Bolsonarismo ressuscitou o integralismo, dizem autores de livro sobre o tema

    Para autores de “O Fascismo em Camisas Verdes: do Integralismo ao NeoIntegralismo”, ataque à produtora do Porta dos Fundos em 2019 popularizou debate

    Imagem da capa do livro recém-lançado “O Fascismo em Camisas Verdes: do Integralismo ao NeoIntegralismo” | Foto: divulgação

    Enquanto o ano de 2019 acabava, um nome que muitos sequer lembravam emergia. No dia 31 de dezembro, a Polícia Civil do Rio de Janeiro identificou um membro de um grupo integralista — atualmente foragido na Rússia —  de participar do ataque com coquetéis molotov à sede da produtora Portas dos Fundos, na véspera de Natal, 7 dias antes. Era Eduardo Fauzi Richard Cerquise, presidente da Frente Integralista Brasileira do RJ, que chegou a anunciar, em nota, a “expulsão irrevogável” do integrante da organização. 

    Nos dias subsequentes ao atentado que quase vitimou um funcionário do prédio, as buscas sobre o que era o integralismo explodiram nas redes sociais e nos mecanismos de buscas na internet.

    Para Odilon Caldeira Neto e Leandro Pereira Gonçalves, ambos professores e historiadores da Universidade Federal de Juiz de Fora, esse foi um período fértil para apresentar para um público novo sua área de estudo. Os dois lançaram na última terça-feira (14/7) o livro “O Fascismo em Camisas Verdes: do Integralismo ao NeoIntegralismo”, pela FGV Editora.

    “Foi a partir desse ataque que houve uma demanda da sociedade, e não apenas da imprensa, para entender mais sobre o que era o integralismo”, lembra Odilon, apontando que, na realidade, essa era uma tendência que já vinha aumentando com a radicalização política do Brasil. “Desde que a candidatura do Bolsonaro surgiu e as direitas voltaram às ruas já existe esse processo de intensificação de curiosidade sobre o assunto”.

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    Para Leandro, o tema é pouco explorado na academia e, muitas vezes, chega até a opinião pública envolto em preconceito. “Quantas vezes eu fui confundido por integralista ou defensor simplesmente porque eu estudava o integralismo. Era uma associação problemática que eu acho que, felizmente, está mudando”, pondera. 

    A Ponte conversou com ambos virtualmente após o lançamento do livro. Acompanhe os principais trechos da entrevista.

    Ponte Muita gente ficou ciente de que os integralistas ainda existiam com o ataque ao Porta dos Fundos no final do ano passado. O que esse episódio representou para o processo de escrita do livro?

    Odilon Caldeira Neto – O ataque ao Porta dos Fundos foi um evento chave para pensarmos a qualidade do tema. Isso porque foi a partir dele que houve uma demanda da sociedade, e não apenas da imprensa, para entender o integralismo. Então o assunto volta à cena, algo que nunca tinha saído, mas agora com mais protagonismo. A gente quer contribuir com entendimento desse tema e com a dimensão dessa história fornecendo elementos para compreender a historicidade desse fenômeno. Até para não cair em vulgarizações sobre o Fascismo no Brasil

    Leandro Pereira Gonçalves – Não há dúvidas de que o ataque foi uma mola propulsora para o livro. Nem na época que eu escrevi a biografia do Plínio Salgado [jornalista, teólogo e político conservador brasileiro que fundou e liderou a Ação Integralista Brasileira] eu dei tanta entrevista, justamente pelo interesse do público em conhecer a temática. Óbvio que não é apenas isso que justifica, é claro, mas o ataque, por sua violência, representou muito porque, a partir disso, o tema passou a ser pauta novamente. O integralismo era desconhecido por muitos apesar da sua força e da importância política e histórica, então isso foi muito visto no final do ano passado. Isso representou uma nova fase do movimento neointegralista. Esse, que durante anos teve ações voltadas às redes, ganharam as ruas e isso contribui para essa nova fase do movimento. Por conseguinte, uma necessidade maior de nós, pesquisadores, de entender essas transformações.

    Ponte – Na época, o que vocês perceberam como sendo os maiores vícios ao se falar sobre o assunto integralismo?

    Odilon – Tomar o integralismo como uma reprodução do fascismo italiano ou do nazismo sem entender que ele foi uma adaptação às necessidades e características nacionais, quase como que fosse uma mimese, sem se relacionar até com a expressão da própria direita brasileira, que antecede e sobrevive ao fascismo. Então temos que interpretar o integralismo dentro dessa historicidade que ultrapassa o fascismo histórico. O integralismo tem aproximações mas ele não pode ser reduzido a essa experiência italiana ou alemã, afinal de contas, eles queriam aplicar seus desejos à realidade brasileira.

    Leandro – O integralismo, no imaginário popular, estava muito ligado ao passado, sempre em tom de chacota, ridicularizando e vendo os integralistas como um bando de fanáticos e sua liderança, Plínio Salgado, como um líder fraco. Muitos não levam a sério o movimento e a força dele. Os fatos não mentem: eles tiveram presença forte em várias regiões do Brasil, arregimentando muitos militantes e ações políticas. Foi algo muito sólido, com organização, princípios ideológicos, filosóficos por trás. Mas boa parte do entendimento popular atual estava preso no passado. Mas o integralismo não ficou no passado, ele foi sendo constantemente reformulado: em sua vertente democrática nos anos 40; no contexto da ditadura civil militar; na redemocratização; com a internet e está sendo reformulado atualmente.

    Odilon Caldeira: “A gente quer contribuir com entendimento desse tema e com a dimensão dessa história” | Foto: arquivo pessoal

    Ponte – No que tange ao estudo das direitas brasileiras, quais as convergências atuais dos integralistas contemporâneos com a direita institucional, a que está no poder?

    Odilon – Os integralistas partem de alguns elementos comuns às direitas, em especial as partes mais radicais, com discurso conservador, moralista e, atualmente, com uma prática que também é mais misógina. Esses elementos do ideário político, não apenas da filiação política integralista fornecem essas convergências, inclusive as que permitem que alguns desses integralistas estejam presentes na direita que está no poder atualmente.

    Leandro – Realmente existem convergências, como questões de autoridade, religiosidade, moral, costumes, controle da imprensa, fomento à grupos paramilitares. Um exemplo é o lema “Deus, pátria e família”, que é de origem integralista e que hoje ressignificado como uma das bases do Aliança Pelo Brasil. Mas as divergências existem, como no entendimento do que é nacionalismo, que é diferente de ser patriota. Dentro da estrutura integralista uma proposta liberal como a do Paulo Guedes [ministro da Economia] nunca cresceria, já que um dos inimigos do integralismo é o liberalismo, assim como outros como o comunismo, o “judeu”, a maçonaria.  Mas muitos integralistas já disseram que, hoje, uma política liberal é necessária para exterminar a esquerda no Brasil. 

    Ponte – Ainda que os neointegralistas se coloquem como herdeiros de uma suposta tradição, é fato que há uma intensa tensão no seio do movimento. Quais as revoluções que ocorrem na cena neointegralista atualmente?

    Odilon – Ainda que eles coloquem que eles são herdeiros de uma tradição, há uma tensão interna sobre o entendimento do passado integralista. Há correntes católicas, antissemitas, tradicionalistas e conservadoras. Eu diria que, além desse elemento que compõe o Integralismo, há também uma condição relativa ao cenário neofascista internacional. Então eles vão se inspirar nas novas práticas da nova direita internacional, e isso não é visto como consenso dentro do neointegralismo. Então há, sim, uma disputa sobre a memória e sobre as práticas da extrema-direita, criando roupagens e novas disputas.

    Leandro – Desde a morte de Plínio Salgado passa a existir a disputa pela herança dessa liderança. Todos querem estruturar o movimento segundo seus próprios interesses, não há uma unidade articulada. Nos anos 80 e 90, algumas figuras públicas do movimento aceitaram a presença de skinheads [carecas, neonazistas, etc.], algo que foi condenado por parte dos neointegralistas como um erro estratégico que impediu a aceitação popular do movimento. Em 2004, tentou-se uma unidade, mas não houve acordo. Hoje, há vários grupos neofascistas e três grandes vertentes neointegralistas: A Frente Integralista Brasileira (FIB); o Movimento Integralista Linearista do Brasil (MIL-B) e a Associação Cívica Cultural Arcy Lopes Estrella (Accale). Esta última não é integralmente integralista, mas tem diálogos com os outros dois grupos. 

    Leandro Gonçalves: “Aceitar a presença de skinheads [carecas, neonazistas, etc.] foi condenado por parte dos neointegralistas como um erro estratégico que impediu a aceitação popular do movimento” | Foto: arquivo pessoal

    Ponte – O atualmente foragido integrante do grupo integralista identificado pela polícia como um dos responsáveis pelo atentado ao Porta dos Fundos era líder de uma associação nacionalista de forte cunho integralista com elos com grupos neofascistas europeus. Isso era comum na época da AIB? Existia esse diálogo com o fascismo europeu ou aqui era meio isolado? E o que significa esse diálogo hoje?

    Odilon – Essa relação internacional atual não é a mesma que havia nas décadas de 30 e 40 do século passado. São outras perspectivas, práticas, tendências e instâncias. Não podemos tomar como uma mera reprodução pois não é uma continuidade e nem repetição. Mas de qualquer forma também existe essa interação transnacional. A relação desses grupos com o fascismo e o neofascismo fornece elementos de radicalização justamente porque esses grupos disputam com outras tendências da extrema-direita. Então não é de se espantar que o cenário neointegralista passe também por uma intensificação de uma agenda política mais violenta, seja no discurso ou na prática.

    Leandro – O integralismo tinha diálogo total com os movimentos europeus. Ele bebe das experiências e teorias fascistas da Europa. Não à toa o livro começa com Plínio Salgado fascinado por Mussolini. E não ficava apenas na admiração, os fascistas italianos mandavam quantias significativas para o integralismo brasileiro porque eles apostavam em expandir a proposta política autoritária que existia naquele tempo. Existia também diálogo com grupos fascistas na América Latina também, como no Uruguai, Argentina, Peru. Era uma rede muito ampla. Então essa rede neointegralista é apenas uma continuação do que já existiu. 

    Ponte – Qual a atual dinâmica de uso das redes sociais pelas redes neointegralistas?

    Odilon – Os grupos neointegralistas agem de forma diferente. A Frente Integralista Brasileira (FIB) tem atuação mais voltada ao Facebook, o que é uma especificidade do grupo se a gente pensar o panorama internacional. Os grupos neofascistas internacionais usam as redes, claro, mas também outros elementos como Telegram. Mas os integralistas em si ainda não o usam efetivamente. Não sei a razão disso, mas há um elemento peculiar nisso. O uso da internet dos neointegralistas então foge um pouco do padrão que se vê lá fora, o que não significa que não existam particularidades, concordâncias ou discursos similares.

    Leandro – A FIB cria uma dinâmica na internet similar a de outros grupos internacionais. Não sabemos de onde vem esse investimento e financiamento, mas existe uma base financeira para isso. O site deles é bem organizado, tem uma sede própria, tem ensino a distância, além das iniciativas individuais.

    Ponte – Muitos se surpreendem ao perceber que há monarquistas no movimento integralista. Como isso é possível? É possível dizer que há integralismos, assim, no plural, no Brasil?

    Odilon – Essa relação faz parte da disputa interna. Muito embora o integralismo tenha tido relações com  Ação Imperial Patrianovista Brasileira, um grupo protofascista que tinha uma corrente monarquista forte, o integralismo não assumiu essa roupagem ainda que houvesse uma tendência de haver pessoas que defendem o período imperial. Então isso está em disputa também porque o neointegralismo não se relaciona apenas com a própria base, mas também com outros grupos conservadores e reacionários. Mesmo assim não acho que chega ao ponto de chamar o integralismo de “integralismos” enquanto pluralidade, mas, sim, de interpretações distintas. Há o neointegralismo enquanto fenômeno e enquanto campo de disputa de interpretação e da legitimidade de pequenos grupos que reivindicam o passado, mas, no fim, todos se colocam como integralistas.

    Leandro – Essa relação não é surpresa nenhuma. Até o Plínio tinha intensa simpatia com os monarquistas e eles se aproximaram nos anos 30. O que impediu essa inserção maior foi o Miguel Reale, que era mais próximo do republicanismo. A ideia inicial do Plínio era se aproximar do integralismo lusitano, que era essencialmente monárquico. A história da monarquia do Brasil no século XX se aproxima do conservadorismo, da radicalização, do autoritarismo, então essa presença não é surpresa

    Foto da Associação Integralista é uma das imagens históricas que estão no livro | Foto: reprodução

    Ponte – No início do livro, vocês explicitam a importância dos intelectuais na emergência do integralismo. Atualmente, como é a relação dos neointegralistas com a intelectualidade?

    Odilon – O integralismo foi um movimento criado por intelectuais e pensado por uma aristocracia intelectualizada sobre a nação brasileira. Na atualidade, não há grandes figuras intelectualizadas, então eles fazem essa relação mais com o passado. Mas eles também tentam estabelecer um processo de interação com outros elementos da intelectualidade do neofascismo internacional, como Julius Evola. Outros elementos do neofascismo são aventados por grupos neointegralistas, mas essa relação do integralismo é muito calcada no passado. Então eles reivindicam alguns elementos mas estes acabam ficando num segundo escalão porque eles querem justamente reivindicar uma linearidade que remete exclusivamente a intelectualidade dos anos 30.

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    Esse é um assunto bem complexo aos integralistas, porque eles precisam se atualizar mas ao mesmo tempo têm que ficar fiéis aos seus intelectuais mais antigos. Isso talvez diga um pouco sobre o aspecto anacrônico que eles assumem.

    Leandro – Os integralistas da década de 30 eram intelectuais. O próprio Plinio participou da Semana de Arte Moderna de 22 e era um autodidata com base cristã e conservadora. Mas houve outros militantes, como Gustavo Barroso, presidente da Academia Brasileira de Letras e fundador do Museu Histórico Nacional. Miguel Reale foi um dos grandes juristas da história do Brasil. Eles liam muito e havia uma troca com intelectuais europeus. Isso contribuiu muito para essa geração. O que observamos hoje é a presença de uma anti-intelectualidade, de anticiência, anti-academicismo. Eles podem até ler, mas não há comparação com o que havia antigamente. Antes era muito mais qualificado.

    ERRATA 1 – Título da reportagem foi alterado porque o anterior não condizia com o teor da pesquisa desenvolvida pelos autores do livro

    ERRATA 2 – Reportagem atualizada às 20h18 do dia 20/7 para correção de erro de transcrição na grafia de uma pessoa citada por um dos entrevistados. O nome correto é Gustavo Barroso

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