Depoimento | Rute Fiuza: 'A luta é por justiça e por memória'

    Após 5 anos do desaparecimento do filho, Rute Fiuza fala de esperança e saudade; sete PMs respondem pelo assassinato de Davi

    Davi Fiuza tinha 16 anos quando foi morto por 17 PMs, em Salvador | Foto: arquivo pessoal

    O dia de hoje é um dia de luta, um dia de muitas lembranças, um dia de expectativa por justiça – uma justiça tardia, mas eu prefiro que ela seja tardia e não falhe. Mas, pelo que a gente está vendo, pelo que o Ministério Público remeteu ao caso, parece que é justamente isso que o Estado quer: que haja uma falha. Se bem que isso não é uma falha, é tudo planejado. Apesar de tudo, está sendo um dia bom, porque eu estou encontrando com pessoas muito maravilhosas.

    Eu lembro do Davi como toda mãe que perdeu seu filho. Independente da forma como foi. É uma mistura de saudade e ao mesmo tempo de esperança em ter justiça. A gente sabe que é muito complicado justiça nesse país, principalmente para o povo pobre, periférico e negro. Esse genocídio é bem latente e nós, familiares de vítimas, sabemos exatamente como é. Mas é um dia de luta, também. Luta por memória, luta por justiça.

    Foi uma sensação de tristeza voltar ao local onde os policiais levaram o meu filho. Uma sensação de angústia de saber que foi naquele local que a minha vida passou a não fazer muito sentido. É paradoxal, porque, na verdade, ao mesmo tempo que não faz sentido o que fizeram com ele, me dá sentido por uma luta. Por uma luta de mães que vão mudar esse país.

    Nós vamos parir um novo país, como diz minha amiga Débora Silva [fundadora do Movimento Mães de Maio]. Nós somos o útero desse país. Nós somos uma população que tem mais mulheres do que homens, então são as mulheres que vão parir um novo país.

    Davi era o único filho de Rute, mãe de outras três filhas | Foto: arquivo pessoal

    Eu lembro de tudo. Todos os dias. Não há um dia em que não haja lembranças. Principalmente do sorriso dele. Ele era um jovem como todo outro jovem, a única diferença é que ele era um jovem periférico e jovens periféricos têm uma dinâmica diferente dos outros.

    Eles não vão para aula de inglês, não vão para clubes, não viajam para a Disney, mas são jovens que também têm sonhos como todos os outros. Sonhos de poder comprar boas roupas, sonho de poder viajar, sonho de poder ter uma namorada, sonho de ter um carro. Ele tinha sonho de dias melhores.

    Um mês antes de acontecer esse holocausto dele – eu digo holocausto porque um garoto de 16 anos ser levado por 23 policiais é um holocausto-, ele sonhava em jogar futebol. Como todo jovem negro e periférico, com exceção do Sócrates, do Raí e do Kaká, os outros jogadores têm as mesmas estatísticas do meu filho. O sonho dele, como torcedor fanático do Bahia, era poder jogar futebol.

    O apoio de outras mães foi essencial. A dor de mães que perderam os seus filhos para o Estado ou para qualquer outra coisa é igual. Quando eu conheci as mães, quando eu conheci a Débora, que é uma forte inspiração da minha luta, quando me tornei Mães de Maio Nordeste… a única diferença é que na chacina de 2006 as mães puderam enterrar os seus filhos e as mães aqui, em grande maioria, não puderam. Mas a luta é essa: por justiça e por memória.

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    Rute Fiuza (à esq.) e Débora, das Mães de Maio, durante encontro em SP | Foto: Caio Palazzo/Ponte Jornalismo

    Ainda não começaram as oitivas dos policiais. Essa é a pressão principal, para que esses policiais sejam escutados e para que a justiça possa ser feita, apesar das minhas dúvidas, pois o Ministério Público enviou o caso para que a vara militar viesse investigar seus pares e isso me deixa com o pé atrás. Eu já não acreditava muito neles e agora é muito pior. 

    Se eu pudesse dar um recado para as outras mães, eu diria: lute! Ainda que tudo demonstre que vai ser o contrário, lute. Faça do seu luto verbo.

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