Artigo | O fechamento do Escritório Social da Bahia e a esperança de uma ressocialização apesar do Estado

À luz da rebelião recente que deixou cinco mortos, fechamento de órgão direcionado à ressocialização de ex-detentos mostra que política do Estado segue focada na punição, argumenta Gabrielle Vitena, da Coluna Abolição

PM dentro da Penitenciária Lemos Brito, do Complexo Penitenciário da Mata Escura, após rebelião neste domindo (20) | Foto: Alberto Maraux / SSP-BA

Certa vez, ouvi de uma egressa do sistema prisional aqui da Bahia que um dos grandes desafios para quem sai do cárcere é o de se ressocializar apesar do Estado. 

A princípio, pode até soar irônico falar em ressocialização frente a um sistema de justiça criminal que perpetua violência e morte. Até porque, o sistema punitivo não é feito para reintegrar ninguém, haja vista o que justifica a existência das prisões é a noção de que determinados grupos sociorraciais devem ser exilados da sociedade e destituídos de quaisquer direitos de forma irrevogável. É essa concepção que justifica a estigmatização e a marginalização que perduram mesmo com a saída do ambiente do cárcere — são corpos que devem ser punidos, e o serão de forma permanente. 

Por isso que concordo com a frase enunciada na primeira linha desse texto: se existe alguma possibilidade, alguma esperança de ressocialização, ela se dará apesar do Estado — não através dele. E acreditem, ele ainda colocará todos os entraves que conseguir para que ela não aconteça. 

Assim, colocado isso, o objetivo dessa coluna é denunciar um fato que está em curso: a ameaça de fechamento do Escritório Social da Bahia por falta de licitação da Secretaria de Assuntos Penitenciários (Seap), pertencente ao governo estadual. Não é novidade que a atual gestão pública se posiciona na contramão da luta anti-prisional, mas o desmonte de uma política que atende a um grupo que já é tão tolhido de acesso aos seus direitos se configura como um ataque direto à luta pelo desencarceramento e um tapa na cara de quem tem a esperança da ressocialização.

Ademais, o contexto prisional do estado reflete o pior dos mundos. A Bahia possui, de acordo com o Monitor da Violência, o maior índice de presos provisórios do país — chegando a quase 50% da população carcerária. De acordo com a SEAP, a razão para esse cenário é que “a criminalidade está mais ousada, e isso faz com que a polícia prenda mais” . 

O que não se admite, no entanto, é que o modelo de punição estabelecido caminhou para um lugar em que ele próprio não se sustenta. O episódio ocorrido na semana passada no Conjunto Penal de Teixeira de Freitas e a recente rebelião em uma das unidades do Complexo da Mata Escura, que deixou 5 mortos e 18 feridos, são um reflexo desse processo que está em andamento nas prisões da Bahia: as cadeias estão implodindo e os presos estão morrendo aos montes, porque o único resultado possível desse projeto punitivo é mais violência, morte, criminalidade e reincidência. Assim, nesse contexto, é cruel pensar no desmonte de um equipamento tão necessário aos sobreviventes desse massacre — é reiterar, de forma explícita, o esfacelamento de qualquer sopro de dignidade para essas pessoas e seus familiares.

Para contextualizar, o Escritório Social da Bahia é um equipamento fomentado desde 2016 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que se propõe a aplicar políticas de reinserção social de egressos do sistema prisional à sociedade. O órgão, lançado no estado em 11 de dezembro de 2020, é o resultado de uma cooperação técnica entre a Secretaria de Assuntos Penitenciários (SEAP/BA), o Tribunal de Justiça da Bahia (TJ/BA) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), faz parte do Programa Cidadania dos Presídios e integra um conjunto de ações públicas em parceria com o CNJ, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) e o Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crimes (UNODC). 

De acordo com o Manual de Gestão e Funcionamento dos Escritórios Sociais, documento disponibilizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) e pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), “os Escritórios Sociais são equipamentos públicos projetados para atender, acolher e encaminhar esse público e seus familiares para as políticas públicas existentes, auxiliar os estabelecimentos prisionais no processo de preparação das pessoas pré-egressas para a liberdade e mobilizar e articular as redes de políticas públicas e sociais para a garantia de direitos àquelas pessoas”. 

Ou seja, frente a um contexto permeado por ausência de caminhos e possibilidades, os Escritórios Sociais funcionam como um espaço que acolhe as demandas desse grupo e oferece o mínimo que lhe foi negado. Assim, o órgão viabiliza, para essas pessoas egressas e seus familiares, que estão lidando com os traumas do sistema prisional, o acesso a políticas das áreas de saúde, moradia, educação, qualificação e encaminhamento profissional e atendimento psicossocial. 

É importante ressaltar, de todo modo, que políticas como os Escritórios Sociais se configuram como o resultado da luta e das reivindicações dos grupos preocupados com as problemáticas que envolvem o sistema penal e o encarceramento. São tentáculos que, a partir de muita pressão, se ramificam por dentro do dispositivo e funcionam como um ponto fora da curva dentro de um Estado alimentado por um projeto de manutenção da punição. E por estarem nesse local que destoa do que é geral, espaços como esses tendem a ser um alvo constante desse organismo maior que se estrutura a partir da constância da violação dos direitos de determinados grupos. O Estado, ao propor o fechamento de um órgão com essa atuação, nos explicita que, para ele, as pessoas egressas do sistema prisional e os seus familiares não devem possuir direito algum, e nem a possibilidade de acessar as políticas públicas que deveriam ser alçadas a todos.  

De acordo com os dados presentes no Relatório Final de Execução de Atendimentos do Escritório Social da Bahia, em dezembro de 2021 já haviam passado por atendimento no órgão um total de 283 usuários, entre egressos e familiares.  O perfil dos atendidos, em geral, reitera a lógica discriminatória e seletiva do sistema prisional: em sua maioria são pessoas negras, com baixa escolaridade, advindas da periferia e oriundas de um cenário de vulnerabilidade social. São corpos já marcados por uma sociedade que marginaliza com base em critérios sociorraciais, e que, com o ônus do contato pelo ambiente prisional, se aproximam ainda mais da categoria de puníveis e elimináveis. 

Assim, é esse cenário, ambientado em uma estrutura estatal violenta, que normaliza o desmonte de uma política tão necessária à vida de quase 300 pessoas. 

Aliás, não é possível sequer falar de forma contundente em desmonte das políticas institucionais de assistência às vítimas do sistema prisional, porque, na verdade, nunca se conseguiu constituir um ordenamento estável de atendimento para esses grupos. No mínimo sinal de avanço na construção e estabelecimento de uma rede de acolhimento, o Estado, em seu projeto punitivo, encontra um jeito de minar. 

Portanto, é dessa forma que o fechamento de um Escritório Social recém inaugurado, como o da Bahia, que tem pouco mais de um ano de funcionamento, representa os caminhos delineados por uma política de Estado — que é, também, uma política de governo — que se utiliza da estrutura burocrática para vilipendiar o acesso à direitos por parte da população egressa do sistema prisional. 

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Afinal, o que gerencia a lógica de funcionamento do sistema de justiça criminal é a pulsão de morte e a manutenção de uma violência cíclica que não se contenta em prender, punir e marginalizar — ela almeja o permanente exílio social e o extermínio literal desses grupos.

* Gabrielle Simões Lima Vitena é mulher, negra, baiana, afrodiaspórica, cientista social, professora e escritora nas horas vagas. Mestranda e licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia. Pesquisa prisão e racismo punitivo.

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