálogo”.

    Fransergio Goulart, da Coordenação Executiva da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial da Baixada Fluminense, também vê um retrocesso no fim do Gaesp. “Era uma institucionalidade na qual conseguimos em horas que tinha uma operação policial ligar para o batalhão, para a Polícia Civil, para saber que operação era aquela e isso de alguma forma freava muitas operações. Era algo que foi consolidado com muita luta, principalmente a partir do protagonismo de mães e familiares de vítimas da violência do Estado”.

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    Em sua atuação, o Gaesp abriu inquéritos civis sobre as práticas policiais que violam os direitos humanos básicos, como o uso de helicópteros usados como plataformas de tiro em comunidades do Rio de Janeiro, os chamados “caveirões aéreos”. Em agosto de 2020 o Supremo Tribunal Federal (STF) limitou essa prática determinando a preservação de vestígios de crimes e proibindo o uso de escolas e unidades de saúde como bases operacionais das polícias militar e civil. Além de investigar os falsos “socorros” de vírtimas usados como desculpa para destruir provas essenciais em casos de homicídios cometidos por policiais.

    ADPF 635 e Audiência Pública

    De acordo com a HRW, a polícia do Rio matou mais de 1.200 pessoas em 2020, “mais do que o número total de pessoas que morreram baleadas pela polícia nos Estados Unidos no mesmo período”. 

    Esse cenário só começou a mudar lentamente quando o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu operações policiais em junho do ano passado nas comunidades durante a pandemia da Covid-19, exceto em “hipóteses absolutamente excepcionais”, com a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº 635, conhecida como “ADPF das Favelas”.

    A medida foi proposta pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro), e construída coletivamente com entidades da sociedade civil e a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Depois que entrou em vigor com uma liminar deferida pelo ministro Edson Fachin, referendada pelo plenário da corte, houve redução de 72% da letalidade policial entre junho e setembro de 2020, de acordo com dados da organização Conectas Direitos Humanos. 

    A decisão histórica foi concedida após o pedido cautelar das organizações que participam da ação. A ADPF também impõe a criação coletiva de um plano de redução de letalidade policial. O projeto está sendo discutido no STF em uma audiência pública, os debates iniciaram na manhã desta sexta-feira (16/4) e se encerram na segunda-feira (19/4).

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    O evento vai discutir estratégias de redução da letalidade policial no RJ e conta com a participação de diversas organizações, entre elas Educafro, Justiça Global, Redes da Maré, Conectas Direitos Humanos, Movimento Negro Unificado, Iser, Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial/IDMJR, Coletivo Papo Reto e Mães de Manguinhos. As entidades foram admitidas na condição de amici curiae (amigas da corte) no processo, ou seja, elas têm por finalidade fornecer subsídios à decisão do tribunal.

    A audiência pública também visa denunciar o descumprimento da liminar, pois novas incursões policiais estão acontecendo nas comunidades do RJ, como explica Fransergio Goulart. “A partir do quarto mês, o Estado rapidamente começou a usar o discurso da excepcionalidade, então apreensão de drogas, barreiras na rua para impedir a circulação de pessoas, tudo virou excepcionalidade. A regra virou a excepcionalidade, o número de operações tem sido ampliado e isso representa o aumento no número de mortos e pessoas feridas”. 

    No mesmo sentido, Shyrlei Rosendo acha que o Estado continua desrespeitando a decisão do STF. “Continuam fazendo operações policiais e o argumento do que é excepcional ou não, não está claro, não está objetivo e a polícia não consegue responder, diz que responde ao MP, mas tudo muito vago”, critica. 

    Na audiência pública Shyrlei diz que pretende sugerir um plano construído pela sociedade civil, com o governo e especialistas. “Queremos que as informações sobre a segurança pública também sejam transparentes. Para onde os recursos gastos vão? É um dever do governo tornar isso transparente. Então, achamos que para a redução precisamos construir um plano juntos. E é óbvio o papel importante do MP que é fazer o controle externo das polícias”.

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    Já Fransergio Goulart defende a redução no orçamento da Polícia Militar. “O orçamento da pasta segurança pública no estado do Rio de Janeiro é o segundo maior. Ter mais dinheiro para ‘melhorar’ a polícia, é um engodo, com menos dinheiro eles não vão ter possibilidade de comprar armas letais, as tecnologias de controle de corpos, como eles fazem com os corpos negros, favelados, periféricos, nas favelas do Rio de Janeiro e na Baixada Fluminense. A proposta é criar um processo de desfinanciamento”. 

    Ele ainda acredita em medidas como o controle da polícia de uma forma preventiva e uso de armas não letais. “Não podem ter operações policiais em torno de escolas, de unidades de saúde, uma ação dessa busca reduzir a mortalidade. Outra questão preventiva é o uso de armas menos letais, se investir em uma polícia de investigação e não em uma polícia de confronto”.

    Por fim, Fransergio lembra da importância de o Protocolo de Minnesota, criado pela Organização das Nações Unidas (ONU), ser seguido. “É um protocolo internacional que diz como deve ser a investigação, que as áreas do crime não podem ser desfeitas, que tem que ter uma polícia independente da polícia. A polícia não pode investigar a polícia. E a gente vai levar essa proposta também para a audiência”.

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    A violência gera inumeráveis impactos para os moradores das comunidades, além da não circulação. Para Fransergio o efeito maior é na saúde mental desses moradores. “Quem é que tem nos seus condomínios um caveirão aéreo sobrevoando às quatro horas da manhã a sua cabeça? O impacto é na saúde mental”. 

    Nas crianças os resultados perpassam as dificuldades educacionais. “As notas das crianças diminuíram, devido a toda essa violência, ao uso dessas armas de guerra. O impacto psicológico, os traumas que o uso dessas máquinas de guerra trazem para nós favelados é esse”.

    Procurada pela Ponte, a Procuradoria Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro não respondeu quais são os motivos do fim do Gaesp, também não esclareceu quem fará o trabalho feito anteriormente pelo Gaesp, como irá funcionar e quando será colocado em prática. 

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