Escola do bilionário grupo Cogna segue ensinando ódio a futuros policiais

    Denúncias sobre as aulas de tortura e racismo da AlfaCon foram ignoradas pelo Ministério Público e não atrapalharam a escola, que segue apoiada por grandes empresários

    Dono e professor da escola de concursos AlfaCon, que prepara principalmente candidatos a policiais, Evandro Guedes relembra em uma aula a “delícia” que era ser policial militar no Rio de Janeiro, e que descobriu como “gostava de bater em pessoas” ao espancar a “crioulada” “feia e sem dente” nos estádios de futebol.

    O vídeo com as falas racistas de uma das aulas de Evandro, gravado em data incerta, mas que viralizou nas redes nesta semana, vem se somar a outros ataques à democracia e aos direitos humanos já cometidos em outras aulas da AlfaCon, como as lições de tortura e assassinato de suspeitos ensinadas pelo ex-capitão da PM Norberto Florindo Júnior, e a palestra de Eduardo Bolsonaro, em 2018, em que o filho do atual presidente da República disse que bastava “um cabo e um soldado” para fechar o Supremo Tribunal Federal.

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    A AlfaCon não teve qualquer problema com o conteúdo de suas aulas, mesmo após a Ponte Jornalismo, em outubro do ano passado, ter compilado e exposto várias das ilegalidades ensinadas pela escola. A revelação do conteúdo não motivou qualquer ação das autoridades, seja da polícia ou do Ministério Público, e a AlfaCon continuou a receber apoio dos maiores grupos de educação do Brasil. Um dos sócios da escola é a a Somos Educação, que faz parte do Grupo Cogna (ex-Kroton), o maior do setor de ensino no país.

    Eduardo Bolsonaro (à dir.) participou de aula da escola, em 2018| Foto: Reprodução/YouTube

    Sobre as ilegalidades cometidas por seu sócio, a Somos Educação afirma “que não cabe a ela se manifestar sobre o tema em questão, pois como acionista minoritária, não está envolvida no dia a dia da operação da Alfacon”. Apesar disso, a Somos afirma “repudiar veementemente qualquer prática de violência praticada por quaisquer pessoas”. Já o grupo Cogna, também procurado pela Ponte, prefere não dizer nada.

    Sem consequências

    A Ponte denunciou em outubro de 2019 as aulas de tortura e execução dadas pela AlfaCon. Além de Evandro, que dá aulas de Código Penal, também atuou ensinando como matar suspeitos ou torturá-los o ex-PM de São Paulo Norberto Florindo Júnior, na disciplina de Direito Processual Militar. Ele chegou a ser alvo da Corregedoria da PM, mas as investigações não avançaram.

    Na época das denúncias sobre as técnicas de tortura e execução dadas por Norberto, que teriam sido cometido enquanto era policial militar em São Paulo, a Corregedoria da PM paulista informou que abriu investigação para apurar os crimes confessados por Norberto em seus vídeos.

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    Norberto foi demitido da corporação em 2009, quando condenado por posse de cocaína no alojamento da Diretoria de Ensino da PM, quando dava aulas de Direito aos militares.

    Apesar de informar sobre uma apuração aberta, a PM não avançou no assunto. Em nota enviada essa semana à Ponte, a corporação explicou que, por se tratar de um ex-policial, o órgão repassou a apuração à Justiça.

    A reportagem também questionou o Ministério Público Estadual paulista, além do Ministério Público Federal de São Paulo, onde Norberto atuou como PM, e os Ministério Público Estadual Federal do Paraná, onde está sediada a AlfaCon, para saber se haviam aberto algum procedimento a respeito dos professores. O Ministério Público Estadual paranaense, bem como o MPF do Paraná e de São Paulo, explicaram que não abriram procedimentos contra Evandro, Norberto ou a AlfaCon. Já o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo informou que não registra processos relacionados à escola ou a seus professores.

    Em outubro de 2019, a Somos chegou a dizer que, “a médio e longo prazo”, pretendia encerrar sua participação como acionista da AlfaCon. Até agora, contudo, não tomou qualquer atitude.

    A Somos Educação integra o segmento de marcas de educação básica do Grupo Cogna. Dentre as mais conhecidas, estão a de editoras como a Saraiva, Ática e Scipione, e a de sistema de ensino como a Anglo. A empresa também é dona de marcas importantes do ensino superior, como a Universidade Anhanguera. De acordo com demonstrações financeiras publicadas em março deste ano, o Grupo Cogna fechou o ano de 2019 com uma receita líquida de vendas e serviços de mais de R$ 7 bilhões. Ainda segundo o documento, o grupo possui 73 empresas, composto por 18 mantenedoras de instituição de ensino superior, 176 unidades de ensino superior e 1.410 polos de graduação de ensino à distância, além de contar 54 escolas próprias na educação básica, 125 unidades do Red Balloon e 3.961 escolas associadas.

    A reportagem procurou a assessoria de imprensa da AlfaCon, mas não obteve resposta.

    “A gente vai ganhar dinheiro para caralho”

    Em outubro de 2019, a Ponte revelou o conteúdo das aulas de Norberto, que se intitula Professor Caveira. Em vídeos da AlfaCon, o ex-PM ensinava os aspirantes a policiais como matar um suspeito enquanto o socorria ao hospital.

    Após as denúncias, o professor permaneceu sem conteúdos divulgados no canal do YouTube da escola por cinco meses. O afastamento foi confirmado por Evandro Guedes, dono e professor da AlfaCon. “Norberto está com a gente, a única coisa que eu fiz foi tirar os vídeos da plataforma, ele está regravando tudo, a gente vai ganhar direito para caralho, só que ele está de molho”, declara Evandro, numa live de novembro de 2019. “Ele está fazendo aulas de bons modos, Noberto é um ‘menino mal criado'”.

    Norberto se intitula e é descrito pela AlfaCon como Professor Caveira | Foto: Reprodução/YouTube

    O afastamento teve fim no final de fevereiro, quando Norberto participou de uma aula gravada e uma aula ao vivo. Na primeira delas, ele volta a dar exemplos preconceituosos e que exaltam seu tempo na PM de São Paulo. “Eu tinha animus de combater o crime e, eventualmente, alguns marginais tombaram ao enfrentar o então tenente Norberto. Eu era meio casca grossa, nego”, afirma.

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    Norberto não aceitou falar com a Ponte, nem no ano passado, nem nesta semana, mas se pronunciou pela pela primeira vez sobre as denúncias no final de um vídeo. Ao dizer que, no final do ano passado teve “gente má querendo deturpar” a sua reputação, explicou que sua metodologia é diferente. “A gente sempre usa aqui nas aulas de métodos didáticos, métodos, digamos assim, um pouco não convencionais para chamar a atenção do aluno”, justifica. “São estilos de aulas. Sai um pouco de palavrão, sai um pouco de baboseira, merda, mesmo, mas tudo para despertar você.”

    Reclamação de alunos

    Por conta do último vídeo de Evandro com declarações racistas que viralizou nas redes sociais, a Ponte foi procurada por aluno da AlfaCon que relatou ter deixado de acompanhar as aulas de Código Penal, ministradas por Evandro, por conta de “exemplos preconceituosos, machistas, de cunho sexual e piadas homofóbicas”.

    O aluno, de 28 anos, conta que comprou um pacote de aulas online da empresa por aproximadamente R$ 500 para estudar para o concurso de Escrivão de Polícia Civil de São Paulo. Na grade, a que a reportagem teve acesso, são 513 aulas divididas em 13 disciplinas entre Direito Constitucional, Língua Portuguesa, Noções de Informática, Criminologia, Noções de Direitos Humanos, entre outros, comandadas por diversos professores.

    Numa aula, Evandro explica sobre nexo causal no Código Penal, apontando quando um médico pode ser responsabilizado por homicídio ou tentativa de homicídio culposo (quando não há intenção de matar), caso uma pessoa baleada tenha passado por uma cirurgia mal feita. “Você imagina que um médico quando for fazer uma cirurgia (…), aquele médico bem viado, bem ‘baitola’. E aí, ao invés de ele fazer a porra da cirurgia certa, ele começa a prestar atenção na unha da assistente dele. Aí ele se distrai e, se ele se distrai, ele tá sendo negligente”, declara.

    Numa outra aula sobre crime consumado e crime tentado, faz piadas com gordos. “Gordo é uma desgraceira, né? Se você é gordo que está em casa, não vem falar que é problema de tireoide, é problema do estômago, tanto que o cara faz bariátrica e emagrece, então é só parar de comer, porra”, diz.

    O aluno disse que deixou de acompanhar as aulas por causa da postura do professor. “É preocupante a repetição de juízo de valor, de frases taxativas que fortalecem estereótipos bastante pejorativos”, afirma. “Não é o tipo de postura que você espera de uma pessoa que se diz professor.”

    Fechar STF com ‘cabo e soldado’

    Evandro é responsável por participação do deputado federal por São Paulo, Eduardo Bolsonaro (sem partido), em curso da AlfaCon. Em julho de 2018, o filho do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) disse em aula que bastariam “um cabo e um soldado” para fechar o STF (Supremo Tribunal Federal).

    Nesta quarta-feira (15/4), Evandro publicou um vídeo em seu perfil no Instagram se defendendo. Em vídeo intitulado “aos mimizentos”, explicou que seus exemplos são “toscos, mas com eles todo mundo lembra as questões”.

    “A galera fica pegando trecho dos meus vídeos e fica fazendo sensacionalismo. Na boa? Eu quero que esses caras se explodam. Foram reclamar que eu chamei de negão e favelado. Porra, mermão, eu moro em Barra do Piraí, meus amigos é tudo preto, porra”, argumenta Evandro.

    “Para assistir minha aula é faca na caveira. Vocês vão entrar na polícia para fazer o quê? Para agradas bandido? Ninguém vai para a polícia para cometer homicídio. Eu nunca precisei na polícia militar ser covarde com ninguém”, prossegue.

    Atualização em 17/4, às 11h – Reportagem atualizada com os posicionamentos de todas as unidades do Ministério Público mencionadas

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