Entregadores protestam após agressão de PMs na quinta-feira no Rio

Disputa por bicicleta de aplicativo terminou com PMs agredindo entregadores, advogada e jornalista no Largo do Machado, zona sul carioca; ato de organizações de entregadores neste domingo (6) teve chamado para greve no dia 14 de junho

Manifestantes realizaram ato na tarde deste domingo (6/6) no Largo do Machado, zona sul da cidade do Rio de Janeiro, após entregadores de aplicativo, uma advogada e um jornalista serem agredidos pela PM carioca na quinta-feira (3/6). 

A disputa por uma bicicleta de aplicativo entre um entregador e um casal a passeio foi o estopim para as agressões. Policiais de uma base praticamente grudada na estação de bikes intervieram de forma truculenta a favor do casal. 

Ao enfrentar protestos de outros entregadores e passantes, os PMs da base agrediram colegas do entregador, um jornalista que filmava a ação e uma advogada que tentou mediar a situação e que teve sua carteira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) arrancada e pisoteada. A tentativa de se resolver o impasse entre os usuários das bicicletas se transformou numa espiral de mais violência tentando acobertar a violência. 

Na receita desse bolo, pandemia, precarização do trabalho e agressão policial seletiva. Poderia ser o roteiro de um filme distópico, mas acontece toda hora no Rio de Janeiro.

“Não vai bater em mulher”

O desemprego e o aumento da demanda levaram milhares de pessoas, a maioria jovens periféricos, a ingressar em aplicativos que podem pagar de R$8 a R$15 por entregas. Algoritmos, paciência e horas debaixo do sol ditam a rotina destes entregadores sem garantias, direitos e muitas vezes sem veículo para as entregas. É muito comum que muitos utilizem serviços de aluguel de bicicletas. 

No plano “profissional”, ao custo de R$12,90 por semana, um entregador consegue realizar até 4 viagens por dia de 2 horas cada, com cada viagem adicional custando R$3,90. Em estações próximas a shopping centers ou polos gastronômicos é comum encontrar filas de espera para liberação das “laranjinhas”, como são conhecidas as bicicletas.

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Durante a tarde desta quinta (3/6), mesmo com cinco bicicletas disponíveis no ponto de bicicletas de aluguel no Largo do Machado, o entregador e outro homem, ao lado de sua companheira, discutiam por uma bicicleta específica. Segundo a advogada Vanessa Lima, 34 anos, que estava indo retirar uma bicicleta no local, a bicicleta em disputa não estava no totem, tendo já sido retirada pelo entregador. 

Enquanto a discussão rolava, o cabo PM Kim torceu o braço de uma entregadora, que também já havia retirado uma bicicleta, exigindo que ela a devolvesse para que a mulher do casal a passeio a retirasse. 

Um entregador trajando o manto do Botafogo disse que o policial não deveria “bater em mulher”. Em seguida foi detido e arrastado para dentro da tenda do programa Segurança Presente, onde foi asfixiado e espancado por vários policiais, conforme mostram vídeos gravados por testemunhas. 

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A advogada, que já havia se manifestado na intenção de mediar a disputa, seguiu o entregador e seus agressores para dentro da tenda. Foi socada e empurrada pelo PM cabo Jublot, mas seguiu filmando as agressões. O jornalista Guilherme Fernandez, que registrava a ação, também foi agredido pelos policiais.

Em seguida os PMs conduziram os dois entregadores agredidos, identificados como José e Yuri, para uma van que os levaria para a 9ª Delegacia de Polícia (Catete). Vanessa exigiu acompanhar os policiais, não foi atendida, teve a carteirinha da OAB arrancada das mãos, foi derrubada no chão, agredida e finalmente conduzida à delegacia, não como advogada ou testemunha, mas sim como autora de uma suposta agressão contra o PM cabo Moura. A carteira da OAB só reapareceu horas depois, toda pisoteada, depois da chegada de uma delegada da entidade.

“Não foi um fato isolado”

O ato de domingo foi convocado por organizações de entregadores e apoiado pela Casa Nem e a Fist (Frente Internacionalista dos Sem Teto), e começou com a palavra de Lima no megafone: “A zona sul deveria estar envergonhada. Pois se estamos em casa seguros, é por que os entregadores estão se expondo ao vírus.” Ela provocou os empresários dos restaurantes da região, que financiam a operação Segurança Presente e dependem dos entregadores na pandemia. 

Lembrou que foi xingada de “gorda” e “puta”, mas que isso não a incomoda e que recebeu solidariedade inclusive de clientes policiais que se disseram envergonhados pela atitude dos policiais. “Os senhores (policiais) são funcionários públicos, não são segurança de parquinho nem organizador de fila de bicicleta.” 

Em outro momento relatou o caso em que defendeu um PM que sofreu processo disciplinar por ir ao banheiro num horário que o comandante achou indevido, “mas os policiais que me agrediram estão aqui hoje, sequer foram afastados.”

Em seguida, representantes da Casa Nem e da Fist falaram. Puxaram palavras de ordem pedindo “o fim da Polícia Militar” e lembraram que os policiais agressores estão sendo denunciados “no cível, no criminal, na Corregedoria e se preciso na Anistia Internacional.” 

O entregador Pedro Victor tomou a palavra para lembrar que “não foi um ato isolado”, e que entregadores são constantemente agredidos no Largo do Machado e na zona sul em geral, lembrando de um episódio recente em que foram chamados de ladrões e agredidos pela Guarda Municipal, enquanto se protegiam da chuva debaixo de uma marquise. 

Em outra ocasião, um entregador teria parado para criticar um “rapa” em cima de vendedores ambulantes, e foi  derrubado da bicicleta e agredido pelos guardas. “Desta vez teve repercussão porque uma advogada e um morador da zona sul também foram agredidos, mas nem assim quiseram ouvir nossa versão da história.”

Também falou ao megafone Rennan Resende, fundador da Associação dos Entregadores do Estado do Rio de Janeiro, lembrando que no dia 14 de junho será votado um projeto de lei do vereador Tarcísio Motta (PSOL) para criar tendas de apoio para os entregadores, uma delas no Largo do Machado. 

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Essas tendas terão banheiro, dormitório, bebedouro, ponto de internet e luz para carregar celular. Rennan deve depor em audiência na Câmara Municipal e entregadores estão convocando greve na data, incluindo um ato em frente à Câmara. 

Além das agressões da PM e da Guarda Municipal, está na pauta a precarização da classe, exigindo aumentos de taxas e outros direitos. “Em dias de chuva temos de atravessar áreas alagadas, nos expondo a doenças, e se não realizarmos a entrega podemos ser expulsos do aplicativo” contou Pedro.

Além da tenda e do efetivo do Segurança Presente, duas viaturas da Polícia Militar ficaram estacionadas na calçada em frente a onde os manifestantes se reuniam, sob olhar atento dos policiais. Após uma hora e meia, o ato foi encerrado com um membro da Fist puxando “A Internacional”. O único incidente reportado foi o protesto de uma idosa que passava pela área, indignada com “o cara de vermelho provocando a polícia e pedindo voto pro Lula”.

OAB repudia agressão

Em nota, a Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Estado do Rio de Janeiro (OAB-RJ) disse “condenar veementemente a conduta de um grupo de policiais militares que agrediram a advogada Vanessa Lima nesta quinta-feira, dia 3 de junho, em incidente ocorrido no Largo do Machado, Zona Sul da capital fluminense. Após se identificar como advogada e questionar uma prisão que considerou arbitrária durante uma confusão, ressaltando estar fazendo uso de suas prerrogativas profissionais, Vanessa recebeu voz de prisão, foi agredida fisicamente e conduzida de maneira violenta à delegacia. Além disso, a advogada teve a carteira da OAB arrancada de suas mãos, jogada ao chão e pisoteada. Acionada, a Comissão de Prerrogativas da Seccional imediatamente prestou socorro à colega e enviou representantes à delegacia de polícia”.

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A nota ainda critica a atitude dos PMs, dizendo que “as agressões físicas, verbais e morais a uma advogada por parte de policiais demonstram não apenas o despreparo de profissionais, mas caracterizam um evidente desrespeito ao Estado democrático de Direito e à cidadania. Ao ignorar seus deveres perante a sociedade, o agente estatal atinge a própria entidade e coloca em risco toda a coletividade. A OABRJ reitera sua preocupação diante de fatos tão graves e cobrará do Governo do Estado que os responsáveis por tais condutas, inadmissíveis em um Estado democrático de Direito, sejam severamente punidos”.

O que diz a polícia

Em nota, a Polícia Militar do Rio de Janeiro informou que “um casal procurou os policiais do Laranjeiras Presente no início da tarde desta quinta-feira (3/6) alegando que foram impedidos por entregadores de delivery de pegar uma bicicleta de aplicativo no Largo do Machado. A equipe foi até o local e verificou que os entregadores estavam ao lado das bicicletas esperando serem solicitados para entrega e não deixavam ninguém utilizar. Os agentes solicitaram que os entregadores se afastassem e permitissem o uso público da bicicleta. Segundo os policiais, outros entregadores foram se aglomerando e iniciou um tumulto. Os policiais foram desacatados e agredidos pelos entregadores. Durante a confusão um agente se machucou durante uma queda e foi levado para o Hospital Miguel Couto. Três pessoas envolvidas diretamente na confusão foram levadas para a 9ª DP (Catete), para prestarem esclarecimentos. A ocorrência segue em andamento.”

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