PMs da Rota executaram jovem negro e plantaram arma, aponta Polícia Civil

Delegada indiciou policiais por homicídio, omissão e fraude por morte de Luiz Fernando de Jesus, ocorrida em janeiro em SP; “na época, o secretário postou que tomaria providências se tivesse provas, agora que tem, qual é a providência?”, questiona mãe

Luiz Fernando tinha 20 anos | Foto: arquivo pessoal

“Quando eu cheguei do cemitério e recebi a ligação da Defensoria, eu senti esperança de ver justiça”, conta Sandra de Jesus, de 40 anos, mãe de Luiz Fernando Alves de Jesus, 20, que foi morto por PMs das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), força especial da Polícia Militar paulista, em janeiro deste ano.

A notícia que ela recebeu foi de que a Polícia Civil de São Paulo indiciou, nesta quarta-feira (11/10), três policiais militares por envolvimento na morte do seu filho. O caso ficou conhecido após um vídeo mostrar o jovem sendo baleado pelos PMs caído no chão no cruzamento de um semáforo na Avenida Cecília Lottenberg, na zona sul da capital paulista. Uma mulher que passava próximo ao local foi ferida de raspão.

Na época, a Ouvidoria das Polícias pediu o afastamento das ruas dos policiais envolvidos para a apuração do caso, o que foi criticado pelo secretário Guilherme Derrite três dias depois. “Nenhum policial que sai de casa para defender a sociedade será injustiçado. Confrontos sempre serão apurados, mas ninguém será afastado no caso da abordagem da ROTA que evitou um assalto no semáforo. Até que se prove o contrário, a ação ocorreu dentro da lei.”, postou no X (antigo Twitter).

O sargento Richard Wellyngton Vetere foi indiciado por homicídio qualificado por motivo fútil e por recurso que impossibilitou a defesa da vítima, omissão de socorro e fraude processual. O soldado Filipi Rufino de Andrade foi indiciado por homicídio com o mesmo agravante e o cabo Leonardo da Silva Carvalho foi indiciado por fraude processual qualificada. A delegada Aline Martins Gonçalves entendeu que não houve legítima defesa.

Reprodução do tweet feito pelo secretário Guilherme Derrite, em 12/3/2023

O relatório feito pelo Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), da Polícia Civil, foi remetido ao Ministério Público estadual, que vai analisar se pede mais diligências, se acusa os PMs pelos crimes ou se solicita o arquivamento da apuração ao Tribunal de Justiça.

De acordo com o documento obtido pela Ponte, as imagens das câmeras corporais usadas pelos PMs mostram outra dinâmica daquela narrada no boletim de ocorrência.

Luiz e um adolescente de 16 anos tinham roubado um casal em uma moto por volta das 18h40 de 10 de janeiro na avenida. Os policiais disseram que foram avisados por motoristas sobre um roubo de motocicleta que estaria acontecendo no semáforo adiante da via e viram a dupla, sendo o garupa armado, e duas vítimas rendidas. Luiz e o outro jovem tentaram correr em direções opostas.

Ao se aproximarem, segundo os PMs, “o garupa virou em direção aos policiais com a arma em punho, na iminência de utilizá-la, quando então Richard realizou quatro disparos de fuzil calibre 7.62 e Filipi dois disparos de pistola calibre .40”.

O sargento e o soldado foram atrás de Luiz, que estava caído no chão, e, segundo os policiais, “tentou acessar a arma de fogo por baixo do corpo para usá-la contra os policiais quando então Richard disparou o fuzil mais uma vez em direção ao indivíduo, que faleceu no local”.

O adolescente, desarmado, acabou detido pelos cabos Leonardo da Silva Carvalho e Renaud Fernando Dias Campos.

Os PMs disseram que recolheram uma pistola .40 que estaria com Luiz, que foi apresentada por eles depois na delegacia, o que, para a delegada mostra que houve manipulação da cena do crime. Com Luiz, no momento da perícia, foi encontrado uma arma de brinquedo nas roupas.

As vítimas do assalto disseram que os rapazes mostraram “uma arma de cor preta” e que logo uma viatura da Rota chegou, que puderam ouvir um disparo antes mesmo de os policiais saírem da viatura e depois mais dois tiros quando Luiz correu para a praça “com uma arma na mão”. Já o adolescente disse que Luiz estava com uma arma de brinquedo.

Nas imagens das câmeras das fardas dos policiais, segundo o relatório, “não é possível ver Luiz Fernando apontando nenhuma arma ou simulacro de arma de fogo em direção aos policiais militares. É possível ver Luiz Fernando de costas para os policiais, correndo em direção à praça enquanto tiros são disparados”.

Pelas filmagens, a delegada destaca que Richard e Filipi, ainda dentro da viatura, atiram em Luiz Fernando quando ele ainda estava com as mãos no guidão da motocicleta e, “com o susto”, sai correndo em direção à praça. “Em momento algum Luiz Fernando saca qualquer arma de fogo ou simulacro ou direciona qualquer objeto contra os policiais militares”, afirma Aline Gonçalves.

Ela aponta que os disparos feitos quando os PMs ainda estavam dentro da viatura foi uma conduta “ilegal dentro do ordenamento jurídico e contrária ao Regulamento da Polícia Militar” porque eles não fizeram nenhum comando de ordem de parada ou verbalizaram “parado, polícia” para os rapazes, que é o que previsto no procedimento da PM.

“As imagens são claras quanto ao momento em que Luiz Fernando estava com as mãos para cima, completamente livres de objetos, o corpo estirado ensanguentado no chão, totalmente impossibilitado de reagir, quando Richard, acobertado por Filipi, dispara um tiro de fuzil 7.62 em Luiz Fernando”, escreve a delegada.

O relatório indica que Richard dá ordem para Filipi “passar” a fim de que ele fique com sua câmera corporal direcionada para outro lado, ficando de costas para Luiz Fernando. Pelo equipamento de Filipi, “não há qualquer arma ou simulacro” com Luiz Fernando, já que Richard “procura a arma nos dois lados do corpo de Luiz Fernando, não acha, e então, esconde parte da câmera com o fuzil que porta, e virando um pouco de lado grita aos demais que estaria desarmando Luiz Fernando”. Essa descrição da cena é semelhante às reveladas pela Ponte na semana passada sobre outra abordagem da Rota que acabou com dois mortos e um ferido.

A delegada entendeu que os PMs praticaram fraude processual porque na abordagem registrada pelas câmeras das fardas, o simulacro não foi encontrado por eles e sim pela perícia e que a pistola foi plantada por ter sido apresentada depois. “Ademais, em momento algum essa suposta arma de fogo encontrada por Richard com Luiz Fernando é mostrada nas imagens das câmeras corporais, nem em qualquer outro lugar. Em determinado momento, ouve-se — na câmera de Richard — um som de zíper abrindo e fechando e um som que parece ser do manuseio de uma arma”, argumenta.

Além disso, Richard disse ao seu superior hierárquico que houve troca de tiros, embora não tenha acontecido, e a pistola aparece a todo o momento nas mãos dos policiais que ainda teriam o cuidado de dizer nas filmagens para evitar “molhar” a arma, ou seja, não deixar vestígio próprio na pistola, o que, para ela, foi algo ensaiado para parecer acidente de procedimento na preservação correta da cena do crime. O cabo Leonardo ainda tira munições da arma com a alegação de “deixá-la mais segura”.

Para a delegada, os policiais também omitiram socorro porque Richard diz ao seu superior que a moça que foi atingida de raspão “estava bem” e, quando o resgate chega para atender Luiz Fernando, o sargento impede a paramédica de se aproximar do jovem e diz “isso aqui é bandido, a vítima é uma pessoa lá que estava passando”. Isso acontece às 19h05. Vinte minutos depois os policiais permitem que os paramédicos socorram Luiz, segundo o documento.

Aline Gonçalves argumentou que a vítima estar praticando um roubo “não autoriza os policiais militares a executá-la covardemente” e que os policiais não tentaram defender a si mesmos nem as vítimas do assalto.

Os PMs na ocasião não prestaram depoimento. Isso porque a Lei do Pacote Anticrime, de 2019, incluiu no Código de Processo Penal que todo agente de segurança pública que estiver envolvido em crimes ou tentativas de crimes dolosos (quando há intenção) contra a vida não é obrigado a dar depoimento antes de constituir um advogado ou defensor público em até 48 horas e ser citado, ou seja, ser formalmente informado da investigação. Contudo, mesmo citados, eles não depuseram no inquérito e se mantiveram em silêncio.

Luto que virou luta

Com os indiciamentos dos policiais, Sandra de Jesus quer uma resposta do Estado: “O Estado nunca me procurou. A minha esperança é que o secretário de Segurança tome um posicionamento. Ele em nota no Twitter disse que tomaria providências depois que tivesse provas. Agora os policiais já estão cientes que são acusados por homicídio, então quero saber qual é a providência que ele vai tomar”, disse à Ponte. “Eu fiquei muito revoltada porque alguns políticos disseram que iam dar medalha para os policiais e agora eu quero saber se eles vão dar medalha para pessoas indiciadas por homicídio.”

Ela, que no momento está desempregada pois não tem condições emocionais de continuar o trabalho de cuidadora de idosos, conta que ficou sabendo da morte do filho ao ver o vídeo em que ele é baleado pelas redes sociais e emissoras de TV. “Eu quis morrer porque só ouvia crítica, eu só ouvia coisa ruim, de ‘bandido bom é bandido morto’, de que ‘tem ver o que seu filho fez’, diziam que ele tinha atentado contra os policias, que teve troca de tiro. Para mim, naquele momento, ali acabou, eu achava que não ia ter investigação”, lembra. “Depois do enterro dele, eu me vi completamente sozinha e pensei em me suicidar porque minha vida acabou naquele momento.”

Sandra diz que, em meio ao desespero, recebeu uma ligação da fundadora do Movimento Independente Mães de Maio, Débora Silva, que também teve o filho morto pela polícia nos Crimes de Maio de 2006. “Tinham passado meu contato para ela, nem sabia o que era Mães de Maio, eu já estava mandando mensagem de despedida porque não queria viver mais e ela me ligou e gritou comigo ‘você não está sozinha. O que fizeram com seu filho não vai ficar impune'”, lembra.

Sandra participou de protesto em memória aos oito anos da Chacina de Osasco, em agosto | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Foi a partir daí que ela acabou tendo contato com a Defensoria Pública, que a acolheu pelo projeto Rede Apoia — que começou para vítimas de violência letal e, após críticas, acabou dando ênfase a atendimento jurídico e psicossocial a vítimas e familiares de vítimas de violência estatal. Antes mesmo de a Polícia Civil solicitar imagens de câmeras das fardas, a defensora Andrea Castilho Nami Haddad Barreto fez uma série de solicitações de diligências para a apuração, como essa e busca por câmeras de segurança na região onde Luiz foi morto, o chamado feito ao Copom pelos PMs sobre o caso e afins.

A defensora aponta que o caso de Luiz foi um dos primeiros atendidos pela Rede Apoia e que as câmeras nas fardas foram fundamentais. “É muito importante termos esse acesso para ajudar a elucidar o caso de uma forma mais célere e não gerar dúvidas para os dois lados, tanto para os policiais quanto para a família”, afirmou.

“Meu filho tomou uma decisão errada e pagou com a vida. Após caído, meu filho levou um tiro à queima-roupa de um fuzil e as últimas palavras do meu filho foi ‘por favor, senhor!’ com as duas mãos, tentando levantar as duas mãos, porque um lado do corpo dele já estava baleado”, diz Sandra, às lágrimas. “O Estado entregou meu filho morto, o boné, R$ 60 e um isqueiro cheio de sangue”, lembra, já que ela reconheceu o corpo de Luiz no local onde foi morto.

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A família, que cresceu e se criou no bairro do Jardim São Luís, na zona sul, tentava driblar a desigualdade como podia. “Meu filho tentava fazer uns bicos, eu sempre trabalhei com faxina, como cuidadora. Ele tentava me ajudar, ele cuidava de mim, tentava ajudar a avó dele. Ele morreu no dia do aniversário da avó dele. A única coisa que eu quero é que eles paguem o mal que fizeram a mim e ao meu filho. Era para meu filho estar cumprindo [pena] pelo erro dele e não ter sido executado covardemente”, clama a mãe. “Eu não tive tempo de ter luto, agora eu sou uma mãe que luta por justiça”.

O que diz o governo

A Ponte pediu entrevista com os policiais envolvidos e com o secretário Guilherme Derrite, mas até a publicação não houve resposta. Em nota, a Secretaria da Segurança Pública (SSP-SP) informou que se constatado desvio na conduta dos policiais “medidas serão tomadas, uma vez que abusos não são tolerados” (veja íntegra da nota a seguir).

Nota da SSP-SP

A Polícia Civil esclarece que os fatos seguem em investigação por meio de inquérito policial pela Equipe E Sul da 1ª Delegacia da Divisão de Homicídios do DHPP. Diligências estão em andamento e documentos sigilosos estão sendo anexados ao inquérito, motivo pelo qual demais detalhes serão preservados para garantir autonomia ao trabalho policial. A Polícia Militar aguarda a conclusão do inquérito. Se constatado desvio de conduta na ação, medidas serão tomadas, uma vez que abusos não são tolerados.

*Reportagem atualizada às 10h50min de 12 de outubro de 2023 para incluir a nota da SSP.

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